Patricia Porto é escritora, doutora em educação.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha organização não é rígida, mas é pensada para otimizar o tempo que tenho diante das tantas demandas do cotidiano. Nós estamos vivendo uma fase única e de outras relações com o próprio tempo e há muita distração no mundo líquido das novas tecnologias. É preciso trabalhar o próprio sentido de isolamento. Por isso mesmo escolho um projeto por vez. Para ficar atenta e forte no meu processo criativo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Sou sistemática no planejamento. Gosto de estruturar o projeto, pensar sobre as fases, sempre visando um desfecho. É um trabalho que se inicia até mesmo antes da escrita. Há um processo que antecede o escrito e que se constrói numa organização mental sobre o que se vai produzir. A minha fluição é trabalho e trabalho árduo. O meu fluxo criativo é feito desse empenho: de terminar o que comecei. Então a última frase é sempre a mais difícil porque também é um processo de desapego. É deixar ir. Deixar o livro seguir seus ciclos. É um luto também, um ninho esvaziado por um tempo.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Gosto muito da rotina. Eu e ela nos entendemos muito bem. Eu prezo pelas coisas do cotidiano que merecem atenção e a nossa rotina é autocuidado, é cuidar de si também. E não se faz isso sem o devido afeto pelos pequenos rituais. A escrita é um ritual em si. A minha é ritualística, tem uma mística própria e uma necessidade extrema de silêncio. E solidão. Principalmente – de solidão. Nesse mundo de tantos barulhos, o lugar da escrita é quase um apelo para voltar para dentro.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Acredito que a procrastinação seja sempre um sintoma. Algo ali não vai muito bem. Quando isso ocorre comigo é um sinal que preciso de ajuda, até mesmo da minha própria ajuda. Preciso me olhar mais, cuidar de mim para cuidar da escrita que há em mim. Então eu paro de escrever para voltar a escrever. Eu cuido de mim para cuidar do que eu amo fazer.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
O texto que, sem dúvida, me deu mais trabalho foi o texto acadêmico de tese. Ainda que eu dialogasse com as áreas do meu maior interesse e paixão: a filosofia e a literatura, no texto acadêmico eu senti dor e angústia. E a dor e a angústia vinham da minha dificuldade em lidar com figuras de autoridade que estraçalham o processo criativo da escrita porque estão autorizadas, por um poder de encastelamento, a fazer isso com os outros. E por eu ter vencido meus próprios demônios nesse processo, o resultado me deu imenso orgulho. Imenso orgulho do “Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização da Literatura” (Editora CRV). E imenso orgulho do “Cabeça de Antígona” (Editora Reformatório) e do “Casa de bonecas para elefantes” (Editora Penalux).
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve? Os temas dos meus livros é que me escolhem.
O fato de ser pesquisadora na área que trabalho artisticamente cria sempre um corpo em duplicidade, um corpo que se desdobra em olhares distintos sobre o mesmo objeto da escrita. Eu faço um jogo duplo com a coisa literária. Estou sempre com ela, vivo mais no corpo da literatura do que no meu próprio. Então não sei me distinguir da pele da leitora que cresceu e que às vezes se torna o meu próprio monstro, a criatura indevida a me censurar. Os temas estão nas entranhas do que leio, ficam no meu inconsciente e pedem passagem.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Nunca me sinto à vontade para mostrar meus ensaios de escrita, porque a escrita é um ato muito íntimo. É sempre ficar nua diante do outro, dos outros. É constrangedor porque é sempre convidar alguém para a sua intimidade mais sentida, mas é necessário para não ficar agarrada nas próprias neuroses e nos medos que daí surgem.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu me lembro sempre de quando eu decidi escrever. Porque escrever foi dizer ao mundo que eu não iria morrer como queriam, que eu não iria aceitar nenhuma profecia e não iria me entregar nunca. Toda pessoa que enfrenta os determinismos de classe e gênero num país de desigualdade, que luta contra a opressão inicial do sistema educacional – também desigual, que se rebela contra as impossibilidades da menos-valia, essa pessoa se escolhe a arte como caminho, se escolhe a escrita como caminho – estará sempre no lugar de incógnita com o mundo, estará sempre em desvio porque criará significados para o mundo, a vida e a sociedade. Foi assim comigo quando a escola me disse que eu seria eternamente burra e eu não aceitei. Foi quando eu decidi escrever. E eu tive a sorte de ter uma avó que me disse na época: “Escreva!”
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Estilo é experiência, é encontrar a própria voz na grande polifonia que é a arte literária. Estilo é perder o pudor ao se desnudar no corpo do texto, é se preocupar menos com a crítica e mais com o leitor, com o outro da escrita. Eu enfrentei os meus ruídos internos, as minhas fontes imensas, todas as grandes referências literárias da minha vida de leitora. Eu enfrentei Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, adoradas por mim. Não é fácil escrever ao lado dos seus amores. “É sempre desconcertante rever um grande amor.” E sempre será.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Todos da Wislawa Szymborska. “Para o meu coração num domingo”. Todos do Roberto Bolaño. “2666, O terceiro reich, A literatura nazista na América”.