Patrícia Melo é escritora, autora de Gog Magog.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Estou num momento da vida sem muitas demandas. Os filhos cresceram, eu e John, meu marido, temos uma rotina tranquila. Mas mantenho o hábito de acordar cedo, ler jornais, responder e-mails logo nas primeiras horas. Quando não estou escrevendo, como agora, leio durante toda a manhã. Às vezes faço uma caminhada pelo meu bairro. Pode parecer que não, mas considero tudo isso uma parte importante do processo criativo, que não tem fim, quando se é um artista. Muitas vezes, nem sei ainda qual será o próximo livro, mas de alguma forma, já estou trabalhando nele, internamente. Lendo, escutando, observando. Com as antenas ligadas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de correr no fim do dia, ou de fazer alguma atividade física, como yoga e também meditação. Sou mais produtiva de manhã, por isso gosto de começar a trabalhar por volta das oito, depois de tomar duas taças de café bem cheias, e de passear eventualmente com meu cachorro. Começo a trabalhar relendo a produção do dia anterior. A revisão desse texto já me ajuda a me concentrar, e a conseguir a introspecção necessária.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou escrevendo um livro, escrevo todos os dias. Às vezes, escrevo apenas um parágrafo durante o dia todo. Outras vezes, escrevo cinco páginas. Não tenho uma meta diária. Jogo muito material fora, reescrevo e reviso muito. Tenho dificuldade de avançar se o texto apresenta algum problema. Preciso resolver todos os nós para seguir em frente. Geralmente faço uma pequena pausa no meio do dia, para um almoço rápido, e volto a trabalhar até às três ou quatro da tarde. Jamais trabalho à noite. Gosto de beber uma taça de vinho, ver um filme. E durmo cedo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Um romance significa para mim dois ou três anos de trabalho intenso e ininterrupto. O difícil, para começar, é estar preparada para esta jornada. Um livro é sempre uma longa viagem. Só começo quando sinto que tenho uma bagagem boa, uma pesquisa sólida e dois ou três caderninhos cheios de anotações. Preciso também ter o início e o fim do livro já desenhados. Gosto de começar sabendo de onde eu parto, e onde quero chegar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Geralmente as travas de escrita nos indicam que temos muitas dúvidas sobre o caminho que estamos percorrendo, que há questões mal resolvidas. Procuro tentar localizar o que está me incomodando, e nem sempre isso é fácil. Leio os capítulos em voz alta, para escutar o texto. Se me detenho sempre no mesmo ponto da leitura, sei que ali há um problema que ainda não resolvi. Mas jamais evito ou adio o trabalho. Essa angústia de não saber lidar com o capítulo, com o personagem, com a frase, com as palavras faz parte do processo de criação. Faz parte do nosso ofício saber lidar com a angústia da expressão. Meu truque, nesses momentos, chama-se poesia. Tenho na minha mesa de trabalho, alguns dos poetas que admiro. Lê-los, ver a maestria com que eles manipulam as palavras, é sempre inspirador para mim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Considero meu texto pronto quando consigo lê-lo em voz alta, sem que a leitura incomode meus ouvidos. Reescrevo muito os meus textos. E quando vejo que o processo de reescrever está mudando o caminho do livro, faço uma cópia do arquivo e o renomeio. Gog Magog tem dezoito versões, sem contar as alterações que fiz depois da primeira e da segunda prova para publicação.
Poucas pessoas leem meus livros antes de publicados. John, meu marido, é sempre meu primeiro leitor e eu o ouço muito. Mariana Teixeira Soares é uma amiga que sempre lê o primeiro tratamento de meus romances. Minha agente e meus editores também, claro. Mas não gosto de mostrar para amigos, de forma geral. Nem todo mundo sabe ler um texto que ainda não está pronto. Uma opinião danosa pode nos fazer muito estrago. Tento ser cuidadosa nesse sentido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão só escrevo notas e observações para futuras correções. Conheço a tecnologia o suficiente para conseguir escrever, editar e imprimir meus textos. Sei que subutilizo o editor de texto do meu computador. Jamais faço revisões gramaticais eletrônicas, por exemplo. Prefiro fazer o que chamo de “pentear macaco”, que significa ler e reler o texto, para corrigir pequenos problemas de ritmo ou de vocabulário.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Lembro de um professor de lógica, na faculdade de filosofia, que dizia que quando ele queria aprender algo, dava um curso sobre o tema. De certa forma, guardadas as devidas diferenças, o mesmo ocorre comigo ao escrever o livro. A ideia embrionária nunca vem pronta. Geralmente me interesso por um tema, e isso nunca é voluntário. Quando me dou conta, há algo ali, pulsando. O processo de escrita de um novo livro me traz novas questões. Estudo, pesquiso. Tento não olhar para os meus livros que já foram escritos. Acho que nossa criatividade pode ser alimentada de duas formas: com nosso exercício de observação e com a leitura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que é mais fácil falar do que se mantém no meu processo de escrita ao longo dos anos. Eu diria que só minha disciplina é a mesma. Só minha diligência, minha disposição de trabalhar diariamente se mantém. Cada livro coloca uma dificuldade diferente, seja ela temática, de linguagem, de construção de personagens ou de ritmo narrativo. A cada livro, nossa vida é outra. Eu era uma menina quando lancei meu livro. Hoje, quase não me reconheço ao olhar para trás. Essa mudança está na minha literatura, não tem jeito. Nisso reside, na minha opinião, a angústia e a beleza do ofício do escritor. Você aprende gramática, aprende a ter paciência, a ser diligente, a suportar angústias, tudo isso você tem que aprender, se quer ser escritor. Mas você jamais “aprende” a escrever. Ser escritor é buscar esse aprendizado a cada novo livro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Esses dias lendo o livro The evil hours: A biography of post-traumatic stress disorder, do jornalista americano David J. Morris, me deparei com um uma observação que me deixou espantada: a história do estupro ainda não foi escrita, apesar do estupro ser a causa mais comum dos traumas na sociedade moderna. Esse é um livro que não existe e que eu gostaria que fosse escrito. É necessário que alguém o escreva, e esse alguém não sou eu. Há muitos historiadores e especialistas que certamente são mais capacitados que eu para tal tarefa.
Tenho muitos projetos pela frente, alguns da época que escrevi Acqua Toffana, e mantenho um arquivo com eles. Oxalá eu tenha tempo para escrever todos eles.