Patricia Maria Melo Sampaio é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo bem cedo. Organizo coisas da casa, como alguma coisa e vou nadar. Quando volto, tomo café enquanto respondo e-mails e dou uma olhada nas redes sociais. Preparo meu almoço porque tenho várias restrições alimentares. Dependendo do dia, tenho que dar conta da agenda doméstica (consertos em geral, supermercado, feira, farmácia, etc). Neste semestre, vou para a universidade todos os dias por volta das 13h porque estou respondendo pela coordenação da pós-graduação.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor durante o dia. Não consigo escrever à noite e muito menos na madrugada. Gosto de escrever em casa por conta da proximidade da minha biblioteca. Quando não estou em cargos administrativos, vou à universidade apenas para as aulas, sessões de orientação e reuniões. Caso contrário, reservo, pelo menos, um dia para preparar aulas, corrigir provas, revisar textos de orientandos (TCC, iniciação científica, mestrado e doutorado), fazer pareceres e atender outras demandas de escrita (“orelhas”, prefácios e apresentações consomem muito tempo também). Aliás, tem um texto maravilhoso da Karina Kuschnir sobre isso que eu recomendo muito para entender o que é, exatamente, a agenda de uma professora universitária.
Meu computador é cheio de post-its coloridos! Faço um café e atravesso a tarde trabalhando. Vivo correndo contra o tempo e, a rigor, estou sempre devendo algo para alguém.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Com uma agenda dessas é difícil ter uma meta diária. Também gostaria muito de poder sempre escolher o que escrever, mas não posso. Escrevo em períodos concentrados porque tenho que aproveitar o tempo disponível. Talvez quando me aposentar…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Preciso ter tudo na cabeça. Leio a bibliografia de referência, faço notas, transcrevo a documentação. Aliás, esta etapa da transcrição é muito importante para construir ideias claras. É o momento de fazer comparações, cotejar informação, fazer arranjos temáticos e por aí afora… Volto à bibliografia várias vezes por conta disso. Quando as coisas estão organizadas, passo para a escrita. Fico só com “aquele” texto na cabeça todo o tempo e, às vezes, aparecem ideias “epifânicas” nos lugares mais inusitados. Tenho sempre comigo um caderninho para anotá-las. É por isso que não consigo escrever dois artigos ao mesmo tempo e admiro muito quem sabe. Normalmente, uso uma história como mote. Escolho um personagem, um episódio ou uma situação que, de alguma maneira, me guiam na condução do argumento do texto. Na tese, eu tinha epígrafes para cada capítulo. Elas me ajudavam a não esquecer o que eu queria dizer ali. Na maior parte das vezes, a história de abertura vem junto com o título que também funciona como guia para escrita. Organizar a estrutura interna do texto também ajuda muito a não se perder no meio do processo. Ainda assim, existe uma “zona nebulosa” nesta passagem do que está na cabeça para a tela do computador. As palavras, às vezes, são indomáveis. É preciso paciência para enfrentar essas horas de sombra.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho todo o tempo para escrever e as interrupções frequentes prejudicam minha produtividade. Preciso trabalhar de modo sistemático e as travas aparecem se perco o ritmo; isso é muito mais frequente do que eu gostaria. O resultado não é bom porque os textos vão se acumulando e, em algum ponto, preciso parar tudo para me dedicar aos mais urgentes. Como lidar com procrastinação e ansiedade? Não posso dizer que procrastino; minha agenda é muito cheia porque, além da vida e das tarefas acadêmicas, tem a militância em movimentos sociais. Isso acaba comprometendo o ritmo de produção dos textos levando-se em consideração meu modo de escrever. Por outro lado, um projeto longo permite ajustes de agenda, isto é, eu reservo dias para trabalhar exclusivamente neles e isso ajuda a diminuir a ansiedade.
Uma amiga antropóloga me deu um lindo conselho na época da tese que não é sobre “travas” mas sobre leveza. Terminei um capítulo e pedi a ela que lesse. Ela devolveu no mesmo dia e, muito séria, disse: “Amiga, está tudo certo, mas está muito áspero. Só Manoel de Barros resolve isso.” E me deu um livro dele de presente. Esta ficou sendo minha melhor dica ever: tá difícil de escrever? Leia outra coisa. Poesia não tem erro! É preciso lembrar também da natureza do trabalho do historiador que é, de algum modo, contar uma história (ou várias). Gosto de ler livros que constroem boas narrativas. Nos últimos tempos, tenho lido mais Saramago, Joseph Conrad, Gabriel Garcia Márquez, Mia Couto e Alberto Mussa.
Tem também os livros específicos para lidar com as questões da escrita. Gostei demais de Truques da escrita, de Howard Becker, uso sempre o Engenharia do Texto, do Odenildo Sena e ainda acho um primor Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, do Umberto Eco.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso tantas vezes quanto o prazo de entrega permite. Acredito que todo texto precisa de um tempo de descanso. Não se revisa bem no calor da escrita. É preciso dar espaço para as palavras se acomodarem em seus devidos lugares e você só se dá conta dos excessos depois deste prazo de “decantação.” Não tenho hábito de mostrar meus textos para leitura antes da publicação. Era bom na época da pós-graduação quando sempre podia contar com a luxuosa leitura das orientadoras mas hoje isso só acontece com os artigos escritos em parceria.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já escrevi à mão e depois datilografava. Era época do mestrado. Quando comecei a usar o computador com mais frequência no início dos anos 1990, fiz uma transição abrupta porque parei de escrever à mão. Acho que desaprendi, até. Minha letra de “moça de colégio de freiras” precisa de muita concentração para aparecer de novo… Todos os rascunhos são feitos no computador excetuando-se as notas que tomo no caderno de campo. Já usei o Evernote para organizar material mas acabei voltando para minhas fichas mesmo. Gravo ou fotografo a documentação que uso e faço transcrições regulares organizando arquivos de fotos e de textos transcritos. Também costumo fazer bancos de dados em Access quando o tema permite. Já perdi bancos de dados inteiros por obsolescência tecnológica e hoje não confio mais neles.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ideias estão em toda parte. Não é difícil se encantar por um tema em cada esquina, especialmente, quando você já tem anos de profissão, muita coisa guardada e sabe onde encontrar mais. Na maioria das vezes, passo as ideias adiante para meus alunos e alunas. Quem quiser, fica com o tema. Não tenho hábitos para me manter criativa. Não sei como faz isso. Gosto demais do meu trabalho e acho que isso ajuda bastante a manter a energia. Por outro lado, os tempos são outros e as exigências da vida acadêmica nem sempre correspondem aos seus desejos de escrita, como já disse. Isso é um tanto desestimulante.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Meus filhos nasceram na mesma época da dissertação e da tese. Isso fez uma diferença brutal porque todo minuto se torna uma preciosidade; seja para cuidar do bebê, seja para fechar um parágrafo complexo. Lembro das páginas que escrevi enquanto amamentava, e de capítulos que comecei a escrever nos guardanapos do McDonald’s. Tinha uma disciplina feroz no doutorado porque tinha sofrido muito com isso no mestrado. Hoje há muita pressão e a agenda é muito apertada, mas é diferente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários “começos”! Um deles é um livro de culinária amazônica com receitas dos séculos XVII, XVIII e XIX. A ideia é combinar História e Antropologia para fazer uma leitura dos hábitos alimentares, dos ingredientes, dos trânsitos e trocas culturais e experimentar coisas que poucas pessoas sabem fazer hoje. Ando também amadurecendo um projeto na área de História da Ciência que tem me enchido os olhos, a cabeça e as estantes com novos livros, mas isso é para depois.