Nívia Maria Vasconcellos é poeta, escritora e professora, doutora em Literatura e Cultura.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durmo sempre muito tarde, mas procuro acordar antes das 8 horas. Começo meu dia lendo jornais e revistas nacionais e locais, eles vão me acordando para vida. Ainda na cama, vou abrindo as manchetes que mais me chamam atenção. Enquanto leio ou ouço as notícias, vou levantando. Esse hábito, que eu adquiri no tempo em que dava aulas de produção textual e atualidades, migrou dos impressos para os digitais e sua multimidialidade. Tomo café ainda envolvida pelas notícias, não me furto de ir comentando com minha companheira as que mais me abalam. Faço também anotações enquanto leio, algumas notícias não deixam de ser matéria para minha escrita. Depois, vou direto para o computador e começo a realizar, ainda meio que letargicamente, as tarefas. Meus dias durante a semana são muito diferentes um do outro. Tem dia que dou aula, tem dia que escrevo uma resenha, faço revisão e normalização de textos alheios ou tenho reuniões… os afazeres variam muito. De modo geral, não sou uma pessoa de muitas rotinas e, se dependesse de mim, a manhã seria o turno menos produtivo de meu dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meus hábitos de leitura e de escrita em geral atravessam o dia e a noite, podendo adentrar a madrugada. Eu diria que todas as demais atividades que desenvolvo vêm no encalço dessas duas práticas. A escrita de textos acadêmicos ou críticos é mais diurna, já a de ficção ou poesia é mais noturna. Mas não é uma regra. Geralmente, só me programo mesmo para escrever produções científicas ou ensaísticas que têm prazos de entrega estabelecidos.
Quanto aos rituais, minha escrita acaba tendo, muitas vezes, a leitura como disparadora. Eu tenho um hábito maior de leitura do que de escrita. E leio mais poesia do que prosa. Antes, recorria a alguns rituais em momentos nos quais me sentia muito seca, como se nunca tivesse escrito antes. Aqueles momentos em que há tanto vazio que você chega a duvidar que já escreveu algo algum dia, ia testando um ou outro ritual, o que nunca deu certo, de modo que, ao fim e ao cabo, não tenho nenhum. Tomar uma bebida alcoólica ao escrever, por exemplo, pode ser charmoso ou até dar certo para alguém, mas não produz nenhum efeito prático sobre minha escrita. A escrita para mim é um momento de lucidez.
Meu refúgio em momentos de silêncio costuma ser mesmo a leitura, ela é um gatilho, mas nem ela garante a escrita. Não há garantias nunca, cada próxima escrita parece ser sempre a última. Há sempre algo de imponderável nesse exercício. Vou futucando livros e memórias e, quando uma ideia, uma frase ou um verso vêm, eu controlo, trabalho, tento submeter a meu comando, mas para a escrita vir não tem atalho, ou feitiço, atravesso muitos ciclos de abandono sem ter nada que possa fazer contra isso, senão continuar vivendo e lendo, me preparando para esse momento.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando tenho prazo a ser cumprindo, me imponho algumas metas de escrita diária, mas isso ocorre mais com a escrita acadêmica ou com os textos críticos (alguma resenha, algum prefácio ou posfácio, um artigo). Aí, leio, ficho, comento, levo um tempo maturando tudo, releio e escrevo, tudo dentro da deadline estabelecida.
Já a escrita literária, seja em prosa ou em verso, é uma questão muito episódica para mim. Tento escrever um pouco por dia quando já estou com algo iniciado, depois de já ter começado a escrita mesmo. Não fico planejando muito, o texto vai se fazendo à medida que escrevo e reescrevo. Há períodos em que começo um texto e não consigo parar de trabalhar nele até esgotar as possibilidades daquele momento. É como se minha percepção das coisas aguçasse e tudo dialogasse de alguma forma com o que estou escrevendo. Já escrevi muito em meio a aulas, já escrevi no meio do carnaval, na loucura do circuito Barra-Ondina. Em tempos assim, chego a dedicar o dia todo à escrita, adiando o resto o quanto posso. Na maior parte do ano, no entanto, isso não acontece. Vivo de muitos silêncios só preenchidos pela leitura.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita começa sempre pela leitura e pelas reflexões acerca de minhas próprias experiências e observações do mundo. Viver e ler me fazem acumular matéria prima para a escrita. Tenho um processo de elaboração mental também, de ficar refletindo muito sobre temas específicos. Não seria errado dizer, inclusive, que essa elaboração mental é a parte mais demorada do meu processo de escrita. Posso estar fazendo qualquer coisa e, internamente, trabalhando uma ideia que tive. Fico aficionada por um tempo em um tema, explorando mentalmente suas possibilidades, fazendo associações.
Anoto muito em papeis avulsos que nunca mais acho, em notas de celular, em mensagem de áudio para mim mesma, nas margens dos livros. Vou tendo alguns insights e vou deixando registrados pelos cantos. Na peneira do tempo, alguns esqueço, outros perco, alguns transcrevo para o computador. Vez ou outra, revisito os sobreviventes. Sinto como se o começo não tivesse subordinado a mim. Meu processo de escrita se divide em dois momentos muito bem marcados e contrapostos: um contingencial, que tem a ver com o início do processo de escrita; o outro, controlado, que tem a ver com o desenvolvimento da escrita.
O movimento da pesquisa para escrita vai na esteira da transição entre o contingencial e o controlado. Mas, na verdade, a pesquisa continua sempre. Ela vem antes, com as diversas leituras não só de conteúdos, mas também de formas de dizer, e perpassa toda escrita, em algumas mais em outras menos, varia muito conforme o tema trabalhado. Na minha novela A paixão dos suicidas, tive que entrar no mundo dos cigarros, por exemplo, para trazer para o texto marcas e fatos que eu, uma não fumante, desconhecia, mas que eram muito familiares a uma das personagens.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não procrastino a escrita, ela que me procrastina. Fui aprendendo que as travas na escrita são normais e que sempre virão. Claro, não deixo de ficar ansiosa. Lido, constantemente, com a possibilidade de não escrever uma nova poesia nunca mais. Mas me desligo disso também. A literatura é parte significativa do que eu sou, independente de eu estar ou não escrevendo.
Não escrevo nada para atender à expectativa do outro, procuro não pensar nisso na hora da escrita. Talvez me cause mais apreensão saber a resposta do meu ciclo de leitores-críticos-amigos, a quem mostro o texto antes mesmo de publicá-lo, do que de um público que me escapa do alcance. Sinto que, depois de publicado, é como se o texto nem pertencesse mais a mim.
Nada do que escrevo corresponde às minhas expectativas o tempo todo, como vai atender às do outro? Por mais que goste a ponto de publicar, depois sinto que a publicação está um tanto defasada em relação a mim. Eu mudo demais, tenho uma vida muito dinâmica, não tenho quase nada em definitivo, por isso lidar com aquela forma definitiva do texto publicado me desestabiliza um pouco. Adio a publicação enquanto puder e tento não ler meus livros depois de publicados, sempre acho o que melhorar ou até alguns erros que passaram mesmo depois de diversas revisões.
Os trabalhos longos não me causam ansiedade, fico um pouco apreensiva é no momento de torná-los públicos. Na hora do lançamento, da leitura pública, das entrevistas, quando lido com o imprevisto, se as pessoas comparecerão ou não, isso dá certa ansiedade, é um momento de exposição minha, isso me dá mais tensão do que como o outro verá meu trabalho. Não é que eu não me importe com a leitura do outro, mas é porque aí já não há mais nada que eu possa fazer. Claro que quero ser lida, mas não quero policiar a recepção nem quero orientá-la. Fico me trabalhando para não pensar muito mais no livro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou muito autocrítica, sempre acho que tinha um pouco mais a dar. Tenho certo perfeccionismo cruel comigo mesma. Além de ser professora, trabalho profissionalmente com revisão de textos (literários e acadêmicos), mas é aquela história sobre revisar os próprios textos… reviso diversas vezes e ainda sinto que eles necessitam de mais revisão, fico cega diante de minhas palavras. Sempre preciso do olhar do outro. Trabalhando no campo editorial, fui aprendendo que isso é corriqueiro, que a própria editora submete textos à revisão de terceiros independente de quem seja o autor.
Minha companheira é minha primeira leitora. Tenho também alguns poucos amigos a quem chamo de “leitores de cabeceira”, eles leem o texto fresco e acabam sendo um parâmetro para mim, uma espécie de pré-recepção. Eles me dão feedbacks importantes não apenas acerca da escrita. É imprescindível para um escritor ter esse tipo de amizade crítica.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Comecei a escrever quando a ideia de computador particular era ainda ficção científica. Aprendi a digitar na máquina de datilografar de meu pai. No início, mesmo tendo computador em casa, escrevia à caneta primeiro e só depois passava para o computador. Com o tempo, migrei em definitivo para ele. As anotações acontecem no que está ao meu alcance no momento, mas o grosso da produção é realizada diretamente no computador mesmo. Acredito que a plataforma interfere na produção diretamente. A saída do papel para o laptop com certeza impactou a minha escrita. Por exemplo, quase não guardo mais as primeiras versões. O que mais faço é reconstruir o texto em cima do mesmo arquivo até chegar a um ponto em que me satisfiz ou que não tenha mais condições de interferir. Antes, tinha múltiplas versões de meus textos espalhadas pelos cadernos. Escrever no Word também me possibilitou lidar com muitos trechos soltos para depois sair amarrando como um mosaico de múltiplas possibilidades. Com o auxílio da tecnologia, escrever, mais do que nunca, virou um eterno reescrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de uma espécie de limbo. Penso que o esquecimento de muito do que li e vivi vai se acumulando por lá e vai voltando depois disfarçado de imaginação, preenchendo lacunas, causando insights. Elas não vêm do nada, não é iluminação ou mágica, é um processo de retroalimentação mesmo.
Meu dia é atravessado pelos mais diversos tipos de leitura, é essa prática que mais me mantém criativa, assim como o acesso às artes em geral. Além da memória do lido, mobilizo, para a escrita, a memória do vivido. Escrever é dialogar com essas memórias, filtrá-las, remixá-las. Assisto também a muitos filmes, ouço músicas e gosto de viajar, encontrar pessoas. Conversar sobre o que li, assisti, vivi é muito enriquecedor. Penso que conciliar essas experiências diversas com outros momentos de introspecção, de voltar-se para si é imprescindível para manter-se criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a escrever muito nova. Eu tinha um processo um tanto irrefletido e ingênuo, muito reativo ao que vivia, era uma escrita despretensiosa, movida por uma necessidade urgente de escrever o que sentia, meu espanto diante da vida e de sua efemeridade. Tudo que escrevia tinha um quê introspectivo e informe, mais calcado num eu ávido por se expressar. Com o tempo, o processo de escrita continuou necessário, mas passou a ser um tanto mais racional, mais refletido, até mesmo induzido. Fui estudando e me cercando de modelos da literatura, aprendendo mais técnicas, me abrindo a novos temas, para o outro e para novas formas de escrita. Fui reescrevendo mais, sendo mais seletiva. Agora, me percebo arriscando mais e tendo mais consciência da escrita como uma experiência com a linguagem. A escrita não apenas como meio de expressão de um eu, mas também como um exercício com as palavras.
Não gosto muito de voltar a meus textos depois de publicados. Não poder alterá-los mais é um tanto angustiante. Talvez por isso goste de declamá-los, vou alterando um verso aqui outro acolá, a meu bel-prazer. Hoje, tenho a consciência de que fiz o melhor que podia naquele momento. Os textos publicados dizem mais sobre o que você é capaz de escrever do que sobre o que você gostaria de ter escrito. Aprendi com a prática que cada novo texto é uma estreia, é uma nova chance e que escrever é sempre um estar aprendendo a escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ainda estou trabalhando no lançamento de meu último livro de poesias: Cãibra de Nó, por isso estou sem projetos novos. Tenho um que foi interrompido pela pandemia e que gostaria de retomar: Mousikê, grupo literomusical do qual faço parte. Atuo nele como declamadora e também sou responsável pela composição das letras e dos poemas. Nele, posso exercer a minha faceta de letrista e de declamadora e misturar música com poesia, prática que gosto muito de executar no palco ao vivo, com banda. Fizemos um álbum chamado A Vênus de Willendorf, as músicas, todas próprias, estão disponíveis nas plataformas de streaming. Queria voltar com os shows ao vivo.
Tem tantos livros já lançados que eu ainda não pude ler, sempre fico angustiada com novos lançamentos. A pilha de livros a serem lidos é inesgotável. Prefiro não me preocupar com um que ainda nem existe.