Nilma Lacerda é escritora, tradutora e pesquisadora, autora de Manual de tapeçaria, Pena de ganso e Pégaso na sala de jantar.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Escrever é tecnologia, e tecnologia de ponta, aspecto em geral sonegado a esta prática cultural de cerca de seis mil anos. Não deveria, portanto, contar com destaque maior do que o emprestado a outras práticas da cultura contemporânea, como telefonar, dançar, encontrar amigos. Quem está interessado em saber “como você encontra amigos?”, ou “como você telefona”? Mas o apelo especial presente no ato de escrever está na manifestação de uma condição estruturada na falta, cujo deságue se dá na fala e na escrita. Falamos todo o tempo, escrevemos em boa parte desse tempo, e a maior parte do que se fala e se escreve é volátil, perfume posto pela manhã a dissipar-se no correr do dia; o que permanece pode ser documento ou literatura.
Como professora, pesquisadora, escritora de literatura, meus escritos alternam-se entre as duas condições, numa rotina de escrita que me pede para acordar em horário de consenso, entre seis e sete horas. Entro no banho, cuido da cachorra, vez por outra faço o café, molho o jardim. Se o horário de trabalho na universidade for pela manhã, me movimento imediatamente para isso. Se for à tarde ou à noite, tenho alguma liberdade para perambular por papéis sobre a mesa, por algum texto em meio de caminho ou para atender às necessidades da agenda.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gostaria de escrever pela manhã, logo após o café. Gostaria, mas costumo consegui-lo apenas em períodos de férias ou de prazo apertado para entrega de um trabalho, quando costumo escrever com gana. A escrita integrou-se ao meu cotidiano desde a alfabetização, como parte essencial da identidade; fez-se tecnologia indispensável à profissional ocupada com a formação docente, formação de leitoras e leitores e criação literária. A escritora selou relações entre escrita e estética.
Ao escrever, não costumo distinguir tempos e modos de qualquer uma das minhas formas de ser; em meio à redação de um artigo científico posso parar para cuidar de um texto literário, cujo núcleo ou frase me tenha chegado, e vice-versa. A cena da escrita, como a da leitura, pede concentração e costuma trazer consigo certo charme, posto em moda especialmente desde a segunda metade do século XX, charme que talvez se perca na medida em que todos possam escrever e publicar seu pensamento — ideal do Iluminismo ainda não alcançado. Quando todas as pessoas escreverem, quando todos puderem exercer sua função autor, escrever terá ainda seu charme e sua dificuldade? Você, José Nunes, mostra consciência de que está colaborando de forma ativa para a perda das dificuldades da escrita. Já avaliou que essa perda trará consigo a banalização do ato de escrever? Banalizar significa ser comum a todas as pessoas: como humanista e democrata convicta, anseio por esta banalização. De todo modo, escrever é um trabalho, e prescindo de rituais para seu exercício. É sentar, preparar o material, computador ou lápis e papel, e começar. E continuar. Continuar, na consciência de que a escrita traz o pão. Aquele que paga as contas, que afasta a desrazão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como escrever é trabalho, escrevo sempre, procurando organizar as várias demandas. Mas acontece de a disciplina dançar conforme a música, de braço com o desejo. Ou seja: posso ter um trabalho urgente para a academia e interrompê-lo para escrever uma crônica, avançar na escrita de um conto. Além de escrever como professora, dou aulas, vou a congressos, faço outros tipos de intervenção, e a perspectiva de meta de produção diária não se mostra viável. Escrita não cabe em linha de produção. Como estabelecer número de laudas de criação, reflexão, por dia? Como ignorar que escrita, embora seja tecnologia, depende de subjetividade, esse lugar em que o humano se concentra e de onde se irradia?
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pena de ganso, um dos meus livros de que mais gosto, começou com um título e uma frase. Havia um conceito já estabelecido, e a escrita começou com “Você não vai precisar de guarda-chuva”, num dia em que saí e só quando estava do lado de fora dei de cara com o tempo carregado. Avaliei as chances de chuva o melhor que pude e, decidida a não voltar, usei a frase para me encorajar. E logo vi que ela dizia mais do que dizia. Era o início de uma novela que me trouxe prêmios e me traz retornos emocionados de leitoras, leitores.
Meu primeiro romance, Manual de tapeçaria, começou também com uma primeira frase e prosseguiu sem plano por um bom tempo, numa escrita alimentada pela intuição, a arquitetura firmando-se pouco a pouco. Da mesma forma, Água de anil, um conto, estruturou-se conforme avançava na escrita. Mas voltemos a Pena de ganso, que demandou pesquisa sobre história da leitura e da escrita, e cuja realização foi prazerosa e doída, mas que fluiu de maneira orgânica e dentro do tempo previsto para inscrição em um prêmio literário. Outros dois romances, ainda inéditos, me custaram muito trabalho e coragem para fazer o trânsito do plano conceitual para o vamos ver da escrita. E ambos têm problemas que esperam soluções. É uma das metas para este ano e o próximo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrever é difícil, costumo ressaltar. A escrita é um exercício de subjetividade, exposição de um eu em sua forma de pensar e sentir em face da realidade ou do imaginário; nela cabem a subjetividade manifesta, posta no texto, entregue a outros sujeitos por meio da leitura, e a subjetividade fantasmática, experiência íntima e extratextual do autor.
No exercício da subjetividade manifesta, o sujeito, livre em sua expressão, deve ter domínio conceitual daquilo que quer expressar, no campo das ideias ou da representação, e igual domínio do idioma em que se realiza essa expressão. De forma alguma, estamos a pensar em purismo linguístico ou exercício de preciosismos, mas de clareza expressiva, de coerência e coesão textual. Concordância e regência adequadas sinalizam a chegada do leitor ao cerne do texto, seja ele científico ou literário. Há os revisores, certo, mas autoria pressupõe poder plástico e arquitetônico, a língua como massa de moldar e de estruturar.
Dicionário é ferramenta indispensável, e sempre mais de um: de significados, de sinônimos, de antônimos, de etimologia, regência, verbos. Se nos ativermos ao campo da tradução — escrita que me traz muito prazer —, é essencial haver tantos dicionários quanto possível, e de mais de um idioma. Garantidos esses aspectos técnicos, a luta com a escrita sobe para outro patamar, nomeado no início desta questão: o da subjetividade fantasmática, o temor de não conseguir escrever por qualquer deficiência íntima, o mais das vezes imaginária. Entre as referências de contemporâneos e amigos de Clarice Lispector há menção de que este sentimento assaltava algumas vezes a escritora, esta mulher que é puro verbo, cuja escrita inaugura uma condição. Sem tê-lo experimentado dessa forma, posso compreender o sofrimento que é sentir-se ou imaginar-se alijada da escrita, no cumprimento de demandas escolares ou quando se escreve para além das necessárias razões.
Algumas experiências pessoais me fizeram lidar melhor com o que posso chamar de subjetividade fantasmática, responsável por procrastinar o início da escrita, por meio de inúmeras estratégias — ir ao banheiro, comer, brincar com a cachorra, olhar a paisagem. Sei que escrever dói, que exige nervos e pede coragem, mas deve exigir principalmente que o sujeito da escrita não se levante da cadeira, que resista à fuga do espaço vazio. Nos projetos longos, o perigo maior será o da dispersão, ou da megalomania, e sei bem do que falo. Desenvolvo desde 1999, um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina, projeto de pesquisa e escrita que passeia por diversos campos das ciências sociais e humanas. Há cerca de dois anos, parei a revisão do que tinha escrito na perspectiva de um possível desdobramento em exposição, que ainda não aconteceu. Só recentemente retomei a revisão e produção de novas páginas. Descrença ou impotência são outros ângulos, verificáveis na elaboração de um romance, uma monografia, dissertação ou tese. Quantas pessoas abrem mão de um título acadêmico, por não conseguir realizar o trabalho final; quantos bons e alentados projetos literários deixam de acontecer, por desalento ou impossibilidade do indivíduo de manter um longo projeto?
Um aspecto bizarro dos problemas apontados, sobretudo o relativo ao medo de não corresponder às expectativas, pode estar na base do medo do êxito, assunto de estudo de Freud (“Os que fracassam ao triunfar”). Como fazer face a esses problemas reais, ainda que seu alimento venha de construções fantasmáticas? Recomendo a leitura de entrevistas de grandes autores ou autoras, a leitura de biografias de artistas em que a dúvida e todos os seus correlatos aparecem como marca e medida do humano. “Como eu escrevo” pode ser de inestimável ajuda a quem, enredado em seus fantasmas, sucumbe às reais dificuldades da escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrevo realizando ajustes à medida que trabalho. Após a primeira versão completa, costumo fazer 4 ou 5 vezes revisões, buscando dar um tempo para o texto decantar, após o que você logo observa as repetições, os solecismos, as palavras inadequadas, as construções confusas. Vê com clareza o que excede: a melhor recomendação costuma ser cortar, cortar e cortar. Nunca me arrependi do que cortei, e em leituras posteriores fiquei admirada da leveza e beleza que o texto ganhou.
Comecei a escrever em uma oficina literária com Cyro dos Anjos, no mestrado em letras vernáculas na Universidade Federal do Rio de Janeiro, final dos anos 1970. Mais tarde, ministrando oficina em alguns espaços, integrei-me a um grupo de que faço parte até hoje, Estilingues — seis autoras, um autor. Ora, escrever em oficina implica mostrar e compartilhar o próprio texto, dar palpite no texto do outro. Thomas Mann lia partes de Doutor Fausto para familiares e amigos enquanto escrevia o romance que é considerado uma de suas obras-primas. Faz bem a todos a existência de outros leitores antes que a obra chegue ao editor ou ao leitor crítico.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Para escrever, uso instrumentos e suportes variados com desenvoltura e intimidade, de forma concomitante, às vezes, em trânsito erótico entre lápis e papel, tecla e tela, ou mesmo a saudável suruba que vai da tecla ao lápis, da tela ao papel; as revisões, no entanto, se fazem sempre à mão, sobre o texto impresso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de minhas inquietações. Não cultivo hábitos para manter criatividade, salvo conversar com as pessoas, ler, manter estado de fruição estética e existencial, andar pela rua curiosa e atenta, assistir a filmes, ir a teatros, exposições, dar aulas. Ouvir o murmúrio das gentes, auscultar a dor do mundo. Ao escrever, costumo ler obras que me alimentem, em temática e estilo. Sustento a biblioteca interna, deixo pistas disso pelos meus livros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como disse Gilberto Mendonça Teles em sua entrevista neste espaço, não tenho o que dizer à escritora que fui, apenas à que serei. Quero conservar o compromisso com a escrita enquanto produção vital, artefato de mão e mente, expressão da contemporaneidade.
A produção literária intensificou a presença da escrita em minha vida. A prática constante, a maturidade alcançada, o alimento do visionarismo (não há professora ou escritora no Brasil sem esses atributos, como diz Silviano Santiago; eu diria que em toda parte essas são profissões de gente que vive no futuro) afetam minha escrita, pulsão e escolha de ser e estar no mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quando vi que não ia precisar de guarda-chuva e efetivamente não precisei dele, estava em meu primeiro período de pós-doutorado na França, sob supervisão de Roger Chartier. Comecei a acalentar nesse tempo a ideia de um romance sobre essa tecnologia sem servo nem patrão, a escrita. Era o primeiro ano do século XXI. Tenho algum material, um esquema mental básico. Agora, em vias de me aposentar da universidade pública, é possível que consiga fazê-lo. Quanto ao livro que gostaria de ler e que, supostamente, não existiria ainda, como saber? Precisaria ter esgotado o mundo.
Nenhuma pergunta sobre gênero neste oportuno questionário. Noventa anos de Um teto todo seu; quase oitenta, de Clarice Lispector. O ethos de artista sofre ainda diferença se instalado no feminino ou no masculino? As condições de escrita e de publicação igualam-se para mulheres e para homens? Que lugar ocupam os atributos de gênero na construção de uma carreira literária? Me lembro de Caio Graco, ao telefone, me perguntar se eu era mulher, porque meu romance (Manual de tapeçaria) era muito viril. Fiquei um bocado espantada, dei uma resposta bem-humorada. Algumas das parcelas na soma do que sou me foram outorgadas pela sociedade, pela história familiar. O magistério me foi outorgado como primeiro ofício. Para os meus pais, era o melhor para um caminho feminino; para minha mãe, especialmente, era o resgate da perspectiva familiar de estudos limitados para a condição feminina.
No painel fotográfico na sala principal da casa de Mário de Andrade, em que estão representados os modernistas, não há uma só mulher, e elas estiveram lá. Hoje, somos bem mais numerosas na cena da escrita e da arte, mas a desigualdade em relação aos homens ainda é forte, e precisamos por vezes pagar preços de que eles são, em geral, eximidos.
Demorei a perceber meu talento, mais ainda a acreditar nele, e não sei qual das condições foi responsável por isso, se o gênero, o ofício outorgado ou minhas condições intrínsecas. A crença de que primeiro a obrigação, depois a devoção, terá tido sua parte capital nesse trajeto, embora tal obrigação tenha-se mesclado à devoção, dar aula é uma forma de escrever, escrever é uma forma de dar aula. E muita escrita me veio mesmo daí, me vem até hoje.
Segui por opção um caminho do feminino, que fui definindo com o companheiro: liberdade e respeito, as filhas que decidimos, as rotas que empreendemos. Mantenho meu emprego, na perspectiva da escritora Teolinda Gersão que defende a importância de um ofício além da escrita; a moçambicana Paulina Chiziane fala no sustento pelo próprio trabalho. Então? “Pão ou pães, é questão de opiniães”, poderei dizer, ao fim e ao cabo? Desde que minha personagem Aurora, de Pena de ganso, tenha o direito de ir à escola e tornar-se doutora como seus irmãos homens, pãos ou pães, tanto fará.