Nara Vidal é escritora, tradutora e professora, autora de “Sorte” e “Mapas para Desaparecer”.

A proposta do projeto Como eu escrevo é notável. Talvez menos interessante seja a minha rotina de escrita e, crucialmente, a razão deve ser porque me falta essa repetição diária. Repetição que, para se justificar como exercício, precisa acontecer com características familiares e identificáveis a cada vez. Não é o caso.
Mas talvez seja a falta de rotina a repetição que mais se estabelece nos meus dias. Não é a primeira vez que participo deste projeto. Quando há quatro ou cinco anos falei sobre meu dia-dia escrevendo, os tempos eram outros, a casa era outra, os filhos eram criancinhas, eu estava em outro lugar.
Além dessa diferença dos tempos, voltei há poucas semanas de uma residência literária em Portugal – um convite da Fundação Dom Luís I, em Cascais – onde fiquei dois meses inteiros e a única função da qual eu me ocupava era exatamente escrever. Quando cheguei em Portugal, demorei cerca de duas semanas para entender que estava em paz para trabalhar. A falta de interrupções, a falta de demandas, a falta de ouvir alguém me chamando para me tirar do cerne de um pensamento que pulava para a página foram faltas que me assustaram, no começo. Quase em pânico. Mas é claro que nos acostumamos com o que é bom numa velocidade alarmante. A quem me perguntava se eu sentia falta dos filhos, não respondia nada. É uma pergunta tola porque a resposta é óbvia. Mas o que eu gostava mesmo de elaborar era sobre a questão de estar longe deles, trabalhando, escrevendo, pesquisando, lendo. A rotina durante a residência literária era tão fora da realidade que talvez não deva falar dela, a não ser que envolvia acordar no quarto 262 de um hotel e ir direto nadar, tomar café, banho, ligar para os filhos, escrever, almoçar, caminhar pela orla, ler, escrever, andar de bicicleta na orla, tomar café, ler num café na marina, mudar do café para um vinho na marina, continuar a ler, tomar outro vinho ou tomar outro banho, pegar o trem para Lisboa, encontrar pessoas em Lisboa, dormir em Lisboa ou voltar para Cascais. Havia dia para tudo.
Uma vida mesmo tão boa que ficou suspensa, como se fosse um parêntese, um respiro para então, poder voltar fortalecida ao chão, com o cuidado para pousar não com a cara, mas com os pés na terra. A residência ecoa, continua comigo e pode ser que fique sempre, enquanto eu existir porque aqueles foram meses extraordinários. Eu falei a minha língua sem interrupções, diariamente. Estive completamente impregnada dela. Aprendi muito. Aprendi, inclusive, que ficar sem o português é algo que não me interessa. Há vinte anos na Inglaterra, onde, hoje, tenho raízes que são filhos, praticar a minha fala, organizar pensamentos e argumentos na minha língua e exercitar essa essência foram um encontro. Tardio, mas um encontro. Como a minha vida parece mesmo tardia, o encontro veio em boa hora. É estranho pensar que até o trinta e sete eu existia sem escrever. Marco aqui que tenho, hoje, quarenta e sete e uma falta de rotina para escrever que serve o propósito de estar alerta e pronta para extraordinários tempos tardios.
Fora a residência, como eu escrevo é simples: quando dá. Às vezes, sempre dá.