Monique Malcher é escritora, artista plástica, doutoranda em Ciências Humanas e autora de “Flor de Gume”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Vivo em um mundo noturno praticamente, vou dormir sempre pela manhã quando o cheiro de café dos vizinhos chega e acordo na hora do almoço. Mesmo assim insisto em tomar uma boa xícara de café, é uma questão de apertar aventuras alimentícias no tempo (risos). Começo meu dia procurando o celular para anotar alguma frase que me veio durante o sono ou um pensamento que acordou comigo. Respondo mensagens, dificilmente deixo acumular e-mails, pedidos ou convites, saber que tenho pendências causa um caos mental que me impede de criar a bagunça que interessa, a que vai virar um texto. Depois de fazer isso geralmente leio um pouco ou escrevo algo da pós-graduação, no meio da tarde monto minha mesa para pintar algum retrato ou conecto a mesa digitalizadora ao computador para produzir uma colagem. É o começo de um processo de relaxamento artístico que me leva ao momento de escrever, que geralmente chega durante o começo da noite. Amanhecemos, eu e as palavras.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou íntima da noite e da madrugada, pensei que com o tempo isso mudaria, que era um comportamento adolescente passageiro, mas ele não foi embora, pelo menos até os meus 31 anos. Não significa que eu não escreva durante o dia, mas a noite sempre me dá prosas mais encorpadas. Acredito que escrevo com o corpo inteiro e esse é o horário em que sinto que posso nadar mil braçadas por minuto. Meu ritual de preparação para escrever acontece com muita rapidez, não preparo nada de comer ou tomar, não me preocupo em arrumar mesa ou criar um ambiente de silêncio. É um ritual que dura segundos, vem a vontade, faço um coque nos cabelos, fumo um cigarro, respiro fundo como se fosse mergulhar, o interessante é que visualizo essa cena sabendo que não sei nadar, coloco uma música que me cause o sentimento que quero ter para aquele texto em específico. Então digito sem parar, sem pensar em pontuações, parágrafos, julgamentos. Eu apenas nado martelando as teclas do computador sem olhar para a tela, ao mesmo tempo não estou ali, me sinto dentro de uma garrafa boiando no rio durante a noite. Não penso em estruturas ou organizações, apenas no tema e na personagem. Depois vou alinhavar essas partes do monstro com calma em um segundo momento ao voltar desse transe.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias porque tudo que crio nasce de um sentimento que beira o incômodo, viver é estar incomodada o tempo todo para mim. Não no sentido de alguém que reclama, mas que sabe que a sociedade que a gente vive – e de certa forma constrói – é um ambiente horripilante e encarcerador, principalmente para as mulheres. Não sou uma máquina de escrever como já me falaram, apenas uma casa atormentada de pensamentos. São nas mulheres com suas não universalidades que penso ao escrever ou nos sentimentos que as envolvem. Minha meta diária não se ancora nos números, não me dou bem com eles. Prefiro me concentrar na meta de escrever o que me faça sentir que fiz algo com algum potencial de ficar bom no futuro, de sentir que não tenho mais tanto incômodo e agonia no peito naquele dia, é assim que sei que alcancei minha meta de escrita, a leveza que volta a habitar dentro de mim me fala que chega por hoje.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Algumas vezes abro meu bloco de notas do celular e faço uma leitura rápida das notas que coloquei ali, ideias, frases, uma música em especial, como quem olha um cardápio e ao mesmo tempo está com muita fome, não perco tempo e escolho uma ou duas notas dali para pensar sobre e puxar um fio dali para tecer. Não acredito em inspiração, nunca me falta assunto exatamente porque eu não castro pensamentos e ideias, anoto absolutamente cada preciosidade e porcaria, isso não significa que vou abocanhar tudo, mas é bom e confortável ter opções. Minha dificuldade não está nos começos, mas em controlar a preocupação excessiva com o ritmo e como soa cada frase. Passo muito tempo agarrada com um frase na hora da revisão, releio incansáveis vezes em voz alta, às vezes canto as frases… a oralidade é muito importante nesse processo, quero que minhas histórias soem bem ao serem lidas de uma pessoa para outra, quero participar da intimidade do som, da troca. É um comportamento ode para minhas avós, que eram ótimas contadoras de histórias. Também fico obcecada pela pesquisa, é uma parte do processo que me encanta, às vezes me pego lendo tudo sobre mecânica, baleias, sonhos… tudo que parece de começo não ser importante no processo e em algum momento se torna.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não consigo pensar em procrastinação quando penso em literatura, a dor de escrever está mais presente no meu trabalho como pesquisadora, por se tratar de um estilo de texto diferente. Os momentos ou períodos que passei sem escrever não são períodos que eu considere procrastinadores. É necessário um respiro em determinados momentos, para que eu consiga observar melhor o que é de ordem externa e interna, que possa dar ao meu corpo (e nisso incluo a mente) o melhor desse caos que é o mundo. Sinto que escrevo mesmo quando não estou efetivamente escrevendo, construo muita coisa durante dias apenas pensando nelas. Não tenho medo do que as pessoas vão pensar sobre um trabalho novo, meu medo é não me castrar de fazer as coisas da forma que acredito por auto boicote. Pode parecer egocêntrico, mas se me agrado com o que escrevo… com certeza aquele livro, história… vai ter a intensidade e a sinceridade que precisa, esse tipo de sentimento se agarra nas paredes da obra e os leitores sentem e se conectam. Qual o motivo de gastar ansiedade com a aprovação das pessoas se você sabe que nem todas as pessoas vão gostar? Dou o melhor de mim, se isso não for o suficiente… sinto muito. Projetos longos combinam comigo, tenho um acordo bom com o tempo, ele faz com que a visão se aprimore e a prática seja ainda melhor. Me importo com a qualidade do que crio, e o tempo é relativo. Não me culpo se escrever tudo em poucos dias, meses ou anos, cada projeto delimita sua passagem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Até que eu consiga ler em voz alta sem que ele trave ou quantas vezes for necessário. Sempre deixando ele dormir no mínimo por um dia, mas já publiquei coisas que escrevi no mesmo dia, mas que passaram por quase dez revisões durante o dia inteiro. Mostro bastante para as mesmas pessoas, que são sempre amigas e amigos próximos que são leitores de narrativas que conversam comigo ou escrevem de modo que acho ousado e fora da caixa. Gosto de gente que tem gostos considerados estranhos e loucos para ler o que escrevo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Absolutamente romântica e perfeita. Não me vejo escrevendo trabalhos longos na mão, apesar de ter a letra bonita por insistência da minha mãe em praticar caligrafia. Uso bastante a nuvem para guardar textos, ideias… e uso muito o celular para anotar pensamentos e gravar sons que me interessam, como a risada de alguém no ônibus. Depois ouço essas gravações e uso para alguma cena ou personagem. Fico ouvindo de forma repetida até terminar de escrever a parte que preciso. Cadernos uso como diários, registros de viagens ou para fazer anotações em festas quando tenho ideias bêbada ou entediada. Tenho um caderno que vários amigos desabafaram intimidades anonimamente, esse caderno circulava quando íamos em algum bar, pretendo no futuro fazer algo independente com esse material.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minha criatividade é filha da minha vontade de viver de forma intensa cada situação e pessoa. Minhas ideias surgem bastante de conversas com amizades antigas com quem tenho intimidade o suficiente para falar sobre absolutamente qualquer assunto. Notícias que me fazem chorar, situações que me instigam o ódio e das perdas, não só da morte em si, mas de todas as pequenas mortes do que se vai e precisa ir. O exterior me dá muitas ideias, mas o mundo interior, com certeza, ganha. Sou uma pessoa extremamente ansiosa com um fluxo de pensamentos excessivo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Consegui entender que existe um método no meu caos e comecei a criar uma organização própria que me impulsionou ainda mais. Abandonei métodos prontos de escrita e a tentativa de soar como uma voz masculina, encontrei a minha e parei de sufocar minhas diferenças. Parei de escrever imaginando que sentavam comigo todas as pessoas do mundo, eu sentia que tinha que agradar e não poderia falar sobre certos assuntos. Quando me livrei disso me encontrei. Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos eu diria não mude nada, faça tudo exatamente igual, não tente sufocar sentimentos de ódio ou amor, porque os erros que você cometeu (e vai cometer) foram absolutamente necessários. Apenas não pare de escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou trabalhando no momento em um romance, gosto de me manter nesse presente, ele envolve cartas de baralho cigano, relação mãe e filha, acúmulos e suicídio. Sigo sem compromisso com gênero literário, talvez a prosa poética seja um bom conceito para o que faço e pretendo continuar fazendo. Em algum momento penso em uma narrativa, ainda não sei bem o formato, que traga uma personagem telemarketing, porque tenho interesse em falar de mulheres e relações de trabalho, principalmente em um contexto nortista. Acredito que todos os livros que quero ler já existem em uma dimensão que o mercado editorial não ignora mulheres nortistas, nordestinas e das periferias do Brasil. Visualizo que esses livros estão nascendo dos punhos e mentes de mulheres que sentem a fúria dos nossos tempos.