Milena Martins Moura é poeta, tradutora e editora da revista feminista cassandra.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho todas as rotinas que se possa imaginar. Tenho uma rotina para levantar da cama e calçar os chinelos; para dar comida aos meus dois gatos, Erwin Shrodinger e Oscar Wild (ele é selvagem); para fazer um café nem muito forte nem muito fraco e colocar os pratos para secar no escorredor. Como pessoa autista autodiagnosticada na vida adulta (e pior, mulher autista, ainda correndo atrás do laudo oficial, que aqui no nosso país é um troço difícil de conseguir quando se é adulto e ainda mais mulher), rotinas são o que me dá a ilusão de controlar o caos. Um ledo engano/guilty pleasure que me permite não surtar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto das manhãs, porque nelas há silêncio. Não me entendam mal, moro num bairro do subúrbio carioca bem bonitinho, casas baixinhas, árvores grandes. Mas onde passa com frequência o carro dos ovos ou do camarão, risos. De manhã, os gatos se aconchegam nos meus pés, o alarme da garagem da vila vizinha toca pouco, os pássaros estão cantando, há uma brisa fresca no inverno e um calor menos modorrento no verão.
Como a poesia não paga as contas e os boletos não estão nem aí para os meus sonhos, sou tradutora de profissão. Isso significa umas coisas boas (ou semi): trabalho de casa mesmo sem pandemias e tenho liberdade em fazer meus horários (o lado ruim é que às vezes o dia de trabalho vira noite e madrugada, but then again, quem nunca?).
Por isso, hoje posso escolher um pouco melhor em que momento escrever, comer, tomar banho, passar mão na barriguinha de gato (tenta aí e me fala se não é um bom calmante!), escrever um pouco mais, editar a revista etc.
Nem sempre foi assim, afinal, que me desculpem os sonhos, pagar as contas é fundamental, e por muitos anos minhas manhãs foram passadas nos ônibus da vida indo para os empregos da vida. E meus rabiscos foram escritos em cadernos com caligrafias tremidas por causa das freadas inesperadas dos ônibus da vida e do balanço característico das ruas esburacadas do Rio.
Hoje, levanto bem cedo, provavelmente mais do que muitos considerariam aceitável, pego um café e vou editar ainda cedinho a cassandra, revista de artes e literatura voltada completamente para o trabalho de mulheres. Pego mais um café (essa parte é importante) e rabisco algumas coisas – estou sempre rabiscando coisas, que possam vir a ser um poema ou um conto. Às vezes os rabiscos se emancipam, às vezes morrem rabiscos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu rabisco todos os dias, conta como escrever? risos. A questão é que nem sempre se tem o tempo ou o local apropriado para levar à frente uma ideia e muitas vezes os prazos dos trabalhos não permitem também. Em especial a minha poesia (a prosa nem tanto) é muito pensada, escrutinada, burilada, amaciada no martelo feito carne dura. Isso demanda tempo, silêncio, solidão e uma cadeira ergonômica. Então eu vou rabiscando tudo que me aparece e guardo para o momento propício. Até hoje, a frase “viver é o que acontece depois da tragédia” está morando apenas no caderninho e não sei o que fazer com ela. Como ela, muitas boas ideias vão morrendo pelo caminho quando se tem prazos e contas.
Mas sempre existe aquele dia em que tudo funciona e eu posso sentar e escrever. Pego as ideias todas guardadas na gaveta e vou juntando, ligando, vendo aonde vão dar. Nesses dias, algumas coisas bem legais podem nascer, que é o que dá o gás pra insistir nessa doideira de ser artista num país que não ama muito seus artistas não.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uma vez encontrado o momento/ambiente certo para a escrita, reúno todas as escrevinhações e vou tentando montar com elas o quebra-cabeça poema.
Existem aqueles poemas que quase se constroem sozinhos, vão do rabisco ao completo sem sobressaltos. São fruto de épocas em que a minha cabeça está muito focada em algo. Foi assim com “Cinturão”, por exemplo, poema erótico que perpassa astronomia e tem alguns jogos de palavras interessantes. Meu hiperfoco em astronomia ajudou a transformar meus sinais no braço, que me lembram o citurão de Órion, em uma poesia sobre nudez e entrega.
Por outro lado, existem poemas que nascem de uma ideia rabiscada, mas se transformam no meio do caminho. Foi assim com “O cordeiro e os pecados dividindo o pão”, cujo mote original era que os caçulas do Egito se sentiram mais aliviados por terem permanecido vivos do que tristes pela morte dos irmãos primogênitos. E o poema acabou ganhando um cunho de protesto que não estava na ideia original. Isso depois de algumas horas malhando as palavras.
Esse movimento, do anotar ao realmente escrever, é sempre muito surpreendente para mim. Gosto de escrever poemas fechados, imagéticos, que circulem um universo específico, mas tenham um ritmo de leitura e de fala, e isso faz com que, algumas vezes, a escrita seja dura de engolir. Conseguir a palavra certa nem sempre é fácil. E o final perfeito às vezes precisa ficar no forno alguns dias pra crescer.
Por isso, tem momentos em que a prosa me salva. Simplesmente saio escrevendo e vejo aonde vai dar, sem as mesmas amarras. Pode parecer condenável, mas, para alguém que passa vinte minutos no mesmo verso e arruma os copos na estante da direita para a esquerda por ordem de tamanho, é um bom exercício de soltura. Às vezes sai até coisa boa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Minha maior trava será sempre a falta de tempo/lugar. O ambiente faz muita diferença. Silêncio, solidão e tempo hábil são cruciais para a minha escrita e isso nem sempre é uma possibilidade. Uma vez nessa bolha propícia, escrever é consequência.
Quanto às expectativas, fui aprendendo, ao longo do tempo, que sempre há pessoas que gostam e outras que não gostam da obra de um artista. O meu estilo não vai agradar todo mundo, principalmente com essa minha mania de dessacralizar o sagrado e meter religião e putaria no mesmo poema. Principalmente com essa minha mania maior ainda de falar do corpo da mulher como se fosse limpo, o que ele é, e dela, o que ele é, e livre, o que ele devia ser. Então eu só escrevo e espero que não me cancelem, risos.
Todo poema é um projeto bem longo, passo muito tempo no mesmo poema, mudando, ajeitando, deixando guardado, pegando de volta e mudando mais e mais até dar por acabado. Nesse meio tempo, tem sempre algum outro poema que surge, que sai mais fluido e rápido e eu jogo logo pro universo. O mais importante, para mim, é que, quando estiver pronto, o poema esteja pronto. Isso significa que, uma vez dado por terminado, aquele poema vai ficar exatamente daquele jeito. Se eu não gostar mais dele, não ponho em livro, jogo fora, mas não mudo mais uma vírgula, até porque não uso vírgula.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso incansavelmente. Se tem uma coisa que eu julgo inaceitável é o poema de uma revisora de formação sair com um typo qualquer, o que já aconteceu, me julguem!
Quando considero um poema pronto, eu costumo sair espalhando. Boto no Instagram, no Fazia Poesia, de que faço parte, na cassandra, que edito juntamente com a Cecília Lobo. Se o poema tem a ver com neurodiversidade, mando para minha coluna na Tamarina Literária, onde falo sobre o tema, principalmente sob a ótica autista. Mando para revistas, antologias. Saio espalhando. Não tenho mais esse medo de mostrar o que eu escrevo, porque, como eu disse, sempre haverá quem não goste, mas, afinal, se eu gostei então pode ser que mais alguém goste também.
Com o que eu escrevo, eu costumo ter um objetivo. Não é que eu faça ativismo, exatamente. Mas cada poema tem seu propósito. Seja ele sobre putaria, seja ele sobre a necropolítica fascista do governo federal. Então eu quero mesmo é que o poema saia das minhas mãos e vá passar sua mensagem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Mano, se alguém aqui visse a minha caligrafia nem faria essa pergunta! risos.
Eu rabisco ideias num caderninho e me esforço para entender depois o que escrevi. Mas o poema mesmo, escrevo no computador. Às vezes até no celular (muitos poemas meus, daqueles que saem mais fácil, foram escritos direto no feed do Instagram).
Além da caligrafia péssima, eu também digito bem mais rápido do que manuscrevo, o que ajuda bastante, sobretudo na prosa, que me sai mais fluida e ligeira.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Alguns temas são bastante recorrentes na minha produção artística, mesmo na música ou nas artes plásticas.
O primeiro deles é sem dúvida a religião. Cresci em uma família católica muito tradicional. Tradicional até o limite do embotamento. Isso definiu por muito tempo a minha relação com meu próprio corpo: o prazer feminino era um tabu inquebrantável na minha infância/adolescência.
Isso leva ao segundo tema recorrente: o corpo feminino, sua relação demonizada com o sexo e o prazer, a carga de sujeira e culpa posta sobre menstruação, lubrificação, mamilos aparentes.
Meter religião, sexo, prazer feminino no mesmo poema, numa sociedade que põe deus no masculino e legisla sobre o meu útero, numa sociedade que diz que eu vim de uma costela quando é o útero que dá vida, numa sociedade que culpa há milênios a mulher pelos erros que o homem comete com ela, é uma questão política e urgente.
Outro tema recorrente sempre será a neurodiversidade, sobretudo o autismo e suas comorbidades. É preciso falar sobre adultos autistas, principalmente mulheres. Suas dificuldades diagnósticas, suas dificuldades na vida. Os padrões diagnósticos ainda são baseados em manifestações do espectro no sexo masculino, pelo que muitas mulheres crescem sem o tratamento e as intervenções precoces devidas. Mais do que isso, crescem acostumadas a ser rechaçadas pelos seus pares, sem saber por que são como são. Naturalizando a relação de gaslighting. E por isso são mais passíveis de entrar em relacionamentos (amorosos ou não) abusivos que suas contrapartes neurotípicas.
Mulheres adultas autistas leves não são representadas a não ser como recurso humorístico (o que você acha que é a loira burra do seu pastelão preferido?). E se eu não sou representada, no imaginário da massa eu não existo. E se eu não existo eu não tenho lugar de fala.
Eu estou aqui: uma mulher, uma mulher com corpo, uma mulher com voz, uma mulher que quer usar o corpo e a voz para dar um grito.
Não tem nada mais inspirador do que um grito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
“Mentiram pra você, Milena.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero muito reunir em livro os meus poemas sacrílegos, acho sacrilégios muito elegantes, risos.
Esse é um livro que vem sempre ficando para trás. Em 2014, quando lancei Os Oráculos dos meus Óculos, eu ainda estava muito impactada com a morte do meu avô, a quem eu era muito ligada e que nos deixou anos antes, no dia do meu aniversário. Os Oráculos são para ele, uma ode à saudade e ao luto. Já meu próximo livro A Orquestra dos Inocentes Condenados, que sai esse ano pela Editora Primata, tem uma relação muito forte com saúde mental e silenciamento. Desejo muito recolher meus sacrilégios em breve.
Outro projeto guardado na gaveta é meu romance Deposto sobre o Abismo, que comecei em 2009 e simplesmente não consegui terminar. Meus personagens ainda me assombram, mas não vejo como trazê-los para 2021. Seria muito cruel com eles jogá-los num mundo tão mais absurdo do que o que eles conhecem.
Mas o projeto que eu mais queria realizar já é uma realidade. A revista cassandra, meu sonho antigo, está no ar, com uma mulherada maravilhosa como colunista, e esse encontro, essa troca, esse espaço me fazem um bem tremendo. Um espaço para as vozes de mulheres se encontrarem e nunca mais morrerem na garganta.