Milena Martins Moura é poeta, tradutora e editora da revista feminista cassandra.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Muitas coisas mudaram desde a minha última entrevista, no quesito rotina e também em nível pessoal. Em primeiro lugar, a cassandra cresceu muito além do esperado. Nossas edições estão enormes, estamos sendo cada vez mais acessadas e tudo isso toma tempo e requer um esforço a parte para que as edições estejam sempre no ar em dia e plenamente revisadas. Por isso, tem sido um malabarismo conciliar a edição da revista, o trabalho remunerado, os estudos e os diversos projetos nos quais tenho me inserido. Cada dia é um dia, algumas vezes dá tempo pro cafezinho, outras é acordar e pular no computador. Depende bastante do momento do mês e de quantas aventuras culturais eu tenho inventado. Mas se posso aventar uma rotina ideal, seria certamente acordar com calma, café, uma caminhada e só então trabalhos diversos. Não se pode ter tudo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sempre prefiro as manhãs, ao contrário da Milena notívaga adolescente. As manhãs são mais calmas e silenciosas, o que me permite mais concentração. Além disso, eu sou bastante adepta de acordar bem cedo e curtir a parte clara do dia, foi-se o tempo da juventude em que eu passava as noites em claro. Principalmente quando está sol, estar em contato com a luz, a claridade, o calor me faz produzir bem mais e melhor, me anima. Infelizmente, como eu disse, não se pode ter tudo. Com todos os compromissos que tenho assimilado, basicamente escrevo quando e onde dá. Anoto ideias que deixo soltas por muito tempo até poder acessá-las novamente, com calma e tempo. Eu escrevo muito devagar e criteriosamente. Sou muito metódica, como muitos autistas. É preciso tempo para algo bom sair de mim e tempo é algo que eu nem sempre consigo ter.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não sei mais como responder a essa pergunta [risos]. Eu anoto muitas ideias e acho que isso não conta como escrever, então não, não consigo escrever todos os dias. Por isso mesmo, jamais conseguiria me dar uma meta. Nunca fui boa em descrever o meu próprio processo criativo e essa é uma pergunta tão recorrente que sempre me deixa pensando: eu não faço a mínima ideia de como eu escrevo. Eu não sei dizer como nasce a ideia que vai dar em um poema ou em um conto. Eu conheço o meio do processo muito bem, a forma como eu arrumo os versos, busco as palavras, exponho as estrofes para dar certa cadência de leitura; como eu uso a mancha para gerar sentido; como eu leio repetidamente em voz alta porque sentir as palavras faz toda a diferença (o aspecto sensorial é muito importante no espectro e comigo não poderia ser diferente). Mas eu jamais soube dizer como a ideia aparece, tampouco como eu decido que aquele momento específico é o certo para deixa-la fluir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que respondi a esta pergunta no item anterior [risos]. Eu realmente não sei se é difícil começar, porque, como eu disse, não faço ideia de como ou por que eu começo. O que posso dizer é que uma vez iniciado o processo não há o que me faça parar. Escrever, para mim, leva tempo, é um trabalho de burilador, cuidadoso, criterioso, e que só para no ponto final definitivo. Eu escrevo sempre de uma vez e assim que termino não corrijo nada nunca mais. Parece absurdo e até um exagero. Parece mentira. Mas isso tem relação direta com a minha necessidade de controlar o caos. Eu sou uma pessoa autista, isso quer dizer algumas coisas e uma das mais importantes é: a vida em sociedade é muito complexa para mim. Eu não entendo muitos ditames sociais, regras implícitas, o convívio diário é sempre desafiador. Então essas são práticas que eu quase inconscientemente utilizo desde que consigo me lembrar para dar ordem ao caótico de existir. É preciso saber que o poema está pronto, que o conto nasceu, e tudo que está ali dentro é característico do momento da escrita. Mudar o que quer que seja seria vilipendiar algo bonito e orgânico que tem sua personalidade e seu modo de existir. Claro, eu posso simplesmente odiar o que escrevi depois de dois dias e rasgar. Mas isso é o que menos importa. O real, o palpável, é que, ainda que seja descartado, o poema, o conto, o que está escrito enfim o será da forma exata como deveria ser. Maktub.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não sei responder a essa pergunta também [risos]. Não sei se existe um elemento de procrastinação na minha escrita. Acho que a demora em utilizar uma ideia solta tem mais relação com não sentir que seja a hora exata. E eu realmente não sei o que quer dizer “a hora exata”, mas o fato é que, de alguma maneira muito orgânica, eu escolho quando usar cada ideia, cada anotação solta, como se sentisse que agora sim ela está madura e eu posso colher.
Ansiedade é parte da minha vida desde que consigo me lembrar, mas não sei se tenho isso com a minha escrita. Eu penso que, se eu gostei do que está escrito, alguém também pode gostar. Se não curtir, paciência, acontece nas melhores famílias. Acho que há muito tempo não tenho realmente um problema com mostrar o que eu escrevo, publicar o que eu escrevo, a opinião alheia sobre o que eu escrevo.
Veja bem, a gente muda com o tempo, essa é uma beleza pouco valorizada da vida. Nossa identidade é mutável, se adapta aos acontecimentos, se molda de acordo com cada experiência e tudo isso se reflete na nossa produção também (como um todo, não só literária ou artística). Por isso, é claro que eu gosto mais do que faço hoje do que do que fiz há alguns anos. Eu sou eu hoje, não sou mais a pessoa de há alguns anos.
No entanto, apesar de esse argumento ser muito válido, não acho que invalide o que vou dizer em seguida (que pode soar arrogante, talvez): eu acho que nunca escrevi tão bem. Há pelo menos três anos eu tenho produzido alguns dos melhores textos da minha vida, tenho pulado de cabeça em tudo que a minha escrita pode me proporcionar. Perdi o medo do risco, perdi o apego ao mesmo. Tudo que eu quero, hoje, é escrever até explodir tudo que eu puder, é a minha melhor fase sem nenhuma dúvida. Claro, poema ruim sempre rola (seja lá o que esse “ruim” queira dizer), mas também tem rolado tanto poema bom. Eu me sinto finalmente uma boa escritora e isso não poderia deixar de representar também mostrar essa escrita pro mundo. Milena é uma escritora de verdade, Mundo. Você já lei “Evangelho segundo o pecador”? É um poemão!
Sempre vai haver quem não goste do que a gente escreve, sabe? É normal e não deveria assustar em nada. Mas, olha, enquanto eu gostar da minha escrita ela vai estar em cada vez mais lugares. Posso garantir.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu sou doentia com cada detalhe de um texto. Por isso tenho uma certa aversão a revisões (e também por isso não o submeto a leituras críticas e afins, o que acho que responde à segunda questão da pergunta). Cada vírgula, cada pontuação ou falta dela, cada palavra concatenada no meio de uma frase no meio de uma estofe com um recuo não convencional que certamente não faz diferença olhando num primeiro momento, cada mínimo detalhe foi pensado e está ali por um motivo. Até chegar a essa forma final, ajustada, burilada, cristalizada, são horas de trabalho, de sintonia fina, de ler reler tresler. Não é simples terminar um poema sabendo que nunca mais voltarei a ele. É como um adeus.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu amo o meu computador! [risos] A minha caligrafia não tem nada de “cali”, é um horror, completamente deformada. Às vezes eu mesma não sei o que está escrito depois de escrever. Sempre tive um sério problema com o manuscrever, por muitos anos da minha infância, quando não tinha computador, eu datilografava na minha Olivetti. Só tive computador bem tarde na vida, com 18 anos, porque venho de uma família muito pobre. Meu primeiro desktop foi um esforço familiar bem grande. O ano era 2004 e eu tinha que esperar a meia noite pra acessar a Internet, porque a conexão era discada e a grana era curta. Mas ter um editor de texto nas mãos, nossa, foi libertador. Nunca mais puxar setinhas porque eu acho que esse parágrafo inteiro fica melhor lá em cima do que aqui embaixo. Agora eu podia selecionar tudo e simplesmente colar o parágrafo lá em cima sem problema algum. Eu fiquei maravilhada como uma criança no parque com essa liberdade, nunca vou esquecer como foi incrível escrever meus primeiros textos no Word. De lá pra cá muita coisa mudou, a tecnologia avançou, a vida com os dispositivos é completamente outra. 2022 e 2004 são duas realidades diferentes, contrastantes até. Mas eu continuo digitando e, ao contrário dos românticos e puristas, não vejo nenhum problema nisso. Sejamos honestos, manuscrever é um saco quando se tem a letra feia, os vinte cadernos de caligrafia que eu fiz na infância me deixaram trauma! [risos] Adoro digitar, deixa a escrita solta e eu entendo tudo o que está escrito depois.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu tenho um poema sobre uma personagem de Doctor Who (quem acertar qual ganha um queijo!). E eu tenho uma série inteira de poemas eróticos. Eu tenho um poema sobre o massacre do Jacarezinho. E eu tenho poemas que usam a mitologia cristã de maneira sacrílega. Eu tenho um poema sobre os peitos da minha mãe. E um poema sobre a minha tia-avó Vitória. Eu também tenho um poema sobre os meus gatinhos. E alguns sobre ser mulher. Um poema sobre masturbação (mas ninguém entende que é sobre masturbação) e outro sobre a chuva que caiu quando eu estava em Ouro Preto. A vida é muito diversa: gato, Doctor Who, Ouro Preto e siririca são parte da vida e por que motivos não deveriam estar no poema? Para mim, tema não é problemático. Eu tenho tudo o que me cerca para usar na minha escrita. Viver é muito criativo. Existir é poesia sem verso, é só botar em verso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mentiram pra você, Milena.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Desde a minha última entrevista, algumas coisas mudaram. Eu escrevi um romance! (e ainda não posso dar grandes detalhes, mas estou bem feliz com tudo que tem acontecido). Também tenho um novo original de poemas, com os meus sacrilégios. Eu queria muito reunir os eróticos e sacrílegos em um livro. A cassandra tem se fixado como cada vez mais importante no cenário da escrita de mulheres e eu estou animadíssima com as nossas possibilidades. Como é delicioso (e desesperador, assustador, um pânico) fazer a curadoria das nossas chamadas, quantas mulheres incríveis conheci, amigas que fiz que levei pra minha vida. A revista era também um grande sonho, e aí está ela, latejando toda viva. E ainda criamos um selo só para poesia erótica escrita por mulheres. Então talvez devesse dizer que realizei todos os meus projetos recentemente, mas seria mentira. Seria uma grande mentira.
Eu tenho 35 anos, pouca grana, nenhum tempo livre, trabalho acumulado, muito sono e dez graus de hipermetropia, e no momento da escrita desta entrevista eu tenho também cinco artigos para revisar, um deles em inglês, um anteprojeto para começar, curadoria da última chamada da cassandra e louça na pia. Mas se você me chamar pra um projeto e ele for legal, eu vou. Esse é o meu maior defeito, eu tenho 1,62 e ainda tento abraçar o mundo com as pernas. Nunca me convenceu que meus colegas de escola me chamassem de Mentira.
Sempre vai ter um projeto.
Por exemplo: tenho o sonho de organizar uma antologia só com autoras neurodivergentes. Dizer que escrevemos, e bem, que existimos como sujeitos sociais ativos e, portanto, merecedores de existir em dignidade. Um manifesto contra a cultura manicomial de encarceramento, medicalização e docilização dos nossos corpos. Eu não sou dócil, eu sou bem forte. A minha escrita é bem forte. E talvez eu não consiga te olhar nos olhos. Mas sou uma mulher de palavra. Um poema vale mais que mil contatos visuais, cara neurotipia.
Um dia, quem sabe, esse livro não deixe de ser um plano, não vire uma realidade. Dar uma banana pros capacitistas seria uma realização e tanto.
* Entrevista publicada em 10 de julho de 2022.