Mikka Capella é escritor, roteirista, editor, copidesquer e revisor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho sim. Antes de fazer qualquer coisa, vou para a cozinha e preparo um café. Esse passo é essencial para fazer meu espírito voltar ao corpo (risos). Costumo tomar café sozinho, porque, em geral, quando acordo meu companheiro já saiu para o trabalho; então assisto alguma coisa no YouTube, geralmente vídeos de canais sobre casos misteriosos, sobrenaturais ou de true crime. Isso acaba favorecendo meu processo criativo, também. Depois disso, alimento os peixes do meu aquário, vou para o computador e começo a trabalhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho nenhum ritual de preparação para escrever, mas, como bom taurino, não gosto de variações na rotina. Faço tudo quase sempre do mesmo jeito, então pode-se dizer que, de alguma forma, esse é o meu ritual. Eu sinto que começo a render mais no final da tarde e a noite é, em geral, a parte mais produtiva do meu dia. Por render mais, quero dizer que me torno mais resistente à procrastinação, o maior inimigo da produtividade de qualquer pessoa que trabalha com criatividade. Parece que todos nós, em alguma medida, sofremos de distúrbio de atenção!
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria muito (ênfase no muito) de conseguir escrever todos os dias, mas não é isso o que acontece. No momento mesmo desta entrevista, já faz quase cinco meses que não consigo produzir um texto autoral. Acontece que, além de escritor, também sou editor, preparador (copidesquer) e revisor de textos. Quando estou com uma demanda muito grande de serviço (e esse tem sido o caso desde o final do ano passado), dificilmente consigo me concentrar em escrever. A escrita é um ofício meio ciumento. Quando estamos no processo criativo, é muito difícil desviar a atenção para qualquer outra coisa… Pelo menos é assim que funciona comigo.
Então eu diria que escrevo melhor em períodos concentrados. Quando não tenho um prazo definido, relaxo com as metas diárias. Escritores experientes devem concordar que alguns dias, por alguma razão indeterminável, rendem mais do que outros; e tudo bem. Acho que cada parte de um texto tem ou deveria ter seu próprio tempo… Algumas vezes, porém, estou trabalhando com prazo, seja para cumprir o calendário de algum edital ou para entregar um texto encomendado. Nestes casos, preciso deixar um pouco de lado o processo mais orgânico de escrita e trabalhar com metas diárias mesmo.
O último texto que escrevi assim foi Senhoras do Pássaro da Noite, uma aventura de RPG para o concurso ABEA, em outubro do ano passado. Quebrei alguns recordes pessoais escrevendo essa aventura, chegando a produzir cerca de vinte mil palavras em uma semana. Foi extremamente desgastante e estressante, mas, ao final, valeu a pena. Eu ganhei aquele concurso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que o processo de escrita de todo escritor profissional começa muito antes da escrita propriamente dita. Existe toda a coisa da pesquisa, que em alguns trabalhos pesará mais do que em outros, e da adequação à estrutura narrativa. Eu só começo a escrever quando já tenho todos os pontos principais da minha história bem definidos. Se for um texto mais longo, como uma novela ou romance, faço um planejamento detalhado dos capítulos, deixando muito bem definido o objetivo de cada parte do texto. Isso facilita demais no processo de pós-escrita (ou reescrita), que todo escritor profissional, igualmente, faz. Com isso tudo pronto, começo a escrever.
Se tiver seguido cada etapa do processo direitinho, vou me sentir confiante e não acho nada difícil passar do planejamento para a ação. Na verdade, eu me eduquei a simplesmente sentar e escrever, sem me preocupar demais com a forma. Deixo isso para a pós-escrita, para a lapidação do texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é sempre um problema, como eu disse lá em cima (risos). Acho que todo artista lida com ela, em alguma medida. Jamais conheci um artista absolutamente concentrado. Por outro lado, se isso é tão comum assim, deve fazer parte do processo de alguma forma, certo? Desde que comecei a pensar desse jeito, fiquei em paz com a procrastinação. Acho que nossa mente precisa dessas escapadas, precisa ter tempo de fugir da pressão e ficar navegando entre as nuvens de pensamento, nessa espécie de suspensão existencial. Estou inclinado a crer que é por causa desses momentos que surgem as boas ideias.
Quanto às expectativas, um dos meus sabotadores internos (acho que todos temos muitos) é a síndrome do impostor. Já ouvi muitas pessoas falando sobre isso, essa sensação persistente de não ser bom o bastante, não importa o que você faça… Nesse sentido, alguns dias são mais difíceis que outros. Às vezes a gente trava mesmo. Em geral, sou forte o bastante para continuar trabalhando apesar dessa sensação e celebro cada resultado bem-sucedido, transformando-o em um argumento para a discussão interna que inevitavelmente acontecerá quando a sensação surgir outra vez. Isso tem dado certo para mim: fazer o que faço porque gosto de fazer e me orgulhar das minhas conquistas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Antes de considerar um texto pronto, ele passa por, pelo menos, uma autoedição e uma revisão. É o que chamamos de pós-escrita ou reescrita. Ao terminar a primeira versão, eu fecho o arquivo e deixo ele descansar por, no mínimo, uma semana; algumas vezes mais. Tento não pensar nele nesse período, vou fazer outras coisas. Finalmente, quando o pego novamente, estou com a visão clara e desprendida o bastante para encontrar tudo o que não funciona e o que poderia funcionar melhor — é a autoedição. O que não funciona ou está sobrando no texto, muitas vezes dando aquela sensação de lombada, é excluído; o que poderia funcionar melhor é reescrito; neste processo, palavras são substituídas, verbos mudam de tempo, advérbios e adjetivos desaparecem, enfim, é feita uma engenharia do texto, um trabalho de lapidação. Por fim, procedo à revisão propriamente dita, lendo o texto todo novamente, algumas passagens em voz alta, caçando erros de digitação, inconsistências, problemas ortográficos e gramaticais… Quando termino essas duas etapas, já posso mostrar o original para outras pessoas.
Meu companheiro é meu leitor beta oficial e eu levo muito a sério a opinião dele. Quase todos os meus textos tiveram alguma modificação sugerida por ele, que também dá uma mãozinha na revisão ortográfica e gramatical. Depois disso, mando o texto para a editora e para a revisora, nesta ordem. Sim, o texto considerando pronto ainda pode ser melhorado e nada, absolutamente nada substitui um olhar profissional. Só com essas duas etapas completas, começo a preparar diagramação, capa e publicação… para minhas publicações independentes, quero dizer. Quando estou trabalhando para alguma editora, essa parte, bem como a edição e revisão por outros profissionais, é com eles.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é pacífica (risos). Não sou resistente, mas também não se pode dizer que seja um entusiasta. Uso bem as ferramentas tecnológicas. Ser um profissional do texto, hoje, exige isso de nós. Por outro lado, não estou antenado às últimas novidades em termos de software e fico um pouco irritado quando as novas versões do Word travam mais do que as antigas…
Apesar de achar o e-reader uma inovação revolucionária, ainda sou apegado ao livro de papel. Gosto do cheiro, da sensação tátil e da experiência. Além disso, costumo fazer meus rascunhos à mão primeiro; só depois passo a escaleta para o computador e imprimo, para ter ao meu lado enquanto estou escrevendo. Acho que fica mais organizado assim, porque minhas anotações manuscritas costumam ser uma bagunça.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm de toda parte. Eu costumo assistir a vídeos de certos canais no YouTube, como disse lá em cima, bem como ler livros sobre casos afins ao gênero em que mais escrevo (horror). Consumir boas produções também fomenta a inspiração e estou sempre procurando coisas novas e boas, seja no universo dos livros, dos filmes, das séries, das HQs ou dos jogos eletrônicos. Minhas ideias, contudo, continuam vindo de toda parte.
Sépia, a bruxa de Jaqueiral, por exemplo, nasceu de um desafio. Meu companheiro me desafiou a escrever uma história de bruxas realmente assustadora e essa foi a primeira semente. A Canção do Rochedo, minha última noveleta para o Kindle, veio de uma conversa com amigas escritoras. Minha próxima noveleta, O Cemitério dos Insepultos, veio de um sonho… Enfim, ser escritor é estar sempre atento, porque nunca se sabe de onde a próxima história virá!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A profissionalização foi a maior mudança, seguida bem de perto pela experiência. Escrevi meu primeiro romance em 2001, quando tinha apenas 19 anos. Foi o ano em que as Torres Gêmeas caíram, por isso é inesquecível… Eu havia lido um livro de Anne Rice (que até hoje é uma de minhas maiores referências literárias), A Rainha dos Condenados, e me apaixonado definitivamente por literatura; então resolvi escrever minha própria história.
O resultado foi um romance de aproximadamente trezentos e cinquenta páginas, até que bem escrito, mas muito mal feito (porque, sim, são coisas diferentes). Foi uma coisa orgânica, intuitiva, sem nenhuma noção de estrutura de enredo e fluxo narrativo. Muitas pessoas começam e escrever assim; e hoje, com o advento da autopublicação, muitas pessoas começam a publicar assim também. Ainda tem muita gente pensando que escrita é uma espécie de dom ou dizendo falácias como “arte não tem regra”. Ora, o que arte mais tem é regra! Sem as noções básicas, no mínimo, ninguém pinta um quadro, faz uma escultura nem escreve um livro.
Costumo dizer que escrever bem é o resultado do casamento perfeito de um trisal — muita leitura, muito estudo e muita prática de escrita. Ninguém chega a ser um escritor decente se não for um voraz consumidor de livros, se não se interessar por aperfeiçoar as próprias habilidades e, finalmente, se não praticar a escrita, porque a gente melhora a cada dia.
Então, se pudesse voltar no tempo e dizer alguma coisa a mim mesmo, seria: “seja humilde e não desista. Você tem futuro, mas também tem um longo caminho pela frente.” Felizmente, ainda estou neste caminho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sabe o romance que mencionei ter escrito em 2001? Tenho o projeto de reescrevê-lo, desta vez do jeito certo. Infelizmente, por causa de outros projetos que foram surgindo, ainda não consegui começá-lo. Quer dizer, já fiz a pesquisa e uma parte da escaleta, mas falta alguma coisa antes de poder me sentar e começar a escrever. Romances são como maratonas, exigem fôlego; mas ainda vai chegar a hora dele… e espero que não demore. Também espero que, ao final, seja exatamente o livro que quero ler, mas ainda não existe.