Michelle C. Buss é poeta, mestra em Letras pela UFRGS.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
acordo cedo…
enquanto sinto a claridade do dia invadindo o quarto, vou me recordando se sonhei. Caso sim, anoto meus sonhos.
fico um bocadinho a mais de tempo na cama para sentir o corpo e a respiração. Depois levanto e vou me conectando com meu dia.
quando não tenho compromissos, aproveito para escrever e ler. As manhãs são sempre uma fonte inesgotável de energia criativa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
apesar de me sentir mais criativa e focada pela manhã, costumo escrever geralmente ao entardecer ou durante a noite.
a frequência vai de acordo com a demanda e minha conexão com o texto (quanto mais o texto me atrai, mais invisto meu tempo no processo de escrita). Não costumo ter um ritual específico para escrever, nunca pensei sobre ritualizar minha relação com a escrita; acho muito interessante e bonito quem consegue ter um ritual.
percebo que ouvir música ajuda a me inspirar. Outra coisa que faço como preparo, é ler textos sobre diversos temas que me provocam curiosidade, sinto que isso estimula minha criatividade e que amplia minhas perspectivas sobre determinados assuntos.
a partir da pandemia, algo diferente que tem me ajudado a escrever mais é fazer chamadas com uma amiga com quem trabalho. Além de trocarmos ideias, funciona como um processo de ancoragem para meu foco. Aprecio muito caminhar pela cidade, especialmente, na orla de Cabo Branco: o mar me ensina muito sobre poesia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
escrevo todos os dias.
assim como leio todos os dias.
algumas épocas, tenho períodos mais concentrados de escrita, de acordo com demandas ou prazos.
não penso muito em metas… entendo a disciplina como um ato de amor pelo que se faz. Como sou apaixonada pela escrita, acabo me disciplinando a escrever diariamente.
confesso que nem sempre fui assim… essa consciência de me disciplinar por amor e pelo prazer ao que gosto de fazer foi uma construção mais recente. Primeiro precisei desconstruir visões históricas que propagam que é preciso se sacrificar pelos sonhos ou que precisa ser duro. Percebi que enxergar por esse ângulo me gerava tensão e resistência quando precisava me focar e me determinar a concluir um texto ou livro.
quando troquei o sacrifício pelo amor, pela entrega e pelo prazer em se fazer o que se sonha, tudo ficou mais fluído, leve e orgânico.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
meu processo de escrita acontece de forma espontânea e intuitiva na maior parte das vezes. Pesquisando ou anotando ideias, num repente, surge um impulso de começar e, quando percebo, o texto vem nascendo.
busco respeitar sempre meu processo, se vem a vontade de escrever, escrevo, vou me derramando no papel. Depois, deixo o texto descansar… quando retorno a ele, vou encontrando novas perspectivas, dando continuidade se necessário, lapidando.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
aprendi a ver a escrita como um movimento interno de entrega.
foi preciso me trabalhar para abrir mão do medo de não corresponder às expectativas: é impossível controlar ou prever com exatidão a relação das pessoas com o texto; cada pessoa gera uma relação própria e única com o que lê. Compreender esse ponto me trouxe a liberdade de viver minha escrita sem interferências, e assim me permitir então mergulhar nesse processo de criação sem amarras, trazendo à consciência como me vejo ou como me sinto diante daquilo que acesso ou re(crio) enquanto escrevo.
isso não significa que eu não acolha perspectivas que me são trazidas por outras pessoas com o intuito de lapidar minha escrita, mas o enfoque não está mais ali fora e, sim, aqui dentro.
sobre a procrastinação: meu movimento é dialogar comigo. “Se eu deixar de fazer isso, vou ficar frustrada?”, se a resposta for sim, determino-me a dar os primeiros passos em direção à feitura do texto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
inúmeras vezes…
deixo meus textos “descansando” por longos períodos. E retorno muitas vezes a eles até sentir que é o momento de brotar e florir.
tenho pessoas que mostro meu trabalho antes de publicá-lo. Um livro nunca nasce sozinho, é uma rede de apoio, um coletivo de pessoas participando de todo o processo. Eu valorizo muito essa coletividade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
vejo a tecnologia como uma importante ferramenta para a escrita. Alguns rascunhos eu escrevo no computador, e uma grande parcela do que produzo, escrevo em cadernos, folhas, blocos.
aprecio muito escrever à mão, sinto que mergulho mais nas palavras.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
minhas ideias nascem de forma orgânica dos atravessamentos da vida. Às vezes, falo ou escuto algo que me conecta com a necessidade de escrever e me permito me entregar à escrita.
há acontecimentos cotidianos que me preenchem tanto que, quando menos percebo, vou me derramando no papel.
não sei se tenho um conjunto de hábitos, mas tenho um combinado comigo de permitir me deixar ser sensível à vida através de oportunidades como caminhar na praia, ir a ambientes diferentes, observar as borboletas nas flores dos canteiros da rua. Da mesma forma, também me permito ficar comigo mesma, pois entendo que, para meu processo de escrita, preciso de momentos mais solitários.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
sinto que ao longo dos anos o meu processo de escrita ficou mais orgânico… é como respirar.
diria o quanto sou grata. Grata por me permitir vivenciar a minha paixão que é escrever e pela coragem de me entregar a essa paixão. O que sou hoje e o que estou me tornando é graças à Michelle do passado que, independente dos desafios, foi em direção ao que acreditava.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
há tanta beleza em viver esse estado de agora, esse presente… o que virá e o que poderá vir pertence ao desconhecido, ao imprevisível que gesta em si a potência de infinitas possibilidades.
* Entrevista publicada em 10 de julho de 2022.