May Mortari é escritora de fantasia.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu trabalho regular começa bem cedinho, às 7 horas. Eu sempre tenho dois alarmes de manhã, o das 6 horas e o das 6h15. Nunca soube por que, mas eu adoro acordar cedo e saber que posso dormir mais 15 minutos. Eu tenho bastante energia de manhã, então levanto, faço meu café e vou para o computador. É de manhã que eu faço a maior parte das minhas coisas do dia: dou aulas de inglês e alemão (que são meu trabalho regular pagador de contas), arrumo os arquivos, preparação de aulas futuras, estudo o que preciso e faço minha rotina de exercícios.
Eu quase nunca escrevo de manhã, porque me dedico a fazer essas outras atividades. Eu gosto mais de escrever depois de ter tirado todas essas coisas do caminho, sabendo que não vou precisar interromper minha escrita para fazer algum relatório, por exemplo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para a escrita, eu gosto mais de me focar no fim da tarde ou à noite. Depende muito da minha rotina do dia, porque eu demoro muito para me concentrar na história. Não consigo, por exemplo, abrir o arquivo e escrever por uma hora e depois fechar e trabalhar com outra coisa. Quando eu estou em sprint de escrita, eu preciso que ele seja longo, de pelo menos duas ou três horas. Tem dias em que eu passo a primeira hora só encarando o documento e pensando em como começar de onde tinha parado.
Sobre rituais, eu tenho um, sim! Eu gosto muito de como música dita o ritmo da história, mas escrever com música, principalmente quando é uma que eu gosto, me distrai demais. O que eu faço é abrir a playlist da história antes de começar a escrever e ouvir a música que eu sinto que mais combina com aquela cena. Depois eu ligo a minha playlist de lo-fi e escrevo só com ela bem baixinha de plano de fundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já tentei ter metas, mas na maioria das vezes, elas acabavam mais me frustrando e atrapalhando do que qualquer coisa. Em dias em que eu não me sentia produtiva, eu olhava para a meta e tinha vontade de chorar porque não conseguia chegar nela e sabia que, se forçasse, eu ia ter que deletar tudo no outro dia porque não ia gostar do resultado. Em contrapartida, em dias em que eu estava muito inspirada, eu via que tinha passado três ou quatro vezes a meta do dia e meu cérebro me sabotava dizendo que já tinha escrito o suficiente, mesmo que eu ainda tivesse boas ideias. Acabei tirando a ideia de metas da cabeça e a escrita fluiu bem melhor sem ela.
Eu tento escrever todos os dias, sim. Pelo menos, todos os dias eu abro o documento em que estou trabalhando e deixo ele aqui. Costumo escrever todo dia, mas rendo bem mais quando eu tenho um longo período de concentração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A primeira e mais importante parte do projeto para mim são os personagens. Eu preciso conhecer eles muito bem antes de pensar em começar. Faço perfil deles, coleto fotos de referência de aparência, vestimenta, interesses de cada um, dependendo do personagem eu até respondo testes na internet como se fosse ele para conhecer um pouco mais. É a parte que eu mais amo do processo todo. Às vezes, eu tenho o personagem na cabeça por meses antes de ter uma história para ele. É o caso do projeto em que estou trabalhando agora, que tem personagens que eu venho conhecendo desde o começo do ano passado, mas que estão ganhando suas histórias agora. Eu sempre recomendo que autores façam isso. A diferença que a gente sente na hora de encontrar a voz do personagem é surreal.
O segundo passo é outro que é bem pessoal e importante para mim, que é o outline, a “espinha dorsal” da história. Tenho amigos que escrevem sem ela. Eu não consigo. Sempre travo no meio e não sei como avançar. O outline me ajuda a encontrar meu caminho na história, como um lampião posicionado no fim de um túnel.
Só depois desse processo eu me sinto confortável para escrever o primeiro rascunho da história. Gosto de ir fazendo a pesquisa para o ambiente conforme avanço na narrativa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinação é inimigo de todo mundo, eu acho! E eu nem culpo a gente na maioria dos casos. Principalmente nesses últimos anos, em que todo mundo teve muita dificuldade em relaxar e bastante falta de foco por razões fora do nosso controle. Eu não tenho muito método pra isso, não. Eu só vou sentindo o que minha cabeça tá querendo. Tem dias em que eu quero muito escrever, mas percebo que estou procrastinando. Costumo me dar um intervalo, focar em algo diferente, como uma série ou um jogo, e tento voltar depois com mais foco. Se eu sinto que não vai fluir mesmo, deixo pro outro dia.
As expectativas machucam mais. Como pessoa não-binária e pansexual, eu sempre tive como meu principal objetivo escrever histórias onde as pessoas assim como eu que são parte da comunidade LGBTQIA+ se vejam representadas. E por conta disso, eu me cobro bastante sobre a representatividade no que eu escrevo. Ficou bom mesmo? É suficiente? Dá pra melhorar? E a questão é que sempre tem espaço para melhorar. Algo que parece inofensivo para mim pode machucar outra pessoa. Algo que parece bom hoje pode não soar bem daqui uns anos. Lidar com isso ainda é meu maior desafio, porque não sei se existe uma fórmula correta para lidar, além de confiar sempre o texto a outras pessoas e profissionais para ter certeza de que aquela versão da história é a melhor que eu poderia produzir naquele momento específico.
Projetos longos são a minha paixão! Eu fico bem mais nervosa quando penso em escrever algo curto, na verdade. O projeto longo nos dá mais tempo de envolver o leitor nos personagens. Acaba sendo algo mais memorável do que um conto curto. Como fazer uma história rápida ser memorável? É o que eu quero aprender num futuro próximo!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Primeiramente, eu nunca publicaria algo que só tivesse passado por mim e acho que entender que o texto precisa de revisão e da opinião de outros profissionais é fundamental para qualquer escritor, seja iniciante ou veterano. Quanto as vezes que eu reviso cada texto, não sei dizer. Eu sempre o releio diversas vezes, alterando e adaptando algumas partes, até que eu leia tudo e sinta que está bom o suficiente para que alguém leia. O primeiro filtro é o meu agente, que lê tudo na hora que eu escrevo (às vezes, literalmente mesmo, porque eu escrevo em um documento compartilhado com ele no Drive). Depois dele, a gente conversa pra ver por quem mais o texto precisa passar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu acho a coisa mais linda do mundo quem escreve o primeiro rascunho à tinta. Eu amo escrever com tinta, mas para os meus trabalhos mesmo, eu uso o computador desde o início. Abro uma pasta no Drive e crio nela um documento para ser o outline, uma pasta de referências e o documento do texto. Se tiver ficha de personagem, glossário e outras coisas, eles entram todos juntos nessa pasta, que eu compartilho com meu agente. Apesar disso, eu sou horrível com tecnologias que ultrapassem esse básico. Se me pedir pra usar atalho no teclado, já não sei.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que o conselho mais útil e mais clichê que eu tenho é: sempre consuma formas de arte diversas. Filmes são inspiração. Livros também. Séries… Até mesmo reality shows são inspiração. Sabe quando aquela pessoa chata diz que o que você está consumindo é entretenimento barato e não vai acrescentar nada? Diga que está estudando composição de personagem. É maravilhoso.
Mas a minha principal fonte de inspiração é RPG. Não aqueles de mesa famosos, que eu jogo muito esporadicamente, mas RPG de fórum, um dos maiores amores da minha vida todinha. Você cria um personagem e precisa colocar ele em contato com personagens de outras pessoas para superar obstáculos criados por outras pessoas. E precisa descrever todas as ações dele em texto. É o laboratório de escrita mais subestimado que eu conheço!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu amadureci demais. Me criei como escritora dentro do universo das fanfics e tudo era muito improvisado (eu não fazia outline e sempre me perdia no meio. Foi minha primeira grande lição!), então se eu pudesse voltar no tempo e conversar com May de 13 ou 14 anos, que estava publicando suas primeiras fanfics de YuYu Hakusho num blog sobre mangás e suas primeiras histórias com integrantes de bandas emo, eu diria: calma. Você não precisa escrever suas histórias na hora em que elas surgem na sua cabeça. Traça uma linha do tempo, planeja, talvez assim você estivesse bem mais adiantada do que eu agora. A May de 15 anos era extremamente produtiva em escrita. Eu me lembro de escrever fanfics de 50 ou 60 mil palavras num espaço de tempo super curto. Se ela tivesse um pouco mais de organização, foco e planejamento, ela não teria achado por tanto tempo que não tinha talento.
Outra dica que eu daria se pudesse visitar meu eu adolescente é: você é suficiente. Você tem talento para escrever, como sabe que tem (eu costumava dizer que era o meu único talento, na época). Não deixe que as pessoas te sabotem e te façam perder sua confiança. Daqui 15 anos, você vai olhar pra trás e ter orgulho de quem você foi, do seu começo e do seu processo. Não fique todos os anos que você ficou sem escrever por achar que não daria certo, porque vai começar a dar certo no momento em que você voltar a acreditar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu achei essa pergunta muito difícil! Mas eu tenho uma ideia rodando na cabeça há um pouco mais de um ano agora que mistura fantasia, música emo e protagonismo queer. Esse é com certeza um projeto que eu gostaria de ter lido quando era adolescente. Acho que o meu foco como escritora sempre vai ser eu mesma 15 ou 10 anos atrás. O que a May de 15 ou 20 anos gostaria de ter lido? O que ela sentia que não existia? O que ela sempre buscou nas fanfics porque não encontrava nas livrarias? Esse é o meu foco como escritora e o que me faz produzir tudo com uma pitada a mais de amor.