Mauro Santa Cecília é poeta, compositor e artista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Rotina matinal tipo cedinho nunca, pois acordo já no final da manhã… Em geral começo meu dia checando mensagens, bebendo água, tomando um café reforçado pois almoço tarde, ligando o som (que, dependendo do estado de espírito, varia da música clássica à eletrônica, do rock ao samba, dos alternativos aos ídolos Bob Dylan, Chico, Caetano, Serge Gainsbourg, Leonard Cohen). Posto alguma coisa com intervalos, foto no instagram ou eventualmente algo de trabalho no facebook. Mas não fico preso às redes sociais. Se tenho uma tarefa para cumprir, como revisar alguma coisa que escrevi na véspera, gosto de executá-la nas primeiras horas do meu dia, com a cabeça ainda fresca. Se não, e estiver bem disposto, vou dar uma caminhada ou faço alguma outra atividade física ao ar livre, nem que seja ir ao mercado e trazer algumas sacolas de frutas, legumes, umas garrafas de vinho… Se estiver com pouca disposição física me dedico ao trabalho de pensar ou não fazer nada, às divagações, ao ócio criativo, que consiste em trabalhar sem o peso de se estar trabalhando.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Diria que meus horários mais produtivos são do meio-dia às quatro da tarde ou depois de meia-noite, com o silêncio total. E ideias, anotações, a qualquer hora, inclusive no banho ou dormindo. Já cansei de ter algum insight deitado na cama e se não tiver um papel e uma caneta por perto acabo esquecendo. Sobre rituais, não costumo me apegar muito a eles. Um que se tornou frequente foi me desplugar do mundo ao escrever. Às vezes gosto de fumar maconha antes de escrever, às vezes não. Letras já escrevi algumas no bar sozinho tomando um chope ( e depois dou o acabamento final em outro momento). Não sei se pode ser considerado um ritual de preparação, mas em geral não leio outra coisa durante o processo criativo. Lembro-me que nos dois romances que escrevi adotei táticas opostas. No meu primeiro romance, “Cão de cabelo”, ouvia todos os dias, antes de começar a escrever, a música “Deixa a vida me levar”, com Zeca Pagodinho. Durante a escrita propriamente ouvia todos os discos do Radiohead. Tive que parar para escrever umas letras para um dos discos do Barão Vermelho e esqueci o projeto na gaveta. Quando retornei ao texto, quase um ano depois, o ritual das músicas ajudou bastante a entrar no clima de novo. E ainda incorporei à trilha sonora Edith Piaf e Serge Gainsbourg. Já no meu segundo e último romance, “Argos”, não ouvi nada enquanto escrevia (assim como ao escrever poemas prefiro o silêncio), mas li muitos livros sobre a técnica do romance, especificamente por escritores de ficção, autores falando sobre o próprio ofício, e li bastante os autores russos, em especial Dostoievski e Tolstoi, e William Faulkner. No meu terceiro livro de poemas “A sombra do faquir”, quando depois de 10 anos voltei a publicar poesia, que é a minha origem, minha essência como escritor, li como preparação um grupo heterogêneo de autores que admiro muito: o catalão Joan Brossa, Paulo Henriques Britto, João Cabral, Bruna Beber, Armando Freitas Filho e Angélica Freitas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo mais em períodos concentrados. Isto se dá principalmente com a poesia e a letra de música. Ao contrário dos romances, que acho que necessitam de um trabalho diário, nem que seja para preencher uma só página. A letra já pratiquei bastante apenas com o intuito de exercitar. Teve uma época em que me reunia toda segunda de meia-noite até dia claro com dois dos meus parceiros, Rodrigo Santos e George Israel. Fazíamos uma, duas, às vezes três canções por noite. Poucas sobreviveram, mas o que importava ali era o exercício. Hoje componho mais para um projeto ou um artista de forma direcionada. Com Frejat, por exemplo, meu parceiro mais constante, em geral mando a letra antes, ele compõe a melodia e depois acertamos detalhes pelo telefone… Na poesia, já publiquei reunindo a seleção de poemas que tinha, como nos dois primeiros livros, “A todo o transe” e “Olho frenético”, e depois em”Errância”, e também comecei a escrever meus livros em estado de transbordamento, com os poemas saindo em sequência. Foi assim com “A sombra do faquir”, “baião de 2”, este em coautoria com o cantor e compositor Leoni, e agora com “Decolagem” (ed. 7 Letras, 2019), meu livro mais recente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando comecei a escrever eu compilava em cadernos as citações de livros e jornais que estava lendo. As anotações para mim são importantíssimas. Às vezes, eu as transcrevo por inteiro, em detalhes, às vezes é só o resumo da ideia. A anotação pode ser também uma espécie de roteiro. E o caminho da escrita pode mudar inteiramente do planejado, não é raro acontecer, mas quase sempre parto delas, das anotações fragmentadas, muitas vezes enigmáticas, das coisas que ouvi, que li, que pensei. No início eram em folhas soltas. Em seguida comecei a anotar em caderninhos, que depois eu guardo. O processo de começar a escrever, hoje em dia, é cada vez mais um desdobramento natural de rabiscar as anotações, então a transição, apesar de poder ser sofrida ou trabalhosa em alguns casos, geralmente é natural.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já vivi isso em projetos em que não consegui chegar ao fim. Por exemplo, quando quis escrever uma peça de teatro sobre a história da cidade do Rio de Janeiro, quando fui roteirista coordenador de um programa de um canal de televisão educativo (em tempo recorde), ou quando cursei mestrado em literatura brasileira, fiz todos os créditos, mas não escrevi a tese. No caso da peça citada, consegui ter a adesão ao projeto de pessoas importantes do teatro, como Aderbal Freire Filho, Amir Haddad, Antonio Pedro e Ricardo Petraglia, que gostaram da ideia que tive para a peça mas eu não reuni condições de executar o que pretendia. No caso da dissertação de mestrado, percebi que o que eu queria não era seguir a vida acadêmica e sim escrever literatura, poesia. No caso do programa de televisão eu não tinha aptidão para o cargo mesmo. Na hora vem uma frustração danada. Depois passa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, leio, releio, vou e volto nos trechos em que paira alguma dúvida. Às vezes reviso até depois de publicado… Essa é uma das grandes questões do processo criativo, e que acho que pode valer para qualquer campo da arte, seja a literatura, a música, as artes visuais… Quando parar? Quando está bom? Ou, por outra, qual é o máximo onde se consegue chegar em uma determinada obra? Quando as alterações começam a estragar o trabalho? Quando se passa do ponto? Não há, a meu ver, uma resposta objetiva para isso. Na maioria das vezes eu chego sozinho à conclusão de que está pronto, depois de trabalhar, retrabalhar, deixar descansar na gaveta, mexer mais um pouco e aí tenho a intuição de que é isso, está pronto. O ponto final é algo intuitivo. Mas que passa também por toda a sua trajetória, o que você leu, o que escreveu, o que assistiu… Quase sempre mostro antes para minha mulher, a Sylvia. Ela já me salvou algumas vezes ao sugerir uma ou outra palavra ou caminho para o texto. Aí depois vem os parceiros, no caso da música, e os editores, no caso dos livros. Mas a decisão final tem que me agradar acima de tudo. Se isso não acontece, não está pronto ou não é para ser.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação é ambígua, pois envolve atração e rejeição, mesmo sabendo que é um caminho sem volta. A internet é algo relativamente novo, as pessoas ainda estão aprendendo a como se comportar de forma civilizada com seus brinquedinhos virtuais. A tecnologia ao mesmo tempo em que pode aproximar as pessoas pode esquematizar demais as relações humanas. Tenho curiosidade pela inovação, mas tenho horror da dependência e das polarizações rasteiras das redes sociais, das fake news, do corajoso virtual. Tenho interesse pela tecnologia mas procuro trabalhar com o número e o tipo de ferramentas que o meu dinheiro pode comprar. Há um excesso de produtos mais do mesmo travestidos de uma nova versão com pequenas modificações que se quer magnífica e que anula a versão anterior: depois do produto X, vem o X.2, o X.3 etc. No mundo contemporâneo os celulares talvez sejam o melhor exemplo para isso. Escrevo em laptop, tablet e principalmente à mão. Textos mais curtos, como poemas e letras de música, escrevo os primeiros rascunhos à mão, no máximo no tablet. Textos mais longos, já direto no computador. Gosto de associar as possibilidades gráficas e estéticas que a tecnologia proporciona a um certo minimalismo de recursos. Por exemplo, fotografias e colagens com letras feitas à mão. Gosto de câmeras digitais. Assim como todo mundo, também virei fotógrafo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Começando pela segunda pergunta. Não tenho exatamente um conjunto de hábitos para ser criativo mas pratico, às vezes inconscientemente, uma série de ações e movimentos que ajudam. Buscar fazer coisas novas. Manter a curiosidade acesa. Acompanhar o trabalho dos artistas inquietos. Ter a coragem de se reinventar, saber que não sabe, tatear outros rumos. Quando me estabeleci como letrista e tinha dois livros de poesia publicados, fui atrás de escrever um romance e fui coautor de uma peça de teatro. Quando voltei para a poesia, fui estudar artes visuais no Parque Lage, uma escola livre de grande conceito no Rio de Janeiro. Tenho muito interesse sobre o trabalho dos novos talentos, dos bons artistas, poetas e escritores jovens, o sangue novo, como o escritor carioca Geovani Martins. E também sobre artistas estabelecidos antenados com a transformação e que mantêm um frescor, uma liberdade, como Tom Zé. Sobre a origem de minhas ideias, elas nascem das mais diversas formas: da observação do cotidiano, da infância, do acaso, de um desejo, do meu próprio processo de vida, das histórias que eu ouço ou daqueles recortes em que me esforço para captar o ruído e a voz das ruas, que tanto pode ser o pedaço de um diálogo, um sentimento, uma frase ou uma palavra pinçada num bar, numa esquina. Tudo pode ser matéria prima da criação artística, incluindo a dor, os obstáculos, a incerteza. A minha letra de música mais conhecida, “Por você”, surgiu de um romance que não estava dando muito certo. Talvez se tivesse dado certo eu não teria escrito, primeiro como poema, a letra de música que mudou minha vida. Ela me permitiu tomar coragem e pedir demissão de um emprego estável no Consulado Geral do Japão e passar a viver, já há vinte e um anos, na corda bamba, com altos e baixos, mas com muito prazer, dos meus direitos autorais.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Um aspecto que se tornou muito importante em meu trabalho foi a questão visual. Palavra e imagem passaram a estar intimamente ligadas em minha criação. Sempre me interessei pela poesia visual, mas o que mudou ao longo dos anos foi a aproximação das duas artes e o progressivo apagamento das fronteiras. Os cursos de artes visuais que fiz na escola do Parque Lage me abriram novas possibilidades de atuação. Participei de quarto exposições coletivas, com fotografias e poemas. Criei um projeto experimental, com o guitarrista Maurício Negão (Frejat, Marcelo D2, Ney Matogrosso), o Célula Mater, que reúne experimentos sonoros, fragmentos poéticos e cinema, Passei a fazer as capas de meus livros e de um disco, os flyers das apresentações do Célula Mater. Acho que cada vez mais busco atingir camadas de sentido e de sentimentos com um certo minimalismo, através da simplicidade de formas, caminhos e de cortes, por vezes cinematográficos, no texto – ou no verso. Uma tentativa disso é o meu novo livro de poemas “Decolagem”, que escrevi após passar por um sério problema de saúde, e que é, de certa forma, uma celebração da vida, apesar dos dias difíceis, e do mundo como está. E tem ainda, na busca de fazer coisas novas, o disco de samba “Hoje o dia raiou mais cedo” (em todas as plataformas digitais), minha estreia no gênero, também lançado recentemente, em coautoria com o cantor e compositor Agenor de Oliveira e o poeta e letrista Rogério Batalha, e que contou com as participações especiais de Nelson Sargento, Moacyr Luz, Frejat e Ney Matogrosso. Estou agora num período interessante da vida, bastante envolvido com estes dois lançamentos quase simultâneos, depois do susto de me descobrir com uma doença grave, um câncer, e de me recuperar em aproximadamente seis meses de luta e fé no afeto. O que eu diria a mim se pudesse voltar à escrita dos primeiros anos? “Vai fundo…Você ainda não viu nada!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há muitas coisas. Fazer cinema seria lindo, ou ter um texto meu adaptado para a tela, gravar um disco com liberdade de experimentação e com novas parcerias (eu gravei um disco autoral em 2014, “Vou à Vila”, porém mais próximo do universo do pop rock), fazer uma exposição individual de fotografias, colagens e poesia visual, lançar uma espécie de antologia de meus cinco livros de poesia com poemas escritos à mão e fotografias em diálogo com o verso. Sobre o livro que gostaria de ler e ainda não existe… Gostaria de ler o livro de uma poeta brasileira, negra, pobre, que ainda não nasceu, e que vai representar uma ruptura na poesia mundial do século 21, assim como Baudelaire e Rimbaud, com “As flores do mal” e “Uma estação no inferno”, respectivamente mudaram a poesia da modernidade. Este livro será ao mesmo tempo vanguarda e extremamente popular. Terá grande importância para as novas gerações e exercerá papel preponderante na valorização da arte e da cultura para o desenvolvimento pleno do nosso Brasil tão castigado pelas elites. Sonho meu.