Matheus Guménin Barreto é poeta e tradutor, autor do livro A máquina de carregar nadas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Para a escrita de poesia não tenho rotina.
Quanto ao resto, como a escrita de meu doutorado não exige horários fixos e como as aulas de alemão que dou são normalmente à tarde e à noite, não preciso acordar muito cedo – apesar de também não acordar absurdamente tarde (a não ser em dias excepcionais).
Tomo café ouvindo música. As minhas grandes paixões (muito maiores do que minha paixão por literatura) são música instrumental e ópera – apesar de, na verdade, antipatizar com boa parte das outras pessoas que também ouvem isso e que às vezes são bem esnobes. As pessoas têm um fetiche pela música “clássica” que não faz muito sentido – é só um tipo de música. Não exige (ou não deveria exigir) roupa especial, pose especial, carão especial. É só um tipo de música. De modo geral, por exemplo, acho os textos de ópera bem ruins, a música é o que salva. De qualquer forma, em 90% ou 95% do tempo que passo em casa escrevendo a tese, traduzindo, etc; é isso o que eu ouço. Nas últimas semanas as que mais ouvi de manhã foram a quarta de Brahms (com Carlos Kleiber) e o CD “The art of the prima donna” da Joan Sutherland (que começa com a maravilhosa “The soldier tir’d of war’s alarms”!). Às vezes, a quinta de Shostakovich (com Mravinsky – talvez Sanderling ou Rostropovich). Acho que me divirto escolhendo quase tanto quanto ouvindo.
O resto do dia (quando ou enquanto não preciso sair de casa) passo fazendo minhas obrigações enquanto ouço essas gravações. Tento sair o mínimo possível, não gosto muito de sair de casa. Quase só saio para ir ao mercado e dar aulas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que o meu melhor horário para a escrita é o da tarde. Não tenho um ritual de preparação para a escrita porque eu raramente decido escrever. Se escrevi três ou quatro poemas na vida por ter decidido escrevê-los foi muito. O ato da escrita não está sob meu controle, então tento simplesmente ter as ferramentas sempre afiadas: a percepção, a atenção, o cuidado com esse bicho arisco que é a palavra. Faço isso lendo bastante (acho que desde os 14 ou 15 anos não tenho espaços vazios entre um livro e outro – quando termino um livro já tenho o seguinte à mão) e conversando com ou ouvindo a conversa de outras pessoas (gosto muito de falar ao telefone [para horror dos meus amigos] e de prestar atenção às conversas alheias quando saio de casa). Leio pouquíssima teoria e muita ficção.
Quando as ferramentas estão afiadas, fica mais fácil escrever caso o impulso venha (não sei de onde ou para onde). Se estou fora de casa escrevo numa caderneta que carrego sempre, se estou em casa escrevo no notepad, já que o Word pode alterar as palavras digitadas sem que notemos. Não tenho religião, então encaro esse impulso como algo simplesmente biológico.
Devo escrever cinco ou seis poemas por mês.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nem todos os dias, nem em períodos concentrados. Apesar de às vezes acontecer de eu escrever dois ou três poemas em um dia, o normal é que eu escreva apenas cinco ou seis por mês.
Como não dependo financeiramente da minha escrita, não coloco metas ou prazos. Já cheguei a ficar onze meses sem escrever (depois de terminar A máquina de carregar nadas) – imaginava até que não fosse escrever mais, o que não seria nenhum desastre. Acho que eu veria o fim da escrita, se ele viesse, como algo natural. Nada é fixo. O pianista canadense Glenn Gould dizia que não tinha nenhum amor especial pelo piano – simplesmente calhava de ele conseguir criar arte a partir daquele bloco de madeira. Digo o mesmo em relação à poesia: calhou de eu conseguir criar arte a partir desse corpo esquivo que é a língua, e não a partir do cinema, ou da natação ou do que seja.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Normalmente os quatro ou cinco primeiros poemas de um livro vêm sem plano, sem direção. A partir da leitura desses primeiros poemas eu começo a delinear um projeto de livro que, pode-se dizer, impõe-se a mim mais do que é forçado por mim. Curiosamente esses primeiros são os que eu normalmente jogo fora depois – quase sempre eles são mais fracos do que os seguintes.
A partir desse projeto que delineio (ou que o poema delineia em mim), os poemas seguintes já vêm de modo mais direcionado, de um jeito mais alinhado às noções que tirei dos primeiros (ainda que seja para contradizê-los). É uma relação estranha. Se não soasse muito mirabolante eu diria que os próprios poemas ditam o livro ao qual pertencerão (mas aí me lembro que, se os poemas saem de mim, são parte do que sou, então todo traço espiritual se perde e tudo fica certo – no final das contas eu dito algo a mim por vias complicadas, e tudo se resolve assim).
Da mesma forma, em algum momento os poemas escritos começam a se diferenciar muito dos anteriores. Nessa hora sei que acabei um livro. Então salvo os poemas na ordem em que foram escritos e fico seis meses exatos sem lê-los (chego a marcar em uma agenda). Depois desse tempo eu começo a ler o livro e a cortar os poemas que me parecem fracos. Não tenho muita pena dos poemas – se achasse que preciso cortar todos, eu cortaria. A máquina de carregar nadas, por exemplo, deve ter só 15% ou 20% dos poemas que escrevi naquele período.
Enquanto releio e corto poemas, já vou criando uma estrutura para o livro (de modo geral, ela já fica clara assim que começo a leitura, como se ela, sem que eu percebesse, tivesse se feito durante o período de escrita [leia-se: como se eu tivesse mandado a mim mesmo uma mensagem oculta, um bilhete na garrafa]).
De modo geral, crio um tipo de narrativa na estrutura de meus livros – não separo os poemas apenas por temas nem por período de escrita. Depois da releitura, dos cortes e da estruturação, guardo o livro por mais algum tempo (essa parte é menos fixa: às vezes um mês, às vezes dois). Depois leio tudo mais uma vez e corto mais um pouco.
E aí o livro está pronto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não me importo com as travas da escrita ou com a procrastinação, já que não dependo financeiramente de meus poemas. Pelo mesmo motivo, não tenho ansiedade de trabalhar em projetos longos. Acho que esses desvios também são importantes, talvez tanto quanto a escrita contínua.
Quanto às expectativas alheias, acho que elas também não são uma questão para mim. Depois das brincadeiras bestas de adolescência, eu acho que me tornei muito exigente comigo mesmo, exigente de um jeito maníaco, até. Por isso digo que A máquina de carregar nadas é meu primeiro livro – porque é o primeiro que me pareceu ter algum valor. Eu realmente seria capaz de cortar todos os poemas de um livro se eu não gostasse deles. Acho que o importante é que não faço questão de publicar livro nenhum, não faço questão de ser “escritor”, de ser “poeta”, tanto faz isso; se publico é porque gostei do resultado. Então se os poemas passam pelo processo que descrevi na resposta anterior (e A máquina de carregar nadas foi o primeiro a passar), e eu fico satisfeito com eles, já não me importo muito se as outras pessoas vão odiar ou adorar aquilo. É claro que prefiro que meus poemas causem sempre uma experiência estética forte nos leitores, mas essa infalibilidade não existe. Então se eu gosto do resultado eu já me sinto satisfeito, isso já me basta. Se as outras pessoas vão gostar ou não já importa pouco.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como comentei anteriormente, minhas revisões são quase maníacas. Raramente mostro poemas recentes, mas acontece sim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tanto faz: escrevo numa caderneta se estou fora de casa, e no computador (no programa notepad) se estou em casa. Acho que a tecnologia tem um papel mais importante depois da escrita: a internet liga autores do país inteiro (e não só do país) de um modo que antigamente era inviável. É claro que há limites e falhas, já que as estruturas sociais acompanham e moldam as relações interpessoais tanto na internet quanto fora dela. Mesmo assim, acho que a situação seria (era) ainda pior sem a internet, principalmente para os autores de grupos sociais minoritários.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Realmente não sei de onde vêm ou para onde vão minhas ideias. Do e para o corpo, talvez, já que não gosto de explicações “celestes”. Os hábitos eu comentei em respostas anteriores.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros poemas?
Aprendi a cortar e a não ter pena do texto. A limpar o texto, talvez (o que claramente não se aplica aos que não são poemas, vide as respostas erráticas que dei no início desta entrevista).
Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros poemas eu diria a mim mesmo: corte, corte, corte, corte, corte.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu sempre começo o projeto que gostaria de fazer (se vou terminá-lo ou não, aí já é outra história). Agora tenho dois livros prontos de poemas (um deles já na editora – ele se chama Poemas em torno do chão & Primeiros poemas e deve sair em Mato Grosso ainda em 2018 pela editora Carlini & Caniato), um escrito (mas que ainda não passou os seis meses guardado) e outros dois em processo de escrita. Esses cinco livros inéditos e o já publicado A máquina de carregar nadas são, por enquanto, aquilo que consigo colocar sob a expressão (um pouco pomposa demais, esnobe demais) “minha obra”.
O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe é sempre o livro que eu tento escrever no momento.