Marlova Aseff é tradutora, doutora em Literatura e em Tradução, e pesquisadora da área de Estudos da Tradução.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Costumo acordar e fazer um chimarrão, hábito da região onde nasci, na fronteira do Brasil com o Uruguai. É quase um vício, mas substitui o café e também tem muita cafeína. Adoro tomar “mate” (é assim que chamamos o chimarrão na fronteira) porque me faz sentir conectada à nossa ancestralidade. Sei que a cultura indígena foi invisibilizada, mas ela ainda está muito presente se estivermos dispostos a enxergá-la: no nosso vocabulário, assim como nos nossos hábitos alimentares, nos chás, unguentos, benzeduras etc. A minha rotina depende dos compromissos assumidos em cada época. Se eu estou fazendo uma tradução, vou para o computador bem cedo. Caso contrário, começo o dia lentamente, respondendo e-mails, lendo aleatoriamente, mexendo nos papeis e nos livros. Se conseguir me lembrar dos sonhos que tive à noite, passo um tempinho pensando neles, pois gosto muito de analisar as simbologias do inconsciente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã, sou mais lenta e só produzo antes das 10h no caso de ter muito trabalho ou de estar dando aulas. Na verdade, o auge da minha energia concentra-se do meio da tarde até a meia-noite. Ritual? Quando fiz oficina literária com o escritor Luiz Antônio de Assis Brasil, em Porto Alegre, ele nos recomendou ler um trecho de um bom autor antes de começar a escrever, para entrar num certo ritmo de escrita. Não faço isso! (risos) Na verdade, gosto de reler o que já fiz e seguir em frente de onde parei. Já para iniciar um texto, preciso de um momento inspirado, de conexão. Eu aprendi (por meio de dicas de escritores) a não ser a autora e a editora ao mesmo tempo. Isso significa que primeiro é preciso largar a mão sem pensar em vírgulas, ortografia etc. Primeiro, deixo fluir o discurso como ele vier. Depois, em outro momento, sento para corrigir e fazer o papel de editora do texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas, pois sou pautada pelos compromissos. Infelizmente, sou atropelada pelas demandas e trabalho melhor para terceiros do que para os meus projetos autorais. Mas sinto que isso está mudando… Percebi que estou perdendo tempo e desperdiçando muitas ideias por não ser mais metódica. Estou trabalhando para mudar meus hábitos e, ultimamente, ando mais produtiva. Têm épocas em que abandono tudo o que é trabalho intelectual e vou costurar, fazer colagens e artesanato. Isso começou depois dos 30 anos. Senti um enorme cansaço intelectual depois de escrever minha primeira tese e, desde então, tive a necessidade de fazer outras atividades. Gosto também de trabalhos ao ar livre, como cuidar do jardim etc.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de anotar em um caderninho as minhas ideias. Só depois começo a escrever rapidamente, os meus artigos acadêmicos ou as minhas ficções. No caso da ficção, costumo começar num bom ritmo e aos pouco vou perdendo o fôlego. Deve ser por isso que ainda não terminei nenhum romance (iniciei dois). Já no caso de textos acadêmicos, como um ensaio ou uma tese, depois de iniciados, alterno entre a pesquisa e a escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Funciono, infelizmente, sob pressão da responsabilidade assumida com terceiros. Então os meus projetos pessoais são os mais prejudicados. Como eu já disse, espero conseguir mudar isso. A questão de corresponder às expectativas é terrível, porque são infinitas, vagas e variadas como são as pessoas. O bom da vida é que a gente está sempre aprendendo. É como se somente pudéssemos enxergar o nosso estágio anterior depois de já ter subido um degrau. Experienciar, se colocar à prova, é fundamental, mesmo que o resultado seja decepcionante. Por isso eu gosto quando uma grande tradutora, como a Rosa Freire D’Aguiar ou a Denise Bottmann, diz: “errar faz parte, não se martirize, todos temos nossos erros e cochilos”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No caso dos textos ficcionais, reviso muitas vezes. Deixo repousar…Às vezes, retomo um texto e me espanto de tê-lo escrito! Geralmente eu gosto… Eu mostro os meus textos para poucas pessoas, pois é algo muito delicado. Tem gente que não vai dizer que não gostou. E outros têm preferências estilísticas diferentes, por mais amigo que seja. É difícil encontrar alguém para confiar em matéria de literatura. Já na escrita acadêmica, os artigos passam por pareceristas, então não costumo mostrar para ninguém antes de enviar para a publicação. Ultimamente, tenho experimentado fazer alguns poemas-colagem, ou algo que eu estou chamando de poemas-colagem. Pego um texto de revista e, limitada pelas palavras daquele texto, as recorto e monto um poeminha. O resultado é interessante, mas não sei avaliar o quanto. Ainda não mostrei para nenhum “especialista”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Varia… Na hora da criatividade, prefiro o papel. Mas às vezes começo no computador também. Em relação à tradução, uso os programas de memória de tradução, as chamadas CAT Tools. Acho que o computador ajuda muito na edição, a mudar a ordem das frases e dos parágrafos. Também para procurar palavras, sinônimos, pesquisar informações de uma forma prática e rápida, não tem nada igual.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Há períodos em que tenho muitas ideias, seja para escrever algo ficcional ou acadêmico, como também para fazer colagens, fotos, bolar frases para as redes sociais. Parece que as antenas estão apontadas para todos os lados. Depois, isso passa e vem a seca. Eu acho que a criatividade pode ser alimentada com filmes, exposições, leituras, enfim, todo tipo de estímulo. Quanto mais você se nutre, mais surgem conexões inusitadas, boas sacadas. Para mim, criatividade é isso. Eu me considero bem criativa, mas até agora concretizei menos do que desejaria. Com a idade, pretendo mudar esse estado de coisas! Eu acho que a chave da criatividade está em um modo de olhar as coisas, um modo livre, aberto, sem ter medo do ridículo. Eu me considero bastante intuitiva… Minha forma de conhecer e conceber é bem mais intuitiva do que racional. Por vezes sinto falta de ser mais racional e sistemática. Também adoro o humor. Tenho muito prazer com o humor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Para escrever não basta querer. É preciso ter o que dizer. Esse é o maior problema. Quando eu era adolescente, eu tentei escrever ficção, mas ficou muito, muito piegas. Eu não tinha estofo cultural, nem experiências suficientes. Uma vez li que a experiência é como um rio subterrâneo, precisamos de um pouco de esforço para acessar esse manancial que forma a escrita. Só vou escrever ficção se tiver algo a dizer. No caso da escrita acadêmica, me parece mais fácil ter algo a dizer, pois vamos acumulando as descobertas de outros, fazendo novas conexões, avançando aqui e ali. Ajo de forma muito inconsciente para dizer o que mudou ao longo dos anos. Posso dizer que hoje sou mais autoconfiante.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de terminar um projeto de romance que tenho iniciado, que trata do Brasil de forma indireta, alusiva. Eu também espero ter a oportunidade e a capacidade de traduzir grandes textos no futuro. Um livro que não existe? Que pregunta maravilhosa, me fez sonhar… Gostaria de ler um conto perdido de Jorge Luis Borges (olha, isso também rende pelo menos um conto!) Gostaria de ler um livro exótico do Oriente, que me levasse para algum tempo da delicadeza, como diz Chico Buarque, um livro que me fizesse sentir a brisa do mar em algum verão mítico, um livro de religare. Algo entre o conto “El Sur” de Borges e Os frutos da terra, de André Gide.