Mário Medeiros é escritor, sociólogo e professor da Unicamp, autor de “Gosto de Amora” (Malê, 2019) e “Numa esquina do mundo” (Kapulana, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo por volta das 06h30 e meus dias começam geralmente pela passagem do café preto na cafeteira elétrica, o cuidado com os meus cachorros, alguns exercícios e banho. Feito isso, começo a trabalhar. Isso implica em responder mensagens do trabalho na universidade, outras demandas de trabalho e escrever. Escrevo todos os dias, sejam textos de sociologia ou rascunhos que podem vir a ser algo literário. Gosto de escrever ouvindo música. Se puder ouço o dia todo, mas não consigo ler ouvindo música, porque me distrai para ler (mas não para escrever, provoca o efeito contrário, de concentração). Gosto de música instrumental, sem canto, geralmente. Trabalho a maior parte do tempo no quarto da casa que é o escritório. Ou na sala. Mas a vontade escrever ou a ideia para algo de escrita aparece a qualquer momento, em qualquer lugar. Então, não é raro ter papéis, cadernos, bloquinhos espalhados pelos cantos de casa (que não é grande). Ou ainda um aplicativo de celular, que passei a usar há alguns anos, com notas de rascunhos para textos de pesquisa sociológica ou de literatura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho praticamente o dia todo, a partir das 08h ou 09h e não é incomum (especialmente agora com a pandemia e em casa, que criou um tempo estranho), com os intervalos para refeições, trabalhar até 22h ou, caso haja prazos mais apertados, volume grande ou mesmo vontade, avançar até depois da meia noite, uma da manhã. Eu durmo pouco, infelizmente. Sinto que o dia flui melhor pela manhã, à tarde é mais arrastada (especialmente após o almoço) e a energia volta fluir melhor à noite. Até por socialização, criação, penso que as coisas devem ser resolvidas logo pela manhã. Isso impacta o trabalho e escrita.
Não tenho rituais para escrever, a não ser o da escrita diária. É um trabalho, um treino e uma técnica, para demandas e públicos diferentes. O café está sempre por perto, acho que funciona como estimulante, mas também como companheiro de viagem. No processo da escrita de uma ideia, do desenvolvimento de um texto, paro para ler e reler muitas vezes. Às vezes gosto de fumar lendo ou relendo o que escrevi. Sempre gostei de escrever à mão, tenho vários cadernos manuscritos, canetas e lapiseiras. Guardos os cadernos de meus trabalhos em sociologia (mestrado, doutorado, artigos e livros) como dos contos que viraram os livros Gosto de Amora (Malê Editora) e Numa Esquina do Mundo (Kapulana). E de outros que, quiçá, virão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A meta é dada pelos prazos. Eu costumo respeitar os prazos e as demandas, às vezes elas se avolumam um tanto. Mas não estabeleço uma meta de x páginas por dia ou por semana. Há momentos em que o trabalho que flui melhor, então escrevo mais. Outros em que não passo de um parágrafo, ou de uma página por dia. E em que rasuro o manuscrito ou simplesmente apago no computador. Então, vou fazer outra coisa: ler algo novo, reler, ver um filme, uma exposição, bater perna. Ou outra parte da pesquisa, por exemplo, que envolva levantamento de dados, realizar ou analisar uma entrevista, algo assim. Mas eu escrevo todos os dias, um pouco. Especialmente pelas manhãs e à noite. À tarde posso ser interrompido para fazer coisas da casa, resolver coisas na rua ou mesmo de compromissos de trabalho externo. Então as manhãs e às noites são os momentos com menos interrupções. Acredito também que escrever é uma parte do trabalho. É necessário ler muito, seja para pesquisar em ciência ou para escrever literatura. O pesquisador e o escritor são, antes de tudo, grandes leitores e não tem como ser diferente, se for levado a sério o trabalho.
Há o fato de morar sozinho, não ter filhos e ter a possibilidade de organizar meu tempo. Isso são vantagens que, infelizmente, não são compartilhadas a todas as pessoas, haja vista as dinâmicas de poder de classe social e gênero na nossa sociedade. Não posso esquecer de dizer que sou um homem, de classe média, assalariado regularmente e com curso superior, que pude fazer certas opções na minha vida que impactam também meu trabalho de escrita (não ter família e filhos que dependam de mim, por exemplo). Contudo, também sou um homem negro, no Brasil. E ter a escrita como trabalho, como trabalho intelectual, é também algo incomum e insubordinado. Eu vivo exclusivamente do meu trabalho e a maior parte dele é escrever, tanto na universidade como na literatura.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente tudo começa com o título. Tanto em sociologia como em literatura, raramente eu consigo escrever algo sem ter um título na cabeça já esboçado. Posso ter o tema, o problema da pesquisa, os dados, a motivação etc. Mas sem uma ideia de título, um esboço de como vou nomear o texto, nada anda. É curioso isso, para mim. Depois, posso até mudar o título, como já aconteceu muitas vezes. Mas sem achar aquele pontapé inicial, mesmo ruim, nada anda. Sempre foi assim. A partir deste ponto, cada texto é um texto. As pesquisas científicas dependem, claro, dos dados que eu coletei, do levantamento de fontes variadas e da leitura de bibliografia. A escrita é a etapa final. Já os textos literários – eu escrevo contos – aí depende. Às vezes aparece uma frase, uma ideia geral. Às vezes vem o conto inteiro, de uma vez e eu preciso parar tudo, sentar e escrever. Mas pode acontecer com sociologia também, a estrutura do artigo, texto, básica, poder ser desenvolvida de um átimo (mas é mais raro, trata-se de escrita para outro público, com regras rígidas).
O ato de escrever é prazeroso para mim. Isso não significa que seja fácil escrever, porque depende de todas as coisas que já mencionei, a depender de algumas regras que podem ou devem ser observadas e do público destinado. Mas eu tenho facilidade para escrever, conquistada com treino da técnica, por anos. Ao mesmo tempo, escrever, às vezes, é como um transe, como ser tomado como cavalo de santo, o texto sai, precisa sair. E é prazeroso quando sai, mesmo que depois de muito tempo, com dificuldade. É algo físico, mas não apenas. É uma das fronteiras do desejo, no sentido de ser este lugar da falta e da procura, jamais satisfeita. Pode ser que seja publicado ou não, isso é outra coisa e depende de outros fatores, muitas vezes alheios a mim. Mas o trabalho, que importa, foi feito. O trabalho da escrita, o ato de escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido com isso de maneira muito prática. Eu escrevo porque preciso, tanto em matéria de necessidade vital, como para sobreviver. É um trabalho, é o meu trabalho e eu preciso fazê-lo, tanto porque gosto como pelo fato de precisar pagar minhas contas, de ser um dever. Então, eu me imponho prazos, procuro respeitar ou negociar um pouco os prazos que me impõem e não procrastinar com a escrita. Eu não sofro para escrever, não me sinto angustiado, nada disso. É algo que me dá muito prazer. É prazeroso ver o texto concluído, ser desafiado a concluir uma ideia, realizar uma pesquisa, ser capaz de comunicar o que quero. Às vezes trava sim, mas eu sou muito teimoso. Pode levar anos, mas eu vou escrever o que quero, ou pelo menos tentar. Isso tanto para a sociologia como para a literatura. Publicar são outros quinhentos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Literatura não costumo mostrar para ninguém. Antigamente eu mostrava para alguns amigos, mas parei. Comecei a entender que o texto tem que se sustentar sozinho, sem elogios. E felizmente os amigos leitores sempre foram muito generosos, mas isso também não ajuda. Mesmo sendo verdadeiro, o elogio não me soa bem, porque parece obrigatório já que a pessoa me conhece. O texto tem que ir para o mundo e sofrer suas consequências, independentemente do leitor me conhecer e ter algum afeto positivo por mim. O texto científico segue outra regra, já que ciência precisa ser testada, avaliada, julgada por outrem, pelos pares. É uma regra básica, sempre haver avaliação de outros e validação para o texto científico e seus dados. O texto literário, a validação não necessariamente ajuda a continuar escrevendo. Caso contrário, não haveriam transgressões e transformações na história literária.
Eu leio e releio muitas vezes meus textos, reescrevendo um ponto aqui ou acolá. Mas como escrevi antes, quase sempre, depois de muito pensar, a ideia sai, num volume que depende dos prazos, do estágio do trabalho e também da inspiração. Mas eu sempre releio.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antes eu escrevia primeiro tudo à mão, em cadernos de rascunhos. Fui perdendo um pouco deste hábito (ou necessidade) quando comecei a trabalhar como técnico do patrimônio cultural, funcionário público, na Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, pois tínhamos que produzir muitos pareceres, com prazos curtos. Então, tive que aprender a pensar e escrever diretamente com o computador. Eu nunca digitei muito rápido (não fiz curso de datilografia, não sei digitar com os dez dedos) e isso me atrapalhava. Antes eu só levava ao computador o texto já quase definitivo, quase pronto, que eu tinha manuscrito. Porque penso que há algo muito particular no manuscrever, entre a mão e a ideia, o papel e a caneta, o gesto no papel e a velocidade da ideia. Como digito devagar, me irrita o fato de não conseguir escrever com a velocidade que quero no computador. Escrevo muito mais rápido à mão e a ideia me parece sair melhor acabada. Além disso, o manuscrito me dá uma ideia de segurança, de cópia segura, de materialidade da ideia, sobre o papel (seja ele qual for). Mas a demanda dos trabalhos e o tempo do capital não permitem tanto isso mais. Não é algo romântico, no sentido ruim. Mas a minha relação com a escrita. Hoje, eu procuro fazer apontamentos de ideias em tópicos, no papel e desenvolvo depois no teclado do notebook. Mas ainda conservo o hábito dos cadernos, especialmente para os contos: tenho cadernos para contos manuscritos, para notas de aulas que leciono, para pesquisas em andamento ou ideias de artigos que quero escrever. Ainda escrevo à mão, mas bem menos que antes, infelizmente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Costumam vir da observação. Pelas profissões que possuo (sociólogo e escritor), gosto muito de observar os outros, a forma das falas, os gestos, as palavras usadas, o comportamento. Por isso mesmo, durante anos, mantive um caderno de rascunhos na bolsa, pois sempre tinha algo para anotar caminhando pela cidade, andando de ônibus, no metrô ou no trem. Numa fila de pão ou de espera em consultório ou repartição pública. Também anoto no celular. Não sei bem sair à rua sem um caderno ou um livro na bolsa, na mochila, tanto quanto sem relógio de pulso. Eu gosto muito de viver em cidade, de andar por cidades grandes, então, são lugares ótimos para observar os outros. Às vezes ouço uma frase, de maneira indiscreta mesmo, e anoto. Um som que tento descrever (isso sempre é o mais frustrante, descrever e escrever sons). E apesar de gostar muito de música, aprecio bastante o silêncio, no sentido de ouvir mais que falar, ver mais que falar, há muito ruído no mundo já. Isso é ótimo para observar e depois exercitar no ato de escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: continue.
Continuar lendo o mais que puder, de gêneros variados. Continuar estudando e trabalhando, treinando a técnica. Não há outro jeito e não há caminho fácil. Continue, enquanto fizer sentido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Para todas essas perguntas, em literatura, a resposta é a mesma: uma novela escrita por mim. Em sociologia, a próxima pesquisa.