Marília Valengo é poeta paraibana, autora de “Grito em Praça Vazia” (7Letras, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Se tudo corre bem, a primeira coisa que faço quando acordo é organizar as pequenas lembranças do que sonhei. Ver se ainda sobrou algo na minha memória. Sonho muito e sempre. Se eu fosse realmente disciplinada, levantaria da cama às três da manhã, que é quando geralmente desperto de algum sonho muito intenso, para anotar, refletir sobre o que meu inconsciente falou, ver se tem algo que eu possa transformar em texto. Mas toda madrugada digo que não é possível que vá esquecer daquilo, me viro para o lado e durmo mais um pouco.
Então assim que levanto, tento aproveitar o restinho daquela névoa do que senti e sonhei. Com isso eu preparo o café, eu como, eu leio.
Depois eu sento para escrever. Mas a primeira escrita do dia é uma escrita livre, é mais terapêutica mesmo. É uma escrita que eu pratico para me amolecer.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã. É quando as ideias fluem melhor, quando tenho mais energia para tudo, inclusive. Para me exercitar, para trabalhar. Gostaria mesmo era de acordar super cedo para aproveitar ainda mais essa janela de estamina pessoal. Planejo há anos acordar de madrugada para escrever, mas ainda não consegui me organizar para isso.
Se eu estiver trabalhando em um projeto, ou com vontade de escrever sobre determinado assunto, tenho preparação sim, que geralmente envolve música e leituras. O básico, eu acho. Gosto de me inspirar nos outros autores. Gosto de ouvir letras que vão me fazer pensar em novas conexões, em estilos que vão me provocar saídas fora do meu lugar comum. E claro, uma mesa de trabalho organizada também faz toda a diferença.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todo dia, todo dia. Sou um clichê ambulante, dessas pessoas que andam com caderninho, que escrevem no metrô, que escrevem no meio de uma reunião de trabalho. Eu nunca paro de estar a postos para receber uma inspiração. Quase como se tivesse uma máquina fotográfica, sabe? Mas, claro que nem tudo vira alguma coisa. É um movimento obsessivo mesmo, de acumulação e de inquietação. Gostaria muito, no entanto, de ter uma meta de escrita diária. Uma folha por dia, algo assim. Sou muito anarquista na vida pessoal, preciso de disciplina.
Mas se estou com projeto de trabalho é outro comportamento, claro. Inclusive, infelizmente, é quando estou mais ocupada que eu organizo melhor a divisão do meu tempo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meus poemas acontecem muito de acordo com o processo filosófico que estou vivendo. Antes de ser poeta eu sou uma praticante do auto-conhecimento, acho que é justo dizer que é nisso que estou interessada; como transitar na vida, nas relações, como lidar com meus desejos, o que são esses desejos e, principalmente, qual a natureza do meu sofrimento. Essa é a minha pesquisa e ela não tem fim. Ela entra no meu processo de forma muito natural. Pelo menos é assim que tem sido.
Eu não espero ter notas ou reunir notas. Eu faço as anotações e quando sento para escrever, estou com elas à mão para uma consulta, para ver se elas destravam algo. Mas é raro que seja assim, só recorro às anotações quando estou travada, sem ter o que escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sinceramente, não sei. Acho que me entregando ao desespero.
Falando sério, procuro escrever sempre, qualquer coisa, manter a roda girando, seja da criação, seja da pesquisa, seja da contemplação. De vez em quando eu penso que não precisa de tanta cobrança, posto que criar vai muito além do fazer, mas como tenho um censor muito rígido, logo bravejo que estou dando desculpas. E essa sou mesmo eu, alguém que vive dando desculpas e inventando novas para justificar as velhas. Sou muito vagabunda, no sentido de vagar mesmo, de trabalhar muito mais na minha cabeça do que com o lápis. Talvez por isso eu nunca venha a me tornar uma poeta virtuosa e é por isso que estou me convencendo de que devo me contentar em ser uma poeta em construção eterna.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho uma resposta exata. Alguns poemas são mais fáceis de editar, nasceram com fluxo. Ou melhor dizendo, de um fluxo. Na verdade, eu não sou uma poeta que insiste em um poema travado. Sou muito guiada pelo receio de estar falando uma mentira e tendo a achar que os poemas difíceis de terminar são os poemas mentirosos. Portanto, se o texto está atravancando minha vida, já acho que eu ainda não alcancei sinceridade suficiente para falar com ele.
Mas eu acho que eu devia editar mais meus poemas.
E sim, mostro sim. Mostro para amigos, mostro nas redes sociais. Peço opinião, gosto de fazer circular. Estou fazendo o curso de Carlito Azevedo desde o ano passado e não consigo deixar justamente porque é o lugar ideal para expor, para ouvir, para ler, para fazer parte de uma comunidade com energia poética circulando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou cria da internet, sou super tecnológica. Mas não consigo criar no computador. Nunca consegui. Sempre andei com caderno para cima e para baixo. Levo para as reuniões, levo na bolsa, levo para a praia. Tenho uma caderneta em cada cômodo da casa. Computador para mim serve unicamente para editar. Criar só à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minha criação está intimamente ligada às minhas descobertas existenciais, como já falei. Sou uma praticante, ponto. Não tenho religião, mas sou muito interessada e comprometida em existir de uma forma ética, presente, grata, fluida, de respeito com os outros e comigo mesma, meu corpo, minhas emoções. Isso toma todo o meu tempo e meu foco, é algo que me permeia em todos os segundos. Então meus poemas surgem como resultado dessa lente anarquista e curiosa. É reflexo das minhas experiências e das minhas emoções. Por isso que digo que estou sempre criando e escrevendo, porque sempre tem um pensamento flutuando, pronto para eu jogar a rede. Mas eu quero tentar ser uma escritora que trabalha de forma mais pragmática, que ouve uma história e percebe que há algo para fazer com ela que não necessariamente passa por mim. Estou fazendo uma Pós Graduação em Escrita Criativa com Socorro Acioli, na Unifor, para ver se consigo captar melhor esse sistema.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A única coisa que eu diria para minha versão mais nova seria: tenha coragem e simplesmente escreva. Hoje parece uma coisa tão boba, mas eu demorei muito a sentir que poderia ser escritora. Chamo de boba, mas senti na pele o quanto minha insegurança foi paralisante e o quanto a demora em tratar isso: terapia, auto-conhecimento, por vezes remédio, quase me impede de ser quem eu sempre quis ser. Isso implicou, inclusive, em descobrir e lapidar uma disciplina que me levasse a ser essa pessoa que eu queria. Meu processo está em construção e eu quero que fique nesse fluxo até meu último dia na terra. Desejo nunca virar uma estátua. Então não sei se eu diria algo. Talvez: calma, vai dar tudo certo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu achava que queria escrever prosa. Ainda quero, quero escrever tudo: prosa, ensaio, crônica. E acho que estou indo nessa direção. Mas sou poeta, antes de tudo. Já tenho um livro novo em produção, que está tomando toda a minha atenção, então deixei a ideia do romance de lado. É uma coisa a parte descobrir o tema para uma história longa. A poesia, para mim, acaba sendo mais fácil de sintetizar o que quero falar porque posso deixar espaços para o leitor preencher. Mas na prosa não.
Contar algo de forma clara, com ritmo, com emoção… acho muito difícil, mas está sendo um prazer aprender, uma atividade que me dedico com toda a calma do mundo, cozinhando devagar.
Sobre sua segunda pergunta… não sei como responder. Nunca senti tal coisa. Já senti coisas que não tinham nome, mas nunca desejei algo que não havia previamente conhecido. E com livro é aquela coisa, né? Nunca sabemos em que momento vai acontecer um grande encontro. Só podemos esperar que vários deles aconteçam, de preferência o tempo todo. Mas o que eu sinto é que é preciso abrir espaço para vozes que saiam dos eixos dominantes. As histórias estão aí, somos muitos, muitas e somos extremamente diversos. Não conhecemos tudo porque ou estamos alienados em alguma bolha ou porque não temos tanta chance assim de aparecer. Por exemplo, li recentemente A Palavra que Resta, de Stênio Gardel, e fui tomada exatamente por esse pensamento de estar lendo um livro que não estaria à minha disposição de maneira tão explícita na minha juventude. E isso me emocionou. A literatura tem esse papel, de nos mostrar o mundo. Que ela esteja sempre disponível para essas vozes que irão nos ajudar a ampliar nossa vida. Esse é o meu desejo de algo que, infelizmente, ainda não existe.