Mariana Vieira é poeta, artista visual e arquiteta, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Adoro as manhãs! Normalmente começo com uma prática de yôga e um café-da- manhã reforçado. Antes era isso, depois tomar banho, sair, pegar o metrô e ir trabalhar – participo de dois ateliês integrados de Projeto de Arquitetura na PUC-Rio que passaram a funcionar de forma remota durante a pandemia o que mudou completamente a minha rotina. Ter tido que me adaptar ao sistema das aulas pelo zoom, ao muito tempo gasto na frente do computador e ao desfazimento da fronteira casa/trabalho me fizeram retomar o hábito das caminhadas e corridas matinais no Aterro do Flamengo, com alguns mergulhos no mar, para compensar as tantas horas dentro de casa e a enxurrada de notícias tristes que lemos nos jornais diariamente. Essa conexão com a terra, com a água e com as pedras da muita força para continuar na tal dança cósmica que o [Ailton] Krenak falou outro dia. Caminhar tem sido uma forma de perceber o tempo também, de olhar pra ele, de percebê-lo de outro jeito, de me relacionar com ele de outra maneira. A forma como o tempo tem passado mudou muito, não é? Sinto que os dias são outros, as manhãs são outras, as tardes, as noites. Há um espanto constante, se é que isso é possível. Outro dia falei para um amigo que não sei o que fazer com tanto azul que eu vejo nos dias ensolarados, o céu juntando com o mar, é bonito demais. Tenho muita consciência do privilégio que é poder trabalhar em casa e manter uma rotina minimamente saudável no meio do caos, por isso a caminhada se transformou também em um ritual para agradecer.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho escrito mais à tarde e à noite, mas isso varia também por conta das aulas e de outros trabalhos que me convocam. Sinto que escrevo melhor quando o corpo já alongou, correu, ficou de cabeça pra baixo e meditou. Em casa escrevo sempre na mesa do ateliê que é meu lugar preferido para escrever. Antes de começar arrumo tudo e, com esse movimento, sinto que as ideias vão se arrumando também. Curioso é que em viagens eu consigo (ao menos conseguia quando era possível viajar) escrever em ambientes públicos como mesas de bar, restaurantes, mas aqui faço apenas pequenas anotações para trabalhar depois. Digo que prefiro trabalhar durante o dia, mas a noite às vezes me pega de jeito e eu entro pela madrugada escrevendo sem conseguir parar. Depende muito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho disciplina para escrever muito menos uma meta diária. Escrevo poesia como uma experiência de total liberdade – o que pode significar muitas coisas. O exercício da liberdade passa por uma forma de viver e de ver o mundo, então sinto que está tudo muito entrelaçado. Se considerarmos as anotações soltas como escrever diariamente, sim. Acho que faz sentido pensar assim porque essas anotações são a matéria-prima de tudo que eu ainda não sei que vai acontecer na escrita final. Algumas anotações eu registro assim que me ocorrem, outras vão sendo elaboradas na mente por muito tempo como se procurassem um momento quando serão escritas – muitas se perdem, outras se transformam, por isso eu sinto que escrever, ler e viver é tudo muito parecido. Comecei a perceber que algumas anotações se perdem porque na vida é assim, perdemos coisas e situações mas aí de novo, assim como na vida, pode ser triste ou pode ser uma benção perde-las porque nunca sabemos quais anotações te pegarão pelo braço nem para onde te levarão, entende? Um verso pode ser uma chave que abre uma porta ou uma gaveta que ainda não conhecemos muito bem. Pode também não ser a hora certa ou não ser aquela chave, a loucura é essa (risos). Li outro dia um texto do Bolaño que diz: “Um poeta pode suportar tudo. O que equivale a dizer que um homem pode suportar tudo. Mas não é verdade: são poucas as coisas que um homem pode suportar. Suportar mesmo. Um poeta, em compensação, pode suportar tudo. Com essa convicção crescemos. O primeiro enunciado é correto, mas conduz à ruína, à loucura, à morte”. Fico imaginando o que ele diria se fosse uma mulher!
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo a partir das anotações escritas e das gravações que eu faço para mim mesma. Um bom sinal para começar a juntar tudo é quando começo a sentir muita vontade de reler os cadernos e ouvir as minhas próprias gravações ou quando algum acontecimento me atravessa muito profundamente. Gosto da sensação de não lembrar de algumas coisas que anotei ou gravei e de pensar sobre elas como se fosse (e acaba sendo) a primeira vez. Eu sempre gostei muito de dizer os poemas em voz alta. Quando eu era pequena achava que poemas tinham que ser lidos em voz alta ou não eram poemas. Lembro muito do meu pai lendo Fernando Pessoa em voz alta pela casa. As pausas que ele fazia ficavam ecoando em mim e os versos que ele escolhia pareciam enigmas que eu tentava decifrar. Então eu faço gravações de assuntos que vão me interessando ou de poemas que vou descobrindo e deixo o tempo trabalhar. Ao longo do processo de escrita vou gravando e ajustando o ritmo com essas escutas que repito algumas vezes. Agora tenho escutado durante as caminhadas!
Há algumas semanas regravei aquele poema genial do Ferlinghetti “nunca transei com a beleza em minha vida” para presentear um amigo e fiquei ouvindo mil vezes. No meu processo sinto que as vozes das poetas e dos poetas que admiro são muito importantes, então eu estou sempre descobrindo gravações novas ou repetindo as que eu nunca me canso. Outro dia passei horas ouvindo a Anne Carson lendo seus poemas em forma de performance-palestra. É maravilhoso ouvir o som dos poemas ou textos diretamente de quem os escreveu. Então é isso, alguma hora eu sento no computador, vou ouvindo tudo, relendo tudo, dando algumas risadas de coisas toscas que anotei ou gravei, e assim seleciono o que ainda continua a me interessar para trabalhar em cima.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu respeito muito o tempo da escrita então não costumo rotular o tempo em que não estou escrevendo propriamente como uma trava, ao contrário, eu sinto uma certa excitação nesse tempo de depuração e elaboração das ideias que está sempre associado a um estado de alerta em busca de temas que possam caminhar juntos, criar possíveis associações e/ou construir imagens. Talvez esse estado anterior ao da escrita seja uma outra forma de escrever também, que só saberemos se é isso mesmo (outra forma de escrita) ou se é nada quando o poema se realiza. Se não se realiza, lembro de Beckett afirmando que “nada é mais real que nada”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Alguns eu reviso, leio, gravo, escuto, gravo de novo, reescrevo incansavelmente e outros desapego muito rápido, não sei explicar muito bem o que acontece. Sim, tudo que eu escrevo passa invariavelmente pela minha primeira leitora, Flaviana, minha irmã-gêmea, meu termômetro mais bem calibrado. O “Numa nada dada situação” que lancei em novembro de 2020 foi construído enquanto eu fazia a oficina de Carlito Azevedo, onde a escuta coletiva foi uma experiência muito importante para o livro, mas ela sempre lia antes que eu levasse para a oficina e fazia seus comentários afiados. Naquela época, não tão longe daqui, 10 ou 15 pessoas se encontravam para falar de poesia e ler seus poemas toda quarta-feira numa salinha escondida no Flamengo. Aglomerávamos, éramos felizes toda quarta e sabíamos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As primeiras anotações faço sempre à mão, geralmente em cadernos. Na hora que decido juntar tudo isso com as gravações é que eu vou para o computador onde escrevo e reviso até chegar ao formato final.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De todos os lugares e em todas as direções. Estar viva sempre me pareceu matéria mais que suficiente para passar duas vidas escrevendo! Dizem que o meu mapa astral explica essa sensação (risos). Na verdade, percebi que utilizo a linguagem poética como um salvo-conduto para processar a minha experiência nesse mundo – reorganizando, recombinando, ampliando e criando imagens que me ajudem a perceber outras camadas do que chamamos tão usualmente de vida e que Caetano chamou lindamente de doce mistério.
Eu sempre fui muito observadora, então o jeito como as pessoas gesticulam e as palavras que elas escolhem para se comunicar sempre me chamaram muito a atenção. Já me peguei anotando coisas no escuro da sala de cinema e quase não consegui entender depois, ou voltando a um espetáculo de teatro para conseguir anotar a fala completa de um dos personagens que acabei nunca usando. Como meu trabalho também inclui experiências nas artes visuais, tudo que eu vejo ou escrevo se complementa ou se retroalimenta de alguma forma com imagens que podem ser fotografias, vídeos, desenhos, instalações. O poema Gêmeas que abre o livro, por exemplo, surgiu de tanto pensar a partir de um trabalho em que construí uma série de 5 vestidos em tecido para falar do acontecimento que foi ter vindo ao mundo e conhecer a vida junto com a minha irmã gêmea.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ah, acho que antes eu conseguia ser ainda mais dramática (risos) e achava rima uma coisa muito mais linda do que acho hoje. O mundo parecia menos caduco e caótico e, por muito tempo, eu contrariei Belchior porque gostava mais de sonhar do que de viver – então escrevia a partir de uma forma de ver o mundo que é bem diferente da forma como eu vejo agora. Sem contar os diários muito infantis, comecei a escrever e colecionar o que escrevia por volta dos 16, 17 anos. Relia tudo muito frequentemente e reescrevia tentando encontrar o ritmo certo ou criar as imagens que eu tinha na cabeça. Um dia reli tudo, achei muito ruim e joguei tudo no lixo, então só tenho o registro mental dessa fase que recomeçou alguns anos depois. Acho bonito lembrar disso porque faz muito sentido esse processo em busca de alguma coisa que eu não sabia muito bem o que era. De alguma forma aquela Mariana ainda vive aqui tentando criar imagens, fazer associações livres e procurando alguma coisa que ela ainda não sabe muito bem o que é. Se eu pudesse encontrar a Mariana de 16 anos, sem dúvida, um dos meus conselhos seria “pare tudo que está fazendo, leia “O jogo da amarelinha”, do enorme Julio Cortázar, e antecipe a abertura desse portal.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de participar de um projeto de escrita/leitura coletiva que fosse um espaço colaborativo de compartilhamento de ideias, experiências e subjetividades. São tantos livros maravilhosos que já existem que ainda não li e quero muito ler que não consigo pensar em algum que não exista. No momento, estou aguardando ansiosamente o lançamento do Viseira, livro de poesia de Duda Las Casas, que vai sair em breve pela Editora 7Letras e já é candidato certo na minha lista de melhores livros de 2021.