Mariana Paiva é escritora e jornalista.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha semana de trabalho se estende de segunda a segunda. Até porque considero leitura uma grande parte dela: preciso ler para escrever melhor, ler para comentar livros em meu instagram, ler para minha pesquisa de doutorado, ler para fazer a curadoria do clube de leitura Leia Mulheres Barão Geraldo, onde sou mediadora. Leio todo dia. Geralmente acordo mais cedo para ler – adoro: é quando tá tudo bem quietinho no mundo e posso ler sem ser incomodada por nada, a não ser por uma musiquinha de fundo. Também leio praticamente todos os dias antes de dormir: é quando leio clássicos. Pensando assim, guardo meus dias para ler literatura contemporânea, e minhas noites para os clássicos, Shakespeare, José de Alencar, Aluísio Azevedo. Agora mesmo estou lendo Moby Dick, que é um livrão enorme, antes de dormir. Esses eu leio no Kindle: amo livro físico mas não gosto da ideia de um livrão pesado caindo em minha cara quando eu pego no sono não, rs. Com o Kindle o estrago é bem menor, e tem uma luzinha mais amena que um abajur, é bem confortável de ler. De dia eu gosto de papel. Para além dessas coisas, tem escrever, que ocupa muito tempo. Literatura pede tempo. Também reservo um tempo para escrever resenhas, participar de projetos, dar aulas, responder entrevistas. Gosto muito dessa sensação que dá de ter tudo acontecendo ao mesmo tempo. Aliás, se tem pouca coisa pra fazer minha tendência é procrastinar, então eu prefiro mesmo a sensação de que tudo se acumula que aí eu vou desfazendo esses nós. Há dias em que as linhas de meu planner nem são suficientes para tantas coisas mas confesso que eu gosto, vou colorindo o que já fiz, dando ok ao lado do que já fiz, é um sentimento bom de estar dando conta. Sei que é um luxo, num país como o Brasil, ter o cotidiano todo tomado pela literatura, e procuro fazer o melhor que posso em relação a isso, incentivando as pessoas a lerem mais, dando dicas de leitura, fazendo lives de leituras de poemas. Precisamos educar as pessoas a entender que dá pra abrir espaço no cotidiano para a arte. Não é falta de tempo, porque a Netflix tá aí cheia de assinantes. É falta da educação pra arte. Essa também é uma preocupação minha todo dia, e é por isso que não dá pra ter folga. Outro dia Marcelino Freire disse uma coisa que grudou em mim: “A gente precisa abrir espaço pra literatura, ou então as pessoas vão lotear todo o fim de semana da gente com outras coisas”. Eu mesma sinto isso. Então viver a vida, estar com as pessoas, tudo tem tempo, e em meu tempo comigo eu leio, escrevo. Nem sempre é fácil, nem sempre é bom, mas é sempre um tempo muito meu e todo dia.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Gosto de deixar as coisas fluírem quando dou início a um novo projeto. Acho que muita coisa muda depois do pontapé inicial, acredito nesse poder cintilante do acaso. Tempo me parece a receita pra tudo melhorar, então eu gosto de ver o que vai acontecer, deixar rolar. Isso não quer dizer que eu não planeje: eu planejo. Mas também não fico presa ao que está ali escrito, porque a vida em si é pulsante e toda hora alguma coisa acontece. É bom o desvio. Até o Waze ajusta a rota, né? Como é que eu vou ficar alheia a isso? Não dá. Gosto desse equilíbrio entre pensar tudo antes e aceitar que as coisas vão achando outros jeitos, lugares de seguir. O que importa é isso: não largar no meio do caminho, continuar caminhando, porque esse país precisa tanto da arte que nunca vou cansar de dizer. Parece disco arranhado mas é isso mesmo, estamos vivendo um momento de desmonte da cultura, em que quem aposta na arte é visto como vagabundo. Não é. Dá trabalho – e muito – pensar e produzir cultura nesse país, significa abrir mão de muitos privilégios, fazer escolhas nem sempre fáceis. Mas entender que tudo isso vale a pena porque, lá na frente, alguém vai ler seu livro e se inspirar para escrever, que você pode abrir o caminho pra alguém que você nem conhece. A mágica é essa. Quando eu tinha cinco ou seis anos, Mabel Velloso foi até minha escola falar de literatura. Voltei para casa querendo ser escritora, porque vi ali que era possível ser menina e escrever. A importância é essa: representatividade. Porque eu não queria ser médica, dentista, astronauta, nada. Até que essa mulher incrível esbarrou em meu caminho e eu vi que aquilo existia. Que livros não eram só escritos por homens. É isso. Você planeja mas deixa seguir: com certeza ela foi até a escola para divulgar o livro dela mas não imaginava que uma menina daquela turma ia sair dali querendo ser igual a ela. A gente se reencontrou comigo já adulta, ela escreveu a apresentação de meu primeiro livro, recentemente eu escrevi o texto da quarta capa do livro dela. A vida segue. A gente dá o primeiro passo. Por isso mesmo é que eu acho que escrever a primeira palavra é mais difícil do que a última: pra primeira é preciso tomar impulso e ir, mergulhar sem saber se vai entrar água no nariz, se é muito fundo, se vai ser muito bom. Pra terminar um texto é só sentir que acabou. Começar é bem mais difícil, é como uma aula de física: sair da velocidade zero às vezes dá um trabalho danado. Parar é ir reduzindo a velocidade. Só.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Não sigo uma rotina quando tô escrevendo um livro não. E nem preciso de silêncio para escrever. Prefiro música, mas tenho que achar a música certa. Cada texto me pede uma música e às vezes eu fico muito tempo procurando até encontrar a certa, a exata, a que vai me permitir continuar a escrita com o ritmo que eu quero. Porque cada texto tem um ritmo e a música tem que acompanhar ele. E não tem que ser música clássica, pode ser qualquer coisa que eu goste, desde que tenha o tal do ritmo certinho, pode ter palavra até porque eu amo palavra. Quanto a rotina, acho lindo aquela pessoa que acorda de manhã, escova o dente, lava o rosto, toma café, troca de roupa e senta bonitinho pra escrever, levanta horas depois. Mas vamos lá, essa não sou eu, eu respeito demais isso. Tenho meu jeito de voltar ao texto depois que ele começa, uma coisa qualquer que me tira do cotidiano e me deixa em suspensão querendo correr pro texto, uma ideia que me joga de volta àquele universo. Confesso que, se eu pudesse, escrevia tudo de uma vez só, mas nem sempre é possível. Gostaria que tudo começasse e terminasse de uma vez, num turbilhão, pra que amanhã já fosse outra vibe, outro texto. Não demorar. Essa é uma questão para mim: tem muito de meu jeito nessa escrita intensa. Posso levar um tempo mas eu volto ao texto. Se eu queria ser uma burocrata do texto? Não, obrigada. Se eu produziria mais assim? Talvez. Mas não quero não. Gosto de escrever quando eu quero, no meu tempo, na vibe certa, sem forçar a barra. Palavra é muito sagrada pra eu colocar ela a fórceps no papel. Acho violento – pelo menos pra mim. Respeito super quem faz de outra forma, mas a minha é essa, e tá tudo bem com isso.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Meu jeito de lidar com a procrastinação é bem doido: todo dia eu escrevo no planner o que tenho que fazer naquele dia. Se eu não fizer uma das coisas naquele dia, eu escrevo ela no seguinte. E no seguinte. Assim vou escrevendo ela até fazer. Tá, é técnica de usar com menino pequeno, mas funciona comigo. Uma hora dá uma agonia tão grande escrever a mesma coisa todo dia que aí eu vou e faço. Quando eu começo a procrastinar só tenho esse jeito de me obrigar a fazer; geralmente é uma coisa que vai dar muuuuito trabalho e eu fico pensando duas vezes antes de começar. Nem tudo que a gente tem que fazer é muito orgânico e natural, né? Então eu vesti minha roupa de sapo e dei meus pulos pra aprender a lidar com esse momento quando ele aparece. A mesma coisa quando me sinto travada para escrever. Meu jeito de resolver isso é indo consumir a arte dos outros, ver um filme, ouvir um disco novo de alguém, ler um livro de um autor ou autora que eu nunca li. O contato com a arte sempre me faz muito bem, me levanta questões, traz ideias. Fico pensando o que eu teria feito no lugar de quem fez. Se eu travo eu sei que eu preciso relaxar, sair de cima do texto e respirar um pouco, dar um tempo. Igual a relacionamento quando começa a dar errado. Às vezes você só precisa de um tempinho longe, distrair a cabeça, ver um filme. É isso o que me destrava quando preciso escrever: distância. Não pensar nisso. Ir viver outras coisas, em outras linguagens, botar uma música e dançar, ficar menos sozinha com o texto. É preciso boa libido pra escrever. Nem falo somente de libido como vontade sexual, mas de desejo, de se sentir muito viva e pulsante. Pra mim é assim. De vez em quando a gente esmorece e aí fica mais difícil de escrever. Até quando a vida dói muito e a gente escreve a gente tá ali tentando se manter na esfera da vida, da gravidade da existência. Existir é um negócio potente. E quando a escrita trava é porque eu esqueci disso. Então trato de correr pra me lembrar, pra despertar essa libido, essa força criativa, essa energia de vida.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Acho que meu texto mais trabalhoso é sempre o que ainda tá na minha cabeça. Porque, uma vez começado, ele passa a existir por conta própria e aí ele segue. O que ainda não escrevi eu imagino sempre quanta pesquisa tem pra fazer, como começar, o que vai acontecer, e dá trabalho viver com essa consciência. Tenho dois romances em minha cabeça – um eu comecei, mas ainda não voltei a ele; o outro nunca comecei – e eu fico pensando na quantidade de pesquisa que tenho que fazer para que eles comecem a existir e procrastino. E, claro, quando você escreve muitas coisas, algumas vão passando na frente, o que tá mais adiantado se coloca antes, então às vezes eu quero escrever esse romance mas tô numa fase de escrever mais poemas, então vou seguindo até ver que já tenho um livro de poemas pronto e o tal romance que nunca saiu da cabeça fica pra depois. Ele é o mais trabalhoso pra mim porque ainda nem comecei. A primeira frase dele nunca veio ao mundo. Isso ao mesmo tempo que tenho livros que me orgulho muito de ter feito. Depois de um tempo você relê e pensa que poderia ter feito ou aquilo diferente, claro. A gente muda. Mas também entendo que não sou mais a mesma Mariana que aquela que escreveu Barroca em 2010 e que lançou seu primeiro livro em 2011. Muita coisa aconteceu desde então, e eu disse coisas de formas que não diria mais. Sem falar no que eu não falaria mais. Ou pensaria sem escrever. É que nem quando a gente vai olhar um diário de adolescência. Faria muita coisa diferente mas ao mesmo tempo sente gratidão pelo que aconteceu, por tudo ter se dado de um jeito e não de outro. Se tinha coisa que eu mudaria? Sim. Mas veja bem, se passaram mais de 10 anos desde meu primeiro livro. Em Vermelho-Vida, o romance que lancei em 2018, eu já faria muita coisa diferente. Gosto muito dele porque me senti muito livre enquanto escrevia, fui me misturando a Hilda Hilst, aos diários dela, até nem saber direito onde ela começa ou termina. Foi um livro de entrega, de como a literatura invade a vida da gente, de entrar na história, de ir além do livro da escritora na estante. Estar na Casa do Sol, onde Hilst viveu e escreveu grande parte de sua obra, mudou minha vida, e era isso que eu queria escrever. Aliás não: comecei pensando em escrever um romance sobre a Casa, era só sobre a Casa e Hilda, e quando me vi eu já tava ali misturada junto com tudo. Aquilo que eu falei que os planejamentos todos só servem até a página 12. Quando você se dá conta tá tudo misturado, eu deixei rolar porque era como tinha de ser. É meio místico isso, né? Eu acredito. Acho poderosa essa força da palavra, de fazer a gente ir escrevendo com coragem até chegar no que tem que dizer. Não acredito em meia palavra não. Quero a palavra inteira, dançar no abismo dela. Se cair, tudo bem. É subir de novo até saber se equilibrar na beirinha.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Sempre gosto da liberdade de escrever. Se a gente não for livre na hora de criar, vai ser quando? É isso, escolho os temas pra meus livros a partir do que está me mobilizando ou me tocando mais naquele momento. Se eu disser que é outra coisa estarei mentindo. Aceito a tarefa de falar do tempo, acho que as coisas ao redor vão atravessando a gente até que chega uma hora em que tudo se transforma em palavra. O estranhamento, como dizia Clarice. Olhar o mundo e não reconhecer nada, se sentir estrangeiro. Isso é o que me faz escrever. Então o tema que me alcançar e tocar eu quero, eu aceito de bom grado, é sobre ele que quero me debruçar. Claro que tem coisas que me tocam mais que outras. Gosto demais de gente, quero sempre saber de tudo, ouvir as histórias, saber como era o mundo antes de eu chegar. Aí eu escrevo muito sobre gente porque eu acho mesmo as pessoas fascinantes, os caminhos, as escolhas. Talvez escrever seja um jeito de eu viver várias vidas além da minha. Me parece um encantamento isso, estar na pele – porque é mesmo muito um lance de corpo – da mulher que todo dia pega o mesmo ônibus e que tem inveja da trapezista do circo, do operário que queima de saudade de uma mulher enquanto trabalha no andaime. Tanta vida, né? Pra mim o que mais me chama para a escrita é isso, a liberdade de ser, de viver outras vidas. Acho lindo; me sinto honrada quando as pessoas dividem comigo suas histórias. Ah, e não, não tenho leitor ou leitora ideal enquanto escrevo não. Até acho que faria muito bem, essa é uma coisa que estou tentando pensar mais. É uma luta pra transformar um processo caótico num diálogo com alguém que ainda não tá lá, mas é um caminho, tô aí nessa luta.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Meus rascunhos geralmente são muito meus. Sempre que eu pego um caderno meu de adolescência eu lembro a razão: escrever é uma coisa que foi tão solitária durante tantos anos em minha vida que acho que acostumei. Gosto assim, na verdade. O rascunho precisa de mim e eu dele: às vezes eu o abandono, às vezes eu o retomo para seguir. Eu e ele ficamos amadurecendo juntos o olhar, brincando de cubo mágico, tentando ajustar as cores. Se ainda não terminei de escrever sou eu e meu texto. A sós, intimidade, flerte puro, ele tentando me convencer a não ser abandonado e trocado por outro. Porque acontece, às vezes eu passo a folha e aí já foi. Rasgar não rasgo não. Aí um dia volto ao caderno, passo a folha, olho aquele rascunho, penso “até que não é de todo ruim” e dou uma mexida. Pode acontecer tudo, ou não. Dividir com outras pessoas mesmo é uma coisa que só acontece antes da publicação. É muito íntimo então eu não divido com muita gente não. Existem meus leitores e minhas leitoras antes de tudo, antes de seguir pra quem quiser ler, e esses recebem os textos que eu acho que combinam com eles. Se é uma pessoa que lê muita crônica talvez eu mande o romance pra outra pessoa. A gente sabe, né? É igual a amigo: poucos são os que funcionam para todas as coisas; é mais normal ter aquele amigo de festa, outro pra chorar, outro pra viajar junto. É raro que todas as coisas estejam unidas na mesma pessoa, e com leitor eu penso do mesmíssimo jeito. Procuro respeitar isso.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
O momento em que decidi foi quando eu tinha cinco ou seis anos e conheci Mabel Velloso. Foi quando eu parei minha vida e disse a minha mãe que queria ser escritora. Eu lembro do exato momento em que Mabel apareceu, as crianças todas sentadas no chão da sala, todas ao redor dela. Depois o caminho natural foi aprender a ler e escrever, ir lendo cada vez mais. Minha casa sempre teve muitos livros, fui muito sortuda por isso. Meus pais sempre foram bons leitores, sempre vi os dois com livros nas mãos. Acho que isso foi até mais importante do que ouvir deles que ler era legal, porque, se eles estavam lendo, devia ser porque era bom. Aos poucos fui pegando os livros que eram “da casa” para a prateleira de meu quarto. Os brinquedos e os ursinhos de pelúcia tiveram de abrir espaço para os livros. Então foi um caminho bem orgânico de ir lendo e escrevendo porque era mesmo o que eu queria (e quero) fazer. Só sigo nisso. Quanto ao que eu gostaria que tivessem me dito quando eu comecei e que ninguém me contou, acho que queria ter sabido antes o tanto de dedicação que isso ia tomar de mim. É como ser uma ginasta que aprende pequena as coreografias, a trabalhar o corpo, ensaiar até os músculos estarem muito exaustos. Claro que eu queria ter ouvido isso de alguém, que a escrita ia tomar tudo em minha vida, e que tudo o que não tivesse a ver com isso ia ficar pelo caminho. Porque isso custa relacionamentos, ainda mais sendo uma mulher. Estamos em 2021 mas ainda vivemos numa sociedade em que os homens ganham aumentos, fazem pós-graduações, enquanto suas esposas cuidam de tudo para que eles brilhem. Veja bem, esse homem workaholic vara as madrugadas trabalhando mas não lava um banheiro. Porque a esposa vai lavar ou vai dar ordens para que o banheiro seja lavado, para que o almoço seja servido na hora certa, vai tirar as crianças da frente para que esse homem possa produzir em paz. Quem segura as pontas para a mulher produzir? Outras mulheres, em geral. Então essa sempre foi uma questão muito cara para mim: estar num relacionamento o mais igualitário possível. Para escrever preciso de tempo, preciso esquecer muitas vezes a casa, a hora do almoço, simplesmente porque isso não é minha prioridade. Escrever é. E sei o quanto isso é um luxo para uma mulher. Quantas escritoras, artistas, profissionais incríveis a gente teria se as mulheres tivessem mais espaço e tempo para criar? A gente nem precisa olhar longe, basta pensar nas mulheres de nossa família. Era isso o que eu queria ter ouvido: “você vai deixar gente pelo caminho. Deixe o que tiver de deixar”. Eu deixei, claro, mas nem sempre foi fácil. Hoje, felizmente, me relaciono com alguém que também vive a arte, que respira arte, que pensa arte. E que sabe que uma pia de prato sujo de um dia pro outro não mata ninguém, e que é tanto responsabilidade minha quanto dele. É fácil chegar a isso? É um mar de rosas? Não, é apenas um homem disposto a se repensar. A admitir seus privilégios, a abrir mão deles, porque minha arte e meu trabalho precisam ter o mesmo valor que os dele, e isso começa em casa.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Essa primeira é a pergunta do milhão. O estilo próprio é uma construção diária, eu acho. Demora tempo para a gente achar nossa própria voz, e mais ainda: pra acreditar nela. Muitas vezes eu termino de escrever um texto e penso: “não é essa a voz que eu quero”. E vou correndo atrás dela, dessa voz que eu nem sei bem como explicar, que mora em minha cabeça e que é um jeito específico de escrever. É uma busca que nunca acaba, parece. É nisso que eu penso quando ouço falar em estilo próprio, em alguma coisa que traga sua voz pro texto. A dificuldade de encontrar essa voz, esse lugar específico, é porque escrever – ou criar – é uma jornada de identidade. A gente vai se conhecendo, se entendendo, se procurando, se encontrando, se perdendo. É o caminho mais que o resultado final – que nem existe, aliás. Achar meu estilo é isso, e ainda tenho aí uma lua em gêmeos que sabe que tudo está aí pra mudar também, pra ser reescrito, ser reinventado. Todo dia é um novo. Como é que a gente pode escrever sempre igual? Eu não sei. Por isso também é que minhas influências foram mudando muito com o tempo. Adélia Prado sempre me influenciou muito, e eu amo também uma poeta que canta e desenha que é Joni Mitchell. As duas me entregam coisas que me tocam, me representam: Adélia brinca de sagrado e profano; Joni busca profundidades cotidianas. E Hilda Hilst, que em cada fase de sua escrita me traz uma coisa diferente: a busca pela identidade em Tadeu, o amor derramado em Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. Tanta gente. Gosto também demais de Martha Batalha, a coragem de Cidinha da Silva, ih, é muita gente, muita mulher. O jeito de escrever de minha avó. Todo mundo me entrega algo que eu quero levar comigo. Cada hora é uma, tudo bem com isso.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
“Os verbos auxiliares do coração”, de Péter Esterházy, e “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino. Sempre recomendo esses dois, sempre me derramo de amor falando deles porque são mesmo dois livros fantásticos. O primeiro porque a gente precisa das palavras das outras pessoas às vezes para viver – é muito sobre isso o livro de Esterházy -, o segundo porque o olhar muda tudo o que se apresenta. Acredito muito nessas duas coisas, e acho que ninguém nunca terminou um livro como Calvino, que diz algo como o segredo das coisas consiste em achar o que não é inferno dentro do inferno e abrir espaço. Se isso aí não resumir como a vida da gente deve ser eu não sei é de nada.