Maria Virginia Filomena Cremasco é psicanalista, professora de Psicologia da Universidade Federal do Paraná.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há alguns anos todos os dias acordo, antes do relógio tocar, com uma música tocando em minha cabeça. A primeira coisa que faço é ouvi-la, enquanto preparo meu café. Quase sempre me surpreendo como essa música, pois ela é capaz de me dizer sobre como estou internamente, muito mais do que conscientemente sou capaz de me perceber naquele momento. A música e o café são rotinas que me despertam interna e externamente para o início do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã, após a música e o café, com certeza tenho mais energia e me sinto mais desperta nas ideias para escrita. Sempre pela manhã, quando posso escrever nesse horário, tenho um rendimento maior. Mas, com o trabalho na Universidade e sua voracidade temporal de produção e presença, quase sempre me resta à noite, já em casa, para escrever.
Só começo a escrever após algo da rotina do dia silenciar em mim, após as urgências cessarem ou eu conseguir deixá-las em suspensão. Se isso não acontecer, a escrita não avança. Ao escrever, é como se eu entrasse em uma espécie de bolha, é muito mais um estado interno como condição de produção, do que o que acontece externamente. Sou capaz de escrever em ambientes com muito barulho e agitação, sem ser afetada com isso. A questão é eu estar internamente concentrada, focada no texto e então a bolha se fecha e as palavras fluem. Já aconteceu de pessoas me chamarem nesses momentos e eu não ouvir ou não perceber o que acontece ao redor.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias sobre meus sonhos, especie de diário. Quanto à produção acadêmica, escrevo por demanda, conforme os prazos urgem. Não gosto de entregar textos em cima da hora ou apressados, embora às vezes isso seja necessário. Não gosto de apressar as palavras porque sei que ao retornar a elas para revê-las, sempre algo se modifica, eu já sou outra leitora nesse momento. Afastada um pouco da primeira versão, parece que tenho mais clareza sobre o texto e posso modificá-lo de forma mais lúcida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que tenho muitos processos de escrita e depende do tema pelo qual sou incitada a escrever. Depende também daquela capacidade de me concentrar na bolha de produção. Quando as coisas se confluem em desejo e concentração, a escrita atropela a escritora em mim, o começo é instantâneo e espontâneo. Geralmente uma frase que surge e vai se desmembrando em argumentações que nunca sei exatamente onde desembocarão. As citações, técnicas de escrita, pesquisas… tudo acontece durante mas também depois, na revisão, naquela segunda leitura com certo afastamento. Costumo dizer aos meus alunos que o texto tem vida própria, toma rumos e digressões que nem sempre planejamos e nunca termina: o texto para porque tem seu limite. A paragem é o número de páginas que temos que cumprir ou mesmo o prazo. Mas um texto nunca está completo, nunca finalizado como nosso desejo o quereria. Escrever é se haver com isso de nunca terminarmos de dizer, de sempre acharmos que algo mais poderia ser dito… é um exercício de castração, de lidar com nossos ideais, de modulá-los.
Outro processo de escrita é quando sou convidada a escrever, com prazo curto, e não necessariamente consigo entrar na bolha de produção que me favorece a fluidez. Nesses momentos sou mais técnica, compilo material anteriormente, faço minhas pesquisas, reservo tempo na agenda e o texto normalmente sai metodologicamente mais didático. Na segunda leitura, se houver tempo, consigo dar um pouco mais de subjetividade e fluidez.
Gosto de ambos os processos, mas o primeiro é uma acontecência sem fim que tenho que parar em mim para que o texto seja entregue e no segundo processo, sempre termina mais facilmente pois responde mais ao método de escrita e sua formatação.
Quanto à pesquisa, ela faz parte de tudo o que realizo na academia, assim como a extensão. São indissociáveis, construídas na dialogicidade de meu ensino também. Temos uma grande quantidade de leituras ao longo de nossa formação como docentes e pesquisadores, problemas de pesquisa e hipóteses nos surgem a cada instante e conversa, são “os barulhos dos corredores” que nos inspiram, como falam os franceses.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Após o doutorado e lá se vão quase 20 anos, tive poucos problemas de travas com escrita e nunca fui uma procrastinadora, embora às vezes o deseje pois em fantasia isso me daria mais tempo para gestar a escrita. Quando terminei o último capítulo da tese e entreguei ao meu orientador, na hora me lembro de ligar pra ele e lhe dizer que estava com muita vergonha: a sensação era de que eu tinha me desvelado toda naquele texto, que depois seria meu primeiro livro. Todos saberiam coisas de mim que não tinha certeza se as queria revelar. Lembro-me de ele rir e me acalmar, como sempre fazia. Era assim mesmo, me disse.
Depois da defesa e do primeiro livro me acalmei quanto ao que revelamos de nós ao escrever, quanto ao que os outros vão entender do que eu achamos que quisemos dizer… acho também que fiquei mais complacente com meus ideais sobre como quero ser vista ou mesmo avaliada, fiquei também menos nervosa com as situações de exposição embora nunca me sinta totalmente confortável nesse lugar e prefira a introversão que é onde me abasteço.
Gosto de projetos longos, que me façam refletir por longo tempo mas me dá certo medo pensar em ter que escrevê-los ao final, pois sei que as mudanças teóricas em mim são muito dinâmicas e contecem em fases e quando retorno aos textos mais antigos, por exemplo, muitas vezes nem me reconheço, apesar de poder, algumas vezes, apreciá-los. Projetos longos de escrita requerem uma estabilidade de crenças que talvez me falte, mas também sei que essa dinamicidade, ao ser incorporada ao texto, o que dá grande trabalho de coerência, pode enriquecê-lo ainda mais, haja vista a obra de Freud ou Lacan, por exemplo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos pelo menos duas vezes após estar finalizado (ou parado, como disse antes). Sempre modifico coisas nessas revisões. Raramente consigo repassar meus escritos para outras pessoas, embora desejasse muito isso, pois é muito rico antes da entrega, quando alguém dialoga com o que produzimos. Fiz isso no doutorado, claro, com mais de um interlocutor e foi muito rico. Às vezes, em palestras com amigos, conseguimos antes trocar os escritos; mas, cada vez mais, eu e meus amigos interlocutores, mal temos tempo de rever nossos próprios textos. Essa temporalidade vertiginosa da produção acaba por nos tornar isolados, solitários e, a meu ver, menos ricos qanto à dialogicidade de nossas produções.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje, sempre escrevo textos no computador. Faço anotações a mão ao longo do dia sobre o que me chama a atenção em algo, sobre uma autoria que surge interessante ou mesmo frases que despontam. Mas, os textos, sempre no computador e não faço rascunhos, inicio os textos a partir da frase germinal.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de tudo o que vivo, sobretudo, de tudo o que aprendi do que vivi. Intensidade é algo que sempre esteve muito presente em minha vida, tê-la interessante também. A partir da intensidade do que se fez e se faz interessante para mim, construo minha bibliografia interna e externa. Tudo o que leio conflui para isso que internamente se articula às minhas vivências e por fim, a uma cadeia cada vez mais complexa sobre meus questionamentos sobre viver e morrer. Minha criatividade vem dessa insistência em ter uma vida interessante: que interesse a mim, vivê-la.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que eu mudei ao longo dos anos… e minha escrita também. Fazer análise nos transforma e transforma a forma como nos expressamos no mundo, como nos articulamos com a linguagem e sua polissemia. Isso, com certeza, tem incidência em nossa produção. Para mim teve. Trabalhar mais de perto com políticas públicas também me humanizou de uma forma que só a teoria psicanalítica não me permitiria, pela minha história de vida ter me colocado em um lugar de privilégio social no qual conseguir entender a necessidade dos mais vulneráveis não necessariamente era acolhê-los. Gosto de alguns primeiros textos que escrevi, mas diria a mim mesma para se arriscar mais como autora e apostar em suas vivências.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de ter mais tempo… tempo para ler mais poesias e literatura, além das leituras mais técnicas que sempre me dedico pois tenho grande paixão pela leitura, pelas palavras e gostaria muito de ter mais tempo para me dedicar a isso. Apesar de meus projetos serem todos de intervenção social (luto e prevenção do suicidio; drogadição; psicopatologia e saúde mental), gostaria de poder me dedicar mais a um grande projeto transdisciplinar de mudança significativa em políticas públicas para o Brasil, para uma real mudança dessa nossa realidade tão desigual para seu povo. Essa é minha utopia como desejo de criação.