Maria Olivia Aporia é artista e pesquisadora, autora do projeto “Meia noite em Vênus ou Delicados objetos de tortura”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sem rodeios, infelizmente, começo meu dia quase sempre atrasada, fumo um cigarro e dou uma olhada rápida nas notícias do dia pelo Twitter — o que normalmente é o motivo pelo qual preciso fumar um segundo cigarro. Sou zero de rotina, só aquela coisa de planejar o almoço do dia seguinte — saber se descongelo o frango ou deixo o feijão de molho com antecedência — já me angustia, então logo depois de efetivamente acordar num dia saio pra correr, no outro de repente faço panquecas ou vou ao supermercado, em outro tomo banho gelado, danço, acompanho a contragosto uma yoga online, ouço podcast enquanto passo um café ou ligo logo a televisão pra avacalhar na distopia junto de um ovo frito. De verdade, não tenho rotina matinal ou vespertina — a única que se garante é a rotina noturna e que nada tem a ver com a higiene do sono. Ainda tenho um tempo, uma lambuja pela idade e decidi aproveitar sem culpa até que meu metabolismo permita — por enquanto ainda me organizo de acordo com os prazos e não com a rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Digo que tenho insônia desde criança, mas a realidade é que não tenho problema nenhum para dormir, sou só notívaga mesmo. Durante a parte da manhã e tarde acabo trabalhando nas frentes que envolvem mais pessoas e projetos coletivos, trabalhos formais e burocráticos — que os clientes não me ouçam mas eles ficam com a parte mais fraca da minha disposição e produtividade e esse é um combinado que fiz comigo mesma, depois de passar um bom tempo absorvida pela rotina de trabalho de 10hrs por dia e ver que não sobrava nada sobre mim para mim. Então, quando cai o sol, lá pelas 18hrs que é em torno do mesmo horário em que começo a sentir vontade de falar, pensar e sinto prazer com o aumento da velocidade das sinapses, busco deixar disponível para mim — aos meus projetos e processos pessoais, autorais e que correm em paralelo.
A partir desse momento, me torno mesmo uma matraca — e a piada interna me aproxima do fato de que desde criança ficava intrigada com “as torneirinhas de asneiras” da Emília tais quais encontrei em Pipi Meialonga anos depois — cheia de disposição e ideias fervilhantes, então é normalmente nessa hora em que escrevo de fato — que compilo, bordo ou gorfo meus escritos. O ritual que antecede isso, me parece o mesmo da receita em “O romance luminoso” (2005) do Mário Levrero: esperar todos da casa dormirem (mesmo que eu more sozinha), sentir o silêncio que se instala, apagar as luzes e, novamente, acender um cigarro.
Apesar disso, do apreço pelo sossego na hora de escrever, não escrevo muito em silêncio não — preciso sempre de uma série rodando na segunda tela, um podcast com gente falando sem que eu preste a mínima atenção ou músicas — e aí são das mais variadas: para textos acadêmicos ouço música eletrônica de qualidade duvidosa, sertanejo e funk (playlists que uso em festas pra dançar me envolvem também no trabalho intelectual e conceitual maçante que a produção acadêmica exige), para textos mais jornalísticos ou análises críticas gosto de rap ou televisão ligada em canal qualquer e para as crônicas a MPB e só para a poesia, o silêncio (externo).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho nenhum tipo de meta ou acordo comigo mesma sobre a escrita, esse processo é bastante natural e fluido pra mim. Acredito que como me expresso e elaboro questões através de linguagens variadas (texto, colagem, pintura, vídeo, fotografia, bordado, etc), a escrita apresenta-se como mais uma dessas ferramentas — tem coisas que precisam ser ditas, descritas, outras que sinto que devem ser tocadas, outras vistas, assistidas e tantas outras escutadas… Nunca sou eu que decido, é a ideia pede e a mim cabe obedecer e criar um suporte. Mas sempre tive as palavras como amigas e amigos, que por sua vez, também tinham palavras como suas amigas — então, não por acaso, tenho maior carinho pela escrita e é através dela que qualquer ideia ou projeto se inicia; por exemplo o vídeo que antes de ser montagem, é texto.
Minha busca é mesmo nesse sentido, me lembro que foi através das esculturas e pinturas da Leonora Carrington que conheci sua produção literária em “La Dame Ovale” (1939) e me atentei a necessidade de passar a registrar meus sonhos por escrito, que depois viraram poemas, que depois se tornaram roteiros para vídeo-animações… e todas essas etapas me parecem valiosas enquanto unidades em sí, obras interdependentes da minha trajetória enquanto propositora cultural.
Compreendo o campo das artes enquanto ciência (a articulação de diferentes áreas de conhecimento para a produção de saber e imaginário que se efetive em sociedade) e, assim, para o processo de concepção (literal) de uma ideia serve a metáfora de uma gestação — engravida-se de si entre outras coisas. A alimentação muda, os órgãos agem de outra maneira, os hormônios se alteram e, enfim, em algum momento, previsível mas não controlado — sempre surpreendente embora aguardado — de temperatura e pressão exatas, entra-se em trabalho de parto. O fim (que é o próprio começo), o parto, é uma jornada constante… jamais ininterrupta.
Dessa maneira, comigo, dificilmente um texto é escrito em mais de um dia ou em mais de uma “sentada” — rola direto, de uma vez. Mas isso acontece porque são dias contendo um desejo e as ideias atravessando na mente, quando está no limite da impulsividade: vou. O problema bem vindo, é quando esses rompantes começam a acontecer mais de uma vez na semana. Bagunça tudo e eu adoro!
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uso o bloco de notas do celular para tudo — já tentei andar com caderninho debaixo do braço, pra lá e pra cá, mas não dá certo comigo, perco e me frustro. Então, no celular, anoto meio sonâmbula desde os meus sonhos, lista de supermercado, promessas pretéritamente falhas de ano novo, palavras novas que ouço e não conheço, observações extras sobre alguma leitura, links, imagens e ideias soltas, muitas ideias soltas. Quando existe alguma publicação encomendada e sem briefing, pesquiso minhas próprias notas e aí começo a formar e procurar a saída desse labirinto de ideias e anotações desprendidas.
Entre o tempo de decisivamente sentar para escrever e elaborar a ideia, correm alguns dias mastigando, ruminando feito vaca, com anteninhas atentas para observar e deixar que permeiem e atravessem as elaborações, assim quase como numa transe de atenção ao redor — nessa hora tudo é fermento. Mas o começo literal de um texto é sempre uma charada pra mim, acho difícil começar pelo começo. Escrevo do meio, as vezes do fim, mas nunca do começo. Às vezes formo frases de trás pra frente mesmo — quase como quem sabe onde quer chegar mas está sempre em busca de onde veio — e isso diz bastante respeito ao meu trabalho enquanto percurso poético e autobiográfico.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Hoje em dia estabeleço uma relação mais espontânea e desprendida com minhas próprias produções — percebi que é a maneira como posso jogar com as inseguranças e a ansiedade. Por muito tempo, o que ia para a gaveta (ou a pasta arquivo do computador — praticamente uma lápide digital) ficava ali esquecido, perdido, como uma promessa jamais entregue de um passado que não se realizou por um triz.
Então, nesse sentido, pode parecer bizarro mas o imediatismo das redes sociais me ajudaram, e ajudam, muito. No mesmo instante em que redijo um texto, publico no meu perfil — sem revisar, sem pensar duas vezes, aquele impulso súbito em detrimento da necessidade de expurgar e até por isso me refiro a alguns escritos como “gorfos” — e isso também diz respeito a essa dinâmica que acabei criando, rola uma adrenalina de ver todos os outros sentidos que a ideia pode tomar a partir da leitura do outro. O que essa frase aqui vai se tornar? Não sei…
Foi uma maneira de sacanear e burlar minhas expectativas, “o que será daquele texto?” é uma curiosidade para mim também, porque ele (o texto) é o que acontece dele no outro e não do outro para mim — em relação a ele. No momento em que publico algo, aquela obra deixa de ser inteiramente minha, ela acontece incontrolavelmente em uma ou cem pessoas — tanto faz, mas acontece.
Coisa que tem bastante a ver com um dos debates que mais me valem na arte no que diz respeito a ideia da propriedade intelectual. Uma entrevista veiculada pelo portal Volume Morto que chama: “Artistas do mundo todo, desistam!” do [conjunto vazio] um coletivo de Minas Gerais que teve sua última ação em 2016 é um manifesto a que sempre recorro para recuperar o fôlego. Não vai dar pra me alongar sobre isso aqui né? Mas deixo a indicação de leitura da entrevista e aproveito pra frisar que compactuo com as políticas creative commons, com a distribuição de revistas gratuitas, com tráfico de PDFS e afins.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O que formou meu encantamento com as palavras e apreço pela escrita com certeza vem da infância, minha mãe quatro meses de gravidez teve uma complicação e desde então — até meus dois, três aninhos — redigiu um diário da gravidez e dos meus primeiros anos de vida — então cresci decifrando e lendo, aos o pouquinhos esses relatos que se embaralham entre o que ela desabafa consigo, o que selecionava pra me contar, o que escrevia sobre ela e sobre mim — tão apressada para chegar aqui. Lembro também das cartinhas, da fada do dente, de aniversário, de natal, da letra grande da minha avó, da letra bastão redonda da minha tia e do meu avô que religiosamente às 16hrs se retirava para o quarto para registrar, como diário, o que tinha acontecido no dia na agenda e, depois, mais tarde compartilhava em leitura conosco no jantar. Então, pra mim, a escrita sempre aconteceu no encontro com o outro — quase que como uma parte de nós e uma parte do outro que são oferecidas e descobertas simultaneamente e só aí, e assim, que se dá um texto, uma poesia, um conto, uma análise a que se propõe reflexão… A escrita sempre foi em detrimento do momento com o outro, através do outro, para o outro que se reencontra, também, em mim (?).
Penso que talvez por isso, na maioria dos títulos de minhas produções eu faça a escolha de dois títulos sempre presentes através do “ou”, como em “Facas, frutas y flores ou Delicados objetos de tortura”, “Meia noite em Vênus ou Em minha defesa a Lua está cheia” e outros. Prezo para que o leitor se coloque em dúvida e escolha desde o início — acredito que isso dê o tom de minhas proposições escritas, algo como “olha, aqui as possibilidades são muitas, então pega o que você quiser e faz como sentir!”. Gosto muito quando comentam, mandam textos e reflexões, enviam e-mails e trazem mais referências — me indicam livros, enviam fotografias que lembraram passagens e afins porque posso ver como uma produção reverbera e se transforma através y além. Não escrevo coisas para que elas terminem em si — isso seria o meu fim também.
Então não, não costumo revisar ou mostrar meus trabalhos antes de publicá-los — isso acontece “ao vivo”, durante o compartilhar — volta e meia faço correções já em meio a essa troca, outras vezes se abrem reflexões e íntegro ao texto os comentários e observações de alguém e daí passam a existir diversas versões de um mesmo texto e me relaciono com eles assim mesmo, nunca estão prontos — volta e meia passados meses, volto e adiciono uma observação, encaixo mais um verso que me aconteceu… e vão se tornando, cada um em si, um registro, um diário único e permanentemente em aberto. Porque, como disse, o que me encanta é o lance de que, no fim das contas, o texto existe em nós, não no papel ou na tela.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Lembro de escrever coisinhas desde muito cedo, recém alfabetizada mesmo, e guardo até hoje os papeizinhos e cartinhas que escrevia — eram todos tristes, contando que chorei, pedindo desculpas… o que me faz pensar que as palavras sempre foram meu espaço para a melancolia ou algum tipo de conversa direta com Deus — e, como manda o roteiro romântico, manuscritas. Por ora, os “gorfos” também não deixam de ser minhas rezas furiosas.
Até pouco tempo atrás investia pesado em cadernos bonitos, papel pólen sem pauta e boas costuras, mas sempre rolou uma idealização romântica do caderno/diário/livro do artista, sabe? Cresci idolatrando materialmente esses escritores, e seus cadernos de registro de campo, entre desenhos e garatujas nas quais até a rasura fica bonita e cheia de personalidade… como a história em On the Road. Mas entre a angústia que se interpela no livro de Jack Kerouac a respeito do narrador que se limita a observar e não diretamente ser personagem em cena da própria história.
Mas um dia, tomada pela ira — a ponto de reconhecer que tamanha brutalidade estragaria a metódica expectativa que buscava realizar nas folhas e tintas de caneta em cadernos imaginários e perfeitos, fui ao computador confinando que o plástico do teclado fosse mais resistente do que as folhas de textura gentil, e aí parece que saiu mais rápido, sem tanta racionalidade e autocrítica no processo (tinha menos estética e superego em jogo diante de uma “folha” virtual; que é em si a própria metáfora da folha e portanto não “existe”). Tem alguma coisa aqui que me permite mais o erro, um conforto acolhedor com e pelo o feio e o malfeito — fico bem mais a vontade.
Desde então, escrevo direto no computador e nas plataformas mais inadequadas para a concepção de texto. Tenho uma conversa comigo no WhatsApp e redijo tudo por ali, meu maior backup esta ali. Teve até uma época que eu quis lançar um projeto “Escrevo longas cartas via WhatsApp” porque o texto vem pra mim desse lugar nebuloso, um acontecimento, e comecei a perceber quantas conversas acabavam virando longas confissões poéticas ou textos argumentativos, então… por que não, né? Então quanto mais “desadequado” o espaço melhor: legenda do Instagram, publicação de Facebook, digitar pelo celular mesmo…
Além disso, o ambiente virtual é bastante confortável para mim — não que eu seja literalmente uma nativa digital, mas — inerente a minha geração, fui bastante autodidata nos processos criativos que envolvem softwares e grande parte da minha produção visual atualmente competem ao ambiente intermídia.
Ainda assim, a materialidade do texto, das coisas e dos afetos ainda me importam, e muito — por isso mesmo meus experimentos poéticos e pesquisas acadêmicas estão sempre relacionados a articulação dos suportes em certa oposição às linguagens adequadas e também através da produção de objetos, bordado, colagem, temas corpóreos e textos bastante descritivos de suas paisagens.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Entendo que a criatividade se manifesta constantemente em tudo e todos os dias. Não só nas linguagens da arte, mas na cozinha, na invenção de receitas, em dedicada faxina que envolve mudar móveis e quadros de lugar, na meditação de tirar poeira folhinha por folhinha das plantas, no jeito que se bola um cigarro… O lance da criatividade, ao meu ver, é como um elemento-fermento fundamental, fertilidade implacável do que em si é a própria vida — e, comigo, o medo da criatividade ir embora junto dos remédios tarja-preta é o único real, uma vez que, como energia-vital, é também e fundamentalmente a libido — todo desejo que move. E é sobre essa transe do feitio-feitiço que escrevo e leio.
Talvez também porque a matéria de meus textos sempre partam da primeira pessoa e de um lugar bastante autobiográfico busco cultivar inspirações que me mantenham motivada e me impulsionem diante do ofício da escrita — entre esses “chamados” que guardo como textos sagrados está “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo” (1980) da Glória Anzaldua, a declaração da bell hooks quando diz que “nenhuma mulher já escreveu demais” e os ensinamentos recebidos em um curso ministrado pela Jordana Braz no circuito Brasil Nativo/Brasil Alienígena da exposição de Anna Bella Geiger. Cedo ou tarde recorro a estes arquivos e anotações a fim de me reconectar e encontrar a coragem diante do comprometimento inegociável que tenho: grito porque tenho garganta e é assim que pretendo continuar constelando as minúcias que me atravessam.
Quando li Madame Bovary — no dilema entre seus preenchimentos e bifurcações — sinto que finalmente consegui romper com um distanciamento que perdurou por toda minha adolescência e me manteve longe dos Blogs e Fotologs (em tempos de Internet discada, um marco de rupturas importantes no mercado editorial) por conta da categorização da escrita, do diário, do registro pessoal como algo de menor valor e característica atribuída as tolices da feminilidade — por isso mesmo, ainda que inevitavelmente minha escrita parta de lugares muito objetivos e materiais da minha condição de corpo-encruzilhada-mulher no mundo — que produzo imagens e articulo signos do escopo feminino de uma forma mais soturna e, talvez, explícita (Gorfos explícitos é o título que nomeia uma série de 18 poesias escritas em 2017).
Sobre corpo, acho que também é de onde indefinidamente vem minhas ideias — não só o corpo no escopo do gênero e sexualidade, e o corpo enquanto estética em tensionamento com o universo ruidoso e malpassado feito carne vermelha que flexiono em minhas produções — mas de acordo com a teoria corpomídia tensionada por Helena Katz, gosto e confio piamente que penso-crio-escrevo tanto com a cabeça quanto com os pés ou a lombar (a mente por toda sua extensão — o que somos enfim).
Comecei inclusive a chamar minha conta no Instagram, por exemplo, de “diário público” na intenção de tencionar um pouco o debate sobre exposição e intimidade em ambiente virtual e deslocar o registro cotidiano e sensível do lugar pessoal, desinteressante ou complicado demais para que não — embebedada, certamente, pelas reivindicações das artistas feministas das décadas de 60 e 70 quando trazem “o pessoal é político”, a cama, o bordado e os utensílios domésticos para dentro dos museus.
Atualmente, de alguma maneira o preceito do gênero ainda se revela diante da máxima entre o “mimimi” e “textão” da internet e isso me parece um ranço, sem novidade alguma, contra a articulação e voz de mulheres (uma vez que a expressão apareceu simultaneamente a campanhas como #metoo #meuamigosecreto, o auge da quarta onda feminista), mas chamo atenção para a #mulheresqueescrevem que acaba por compilar organicamente uma série de confissões e produções textuais de milhares de mulheres no Instagram — um verdadeiro acervo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sinceramente acho que mudou pouca coisa — e eu gostaria que tivesse mudado mais — volta e meia me pego na bronca de amadurecer minha escrita e abandonar a espontaneidade juvenil que transparece, se essa é a exaustão de ser a mesma há duas décadas ou se é uma busca falha pela própria seriedade sempre posta em cheque pela famigerada “síndrome da impostora”… não sei, porque eu também gosto mesmo é de escrever, falar e fazer muita bobagem também — o culto às banalogias é meu maior cúmplice e eu sou fiel.
Inclusive a matéria prima de grande parte de minha produção artística volta-se ao cotidiano, aos temas corriqueiros e às observações supérfluas. Digo, me interesso muito mais em abrir um debate sobre masculinidade tóxica ilustrada por um estudo de caso de um participante do Big Brother Brasil (como foi o caso de minha última publicação), uma crítica a uma série da Netflix e etc do que tecer tratados sociológicos de teoria que não possam ser assimilados e interpelados pelo que está em voga no debate da esfera pública. Além do mais, no sentido jornalístico (de quando é o caso de análises de produções audiovisuais ou temáticas sócio-políticas) o espaço possível para a veiculação desses textos é propriamente a internet e a demanda temática presume um timing adequado — imediatista embora responsável — do debate público em geral.
Sobre o processo de escrita ao longo dos anos, o que existe para mim são influências importantes e encantamentos que aconteceram (e estão sempre pra acontecer) e marcam cisões em meu processo de escrita, como: a compilação “Maria” da Estela Miazzi, “As teorias selvagens” da Pola Oloixarac, Matilde Campilho, “Elogio ao toque” de Roberta Barros, “Palimpsesto Selvagem” de Beatriz Azevedo, o poema “Considerações sobre a higiene íntima” de Natasha Félix e agora “A História do Gozo e outros Canibalismos” de Layla Loli.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Lembro quando conheci “Me segura que eu vou dar um troço” do Waly Salomão, que foi o que me levou aos escritos babilônicos de Hélio Oiticica em “Livro ou Livro-me” e, depois, “Conglomerado Newyorkaises”. Daí, quando vi já estava mergulhada nas aspirações da Ana Cristina César a respeito do objeto livro-artista autobiográfico, na própria poesia explícita de Hilda Hist e nas crônicas da Lygia Fagundes Telles, na preciosidade que “A mão esquerda de Vênus” transformou os retalhos de foto, desenho, texto e papel de bala de um Moleskine da Fernanda Young em publicação impressa… depois fui conhecer a literatura maldita que o Marcelino Freire brada, a assimilação do processo de Lourenço Mutarelli… e aí já viu né? É o que acontece…
E como tudo isso me encantou a tempo, minha vida acadêmica foi direcionada desde o início pela intenção curiosa da existência de um tipo de publicação impressa que contemplasse a possibilidade da hipermídia. Cursei jornalismo — no meu primeiro ano, saiu a lei que tirava a obrigatoriedade do diploma para exercer a profissão e quando estava no penúltimo ano, o Brasil aconteceu o golpe. Então dá pra imaginar, né? Era um baixo-astral generalizado, ninguém ali nem acreditava mais que os jornais iam continuar a ser impressos diariamente… aí percebi que realmente não seria apresentada as ferramentas necessárias para compreender essa minha curiosidade acerca das possibilidades e rizomas da hipermídia, então fui para o curso de Comunicação e Multimeios na expectativa de compreender mais todo esse lance…
No fim das contas, meu trabalho de conclusão de curso e que se estende a pesquisa da pós-graduação, é uma tentativa protótipa desse suporte transmídia que vislumbro e gostaria de ler y ter condensado. Desenvolvi uma publicação impressa com conteúdo produzido por mais de 30 mulheres brasileiras via chamada-aberta e convergi o objeto impresso com possibilidades transmídia a partir do desenvolvimento de elementos em realidade aumentada. Sei que essa foi uma aspiração perseguida também pelo próprio Hélio (Oiticia — e me interesso em transitar livremente por essas referências, tal qual Fernanda) e me sinto entusiasmada para falhar entretanto persistir nessa empreitada de tantos diante do insuperável objeto-livro — como aceitei diante da leitura “Não contem com o fim do livro” (2009) de Jean-Claude Carrière e o Umberto Eco. E sigo nessa busca!
Além disso tem mais dois livros que eu gostaria de ler, um deles já existe mas não tem mais nenhuma tiragem disponível: “Poemas simples e domésticos” da Elen Juanini — e o outro, de uma escritora e editora que admiro e conspiro, a carioca Carolina Torres — não sei o que ela um dia vai publicar mas a alquimia em carne e unha dela me faz faminta.
No mais, realmente torço e desejo que antes dos trinta eu tenha a oportunidade de publicar, devidamente, um livro. Me parece uma boa aspiração para os próximos horizontes… E se não estamos sob as devidas condições (políticas, taxação de livros, fechamento de diversas editoras independentes, Amazon e privatização dos correios)… é por isso mesmo que me coloco lado a lado dos demais que compreendem que é nesse cenário que tudo se torna além de urgente, imprescindível.