Maria Dolores Sosin Rodriguez é artista negra da Diáspora, professora e pesquisadora, mestra e doutoranda em Literatura e Cultura na UFBA.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Peço agô, levanto da cama e agradeço por estar viva. Depois disso, vejo quais são as obrigações e trabalhos para aquele dia. Demoro pra voltar totalmente pro corpo depois que acordo. Bebo água. Às vezes, esqueço. A rotina é tentar me manter sadia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando a escrita é a escrita com a qual teço meu trabalho acadêmico, não há horário melhor para o trabalho. O horário melhor é aquele que está disponível. Ainda que eu desconfie quase que absolutamente da idealização que faz com que acreditemos que escrita acadêmica e escrita literária possam ser duas coisas totalmente diferentes, quando o meu trabalho é destinado a produção das minhas pesquisas e, mais especificamente agora, a produção da minha tese de doutorado, o movimento é de empenho e dedicação a ler e a escrever tanto quanto for possível em todos os horários em que posso.
Certa feita, assim que fui para Salvador fazer o mestrado, um amigo meu de Feira de Santana – e muitas outras pessoas que estavam habituadas a me enxergarem apenas no “lugar da artista” e não no “lugar da acadêmica” -, fez uma fala provocativa insinuando que a arte seria algo mais importante ou especial que a teoria e as produções acadêmicas. Isso é algo com o que não concordo porque só quem nunca leu determinadas autoras e autores e suas escritas acadêmicas é que desconhece o quanto esse tipo de produção pode nos levar a encontros assombrosos com uma sensibilidade disruptiva, pra citar Caetano Veloso, “capaz de lançar mundos no mundo”. De modo que percebo que as contradições e enfrentamentos que fazemos enquanto população negra na academia, por exemplo, também se chocam com uma ideia tacanha de que produção acadêmica necessariamente será aquela que ocupa uma dimensão menos importante do que uma dada arte. É mais do que bonito, é transformador ouvir e ler a professora Kassandra Muniz e a sua concepção de uma linguagem negra que mandinga, por exemplo. Ou ler as investidas muito produtivas e igualmente deslocadoras de Ana Lúcia de Souza sobre a categoria, ou melhor, sobre o modo de produção e de vida negra que acontece a partir da (re)existência. Isso pra citar duas intelectuais que ouvi e li mais recentemente e com as quais trabalho em sala de aula com as turmas em que ministro Estudos Sobre a Contemporaneidade II e Ação Artística II no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos (UFBA).
Todas as cadeias de produção, sejam elas artísticas ou acadêmicas, sempre desconfiando dessa divisão radical ilusória entre essas duas dimensões, contém em si o mesmo nível de beleza e de podridão. Assim como a poesia, no particular, mas a arte no geral, não é algo que vai exprimir um espectro distanciado da realidade e expressivo apenas de um chamado mundo interior do poeta e do artista, como se pensava em uma certa arte considerada moderna ou nas avaliações mais clássicas sobre poesia feitas por Anatol Rosenfeld e Emil Staiger, as produções acadêmicas também contém em si um dado contingenciamento de uma produção fabular e que, assim como a arte, também pode (e assim tem sido a tendência do mundo branco ocidental e suas instituições) operar a partir de valores burgueses, elitistas, racistas, misóginos e lgbtfóbicos.
Nesse sentido, ainda, a minha preparação pra a escrita é viver, estar atenta e forte, mas também vulnerável, compreendendo a escrita e a linguagem, qualquer que sejam, como dimensões da experiência que não desejam transmitir uma verdade, que vacilam, que balbuciam e que não enxergam sentido numa forma de organização do mundo que leva a cabo uma tendência às certezas, um desejo de domínio e controle de uma voz absoluta que emula um conhecimento que é orientado pelo logo-falo-branco-centrismo. Nesse ponto, arte e ciência se encontram como as bandeiras desse desejo, a arte e a ciência são os álibis desse mundo ocidental, supremacista branco, masculino, fundado no entendimento logocêntrico da razão. Arte e ciência são tidas como os ápices da produção do mundo ocidental branco que desenhou o mundo, restringindo esses saberes-fazeres a algo distanciado das pessoas pobres, não-brancas, não-homens, não-cis, não-hetero. A minha preparação pra escrita, então, longe de um ideal burguês do que é a figura do ou da artista, não contempla o processo criativo como um idílio bucólico. Eu crio dentro do ônibus Lapa LB3, é lá que eu me preparo. Assim como me preparo lavando o banheiro do meu terreiro de candomblé ou fazendo feira, lavando roupa, cozinhando e preparando o café.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo o tempo inteiro com todo o meu corpo. Meu corpo arde em combustão pra que essa energia criadora encontre algum caminho possível. A escrita usando as palavras tem sido a minha companheira desde os nove anos de idade, que é a minha primeira lembrança de produção poética minha no papel. Eu escrevo todos os dias. Nunca passei um dia sequer sem escrever. Não necessariamente escrevo literatura todos os dias. Mas escrevo sempre alguma coisa.
A meta de escrita diária e concentrada só aparece quando é o trabalho acadêmico que exige: prazos, datas limite, publicações, relatórios etc. A burocracia da escrita acadêmica segue a lógica produtivista capitalista, mas mesmo isso não chega a tirar o meu prazer. É algo com o qual precisei negociar comigo mesma desde muito cedo, quando escolhi fazer licenciatura em Letras e ter na escrita uma exigência constante da minha profissão. Tento não tornar a escrita de literatura algo tão burocrático, mas reconheço uma demanda grande de produção que opera em mim de modo incontrolável. Mesmo quando não estou escrevendo, eu estou escrevendo. Não sei em que medida isso é uma intensificação desse processo formativo nosso que leva a gente a pensar que o mundo cognoscível só se formará a partir da leitura e da escrita ou se essa é uma maneira de me relacionar com a escrita que foi elaborada em uma outra dimensão na qual enxergo a escrita como dança, como ato, como ação. E eu danço, eu canto, lanço e respondo charadas pro mundo a partir da escrita… A partir dessa relação outra com a escrita. Escrevo para falar do que não sei, escrevo para aprender. Escrevo pra poder errar e não necessariamente triunfar com a exibição de um saber irrepreensível… Fruto de uma elaboração profunda. Escrevo pra aprender e pra duvidar de mim mesma. Escrevo pra compartilhar desconfianças.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que essa pergunta é mais direcionada à escrita acadêmica talvez. Como já mencionei, eu tenho muitos cadernos e alguns deles são dedicados apenas à pesquisa. Acredito que mesmo no trabalho científico, a escrita ganha um fluxo que obedece a algo que não é necessariamente rastreável dentro do espectro de uma razão, de uma lógica elaborada pelo Ocidente como sendo o caminho da produção intelectual e, segundo eles, digna de mérito, objetiva e científica. Escrevo para pensar. Não entendo a escrita como a elaboração última de algo. E esse processo é o que move a pesquisa também. É uma retroalimentação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essas travas não me travam. Me conecto com a vontade mais genuína de criação que tenho comigo desde muito cedo e venço as distrações escrevendo. Acredito com desconfiança nas narrativas dos signos, mas sou virginiana e não deixo de cumprir prazos ou compromissos. E sou faminta. Muita fome. E fome de deixar que o processo se dê em outro lugar às vezes. Procrastinar não é estar improdutiva. Procrastinar faz parte do processo. Procrastinar é poder parar e dar espaço pro sentimento-pensamento. Trabalhos longos começam com uma única palavra. Uma frase após a outra. Não tem ansiedade porque o percurso, o caminho é interessante e a ele também me entrego.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Já trabalhei com revisão textual. E isso aguça o olhar, ainda que seja o olhar pra minha própria escrita. Algumas pessoas dizem que não, que ficam imunes às correções quando estão diante do seu próprio texto. Com certeza, deixamos passar alguns cacoetes, manias e persistência em algumas formas da escrita, repetições e etc. Mostrar o que eu escrevo tem se constituído enquanto um processo interessante e mais recente meu. É impressionante o quanto que a gente aprende quando deixamos que alguém se aproxime de nós.
O modelo de produção capitalista que configura o espaço acadêmico, além de criar uma competição suicida, deposita sobre essa invenção branca do “sujeito” a expectativa de que ele obedeça aos padrões que lhes são estabelecidos. Isso inclui o individualismo completo e a falsa crença na figura do “gênio criador” individual e sozinho. Tenho tentado investir em escritas à quatro ou seis mãos. É também sempre interessante. Abrir mão da posse de uma produção que, eles dizem, significaria todo o valor sobre quem eu sou e o que eu tenho e posso. É bonito olhar para as assinaturas coletivas de produções literárias de etnias indígenas e coletivos anônimos, como o Comitê Invisível e os pixadores nas ruas de Salvador que são totalmente individualizados por aquela assinatura, não sabemos, mas pode e acaba representando também uma coletividade. Em “Samba, o Dono do Corpo”, Muniz Sodré descreve como que compositores negros de samba tinham também uma outra relação com esse lugar da autoria.
Autor, autoridade e autoria – signos de produções ocidentais centrados na ficção etnocêntrica europeia, na ficção do eu e de uma verdade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevi muito à mão. Tive diário por muitos anos. Depois, caderninhos e agendas que me serviam apenas pra anotar ideias, poemas, início de contos e coisas do gênero. Ainda hoje, tenho muitos cadernos, mas a minha produção tem se concretizado no computador e no celular. Na escrita acadêmica, também tem espaço pra escrita à mão. Depois, tudo vira arquivo no Word, porque acaba sendo uma exigência: “computadores fazem arte” – Chico Science e Walter Benjamin.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias vêm de todo o lugar. Mas tenho investido muito tempo e energia na compreensão de como essa identidade de mulher negra se constitui e como ela entra em mediação ou não na construção da minha subjetividade… que vai se produzindo e é produto de tantas coisas. A raça é condicionante, num primeiro momento, sem a minha autorização. Mas como diz a poeta Victoria Santa Cruz: “gritaram-me negra”. E se negra sou, como sou? Esse investimento tem sido teórico, é essa a minha pesquisa de doutorado. Esse desejo de entendimento existencialista, existencialismo feminino negro talvez, como ouvi na minha banca de qualificação.
Minhas ideias vêm da experiência negra, da cultura negra e da arte negra: coisas que estão em comunicação e, muitas vezes, aparecem de forma indistinguível.
E isso tem se alongado para as minhas produções poéticas. Se homens brancos nos disseram como a poesia tem que ser, é hora de perguntarmos se é essa a poesia com a qual falamos e nos comunicamos. Como disse Audre Lorde, a poesia não é um luxo. A poesia não é um delírio para deleite branco e burguês. É forma de possibilidade de existência pra mulheres negras.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não me diria nada se eu pudesse voltar. Apenas que continuasse… Como continuei. Escrevendo. Escrevendo e criando, apesar de tudo. E por tudo.
Meu processo se tornou menos desejoso de exprimir aquela verdade e aquela lógica ocidental e repetitiva de uma dada escrita como sinônimo de uma dada verdade porque a escrita seria a elaboração racional ou a produção máxima de um dado saber.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Talvez, tentar deslocar ainda mais a minha escrita e fazê-la tão grande quanto o canto das marisqueiras do Recôncavo, os poemas dos poetas que não sabem ler e todas as outras formas de produção de artes negras que sequer são vistas como produções artísticas porque foram eles que decidiram o que era arte, o que era poesia e o que era escrita.
Ao mesmo tempo em que acredito que essas artistas e esses artistas não precisem do aval branco para determinar o valor e a legitimidade de tais saberes e produções, acredito que o livro também pode ser uma outra coisa… Que funcione fora das caixas do mercado e das lógicas de produção e compartilhamento dessas produções. Gostaria de ler os livros de todas as poetas e de todos os poetas de buzu de Salvador. Um livro com todas as composições do Ilê Aiyê. Mas também os de Kota Gandaleci (Eli Laíse de Deus) e os livros de todas as mulheres negras que não escrevem porque acham que não sabem ou que escrevem, mas não acham que são poetas e que podem publicar.