Marcus Vinicius é professor, poeta e letrista, autor de “O cacto não cresceu” (Moinhos) e “Ontem estive cálido” (Urutau).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo por volta das 8h ou 9h dependendo da insônia na madrugada anterior. Um café quente ajuda a enfrentar o que tiver de ser enfrentado ao longo do dia. Costumo ver o noticiário para saber qual é a tragédia do momento e como o governo pretende nos ferrar pelos próximos anos e, claro, sem deixar de perceber como os jornalistas nos tranquilizam sobre como ser ferrado pode ser uma boa, afinal. Ultimamente, depois do café e dos noticiários, tenho frequentado uma das bibliotecas da universidade para fazer leituras ou trabalhos relacionados ao doutorado. Mas antes de começar os estudos acadêmicos retomo a leitura de algum livro de prosa ou poesia que fez companhia durante a insônia. O livro da vez é O verão sem homens, da Siri Hustvedt.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O final da noite e a madrugada são meus horários preferidos. A cidade já diminuiu sua voz, os vizinhos já cansaram de gritar, as coisas se acomodam de uma certa maneira que, para mim, torna mais propícia a escrita que interroga o silêncio. Não acho que seja um ritual, mas quase sempre gosto de ouvir algo enquanto escrevo. A música tem um papel de condução e acho que ela constrói um tipo de cenário, atmosfera. Já escrevi bastante ouvindo os discos de Akira Kosemura, Wim Mertens, Elomar etc. Entretanto, isto não é uma regra ou obrigação, pelo contrário, escrevo sempre que dá na telha, sempre que percebo o primeiro verso surgir. Já escrevi parado no semáforo, andando pelas calçadas, no teatro durante um show, enquanto tomo banho (faço questão de ficar memorizando e repetindo mentalmente os versos que surgem). Em uma ocasião que viajava sozinho de uma cidade à outra, tive que parar o carro no acostamento para fazer uma anotação. Esse rascunho de acostamento virou um poema do meu primeiro livro. Quando estou muito envolvido com algum material não importa a hora ou o lugar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo praticamente todos os dias. O que é um tipo de concentração. Estou sempre pensando no que pode virar poesia, como se meu trabalho fosse investigar tudo o que me ocorre e meu olhar destaca. Mas há épocas em que me obrigo a não escrever, deixar que os olhos descansem dessa tarefa de invenção poética. E não vejo essa periodicidade da escrita como meta. É mais uma forma necessária de me colocar no mundo. É uma reação do corpo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo por impulsão e aplicação. Quando surge aquela imagem ou ideia acho importante ver até onde vai. Pode se tornar algo ou ser pura bobagem. Gosto da impulsão porque é quase uma dança entre quem escreve e o que se escreve, ficamos mesmo sem saber quem conduz ou é conduzido. Então, esvazio até onde posso esse núcleo impulsivo e depois faço modificações, enxugo, amplio, momento em que aparece o trabalho, digamos, “artesanal” do poeta. Pequenos núcleos podem se tornar poemas de muitos versos. Grandes núcleos podem não passar de uma estrofe. Por aplicação quero dizer de quando sentamos na frente do computador, a página do Word em branco, e não sabemos por onde começar. Este processo é bem mais desafiador: encontrar a primeira palavra, construir o primeiro verso. Nessa hora, vale a insistência, a atenção sobre o que se passa ao seu redor, porque tudo pode ser a fagulha que esperamos para o grande incêndio.
Faço uso da pesquisa de diferentes maneiras. Posso pesquisar durante o processo de escrita, o que é mais comum, quando acho necessário trazer para o poema uma informação crucial. Mas agora estou trabalhando em um material cujas pesquisas antecederam os primeiros poemas do livro. Precisei ler alguns livros para compreender certas expressões sentimentais, o peso dos traumas, a experiência da dor, a fuga, o deslocamento, o pensamento filosófico sobre isso ou aquilo. Neste caso, as pesquisas não somente foram o princípio como também continuam a acompanhar a construção dos poemas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O sentimento de não poder ou querer continuar um trabalho é mais comum na minha atividade acadêmica. Não há muita escolha quando isso acontece: ou se abandona indefinidamente o que está fazendo ou se dobra o volume de cafeína no corpo e fecha o trabalho. Durante a escrita de meus dois livros de poesia experimentei esta ansiedade e preocupação com o que eu escrevia. Lia e relia meus trabalhos constantemente para saber se era aquilo mesmo. Aos poucos, porém, entendi que sempre meu trabalho não agradará a alguém, talvez até a maioria, e que o importante é a honestidade com sua própria escrita. Se gosto do que escrevo, divido e compartilho com amigos e desconhecidos. Se não gosto, bem, a tecla deleteestá bem ali. Hoje eu trabalho em três ou quatro materiais diferentes, construo-os aos poucos, dedicando-me mais a cada um em momentos diferentes. Não tenho pressa em publicá-los ainda que me dedique a eles constantemente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é inacabável. Especialmente quando não escrevo nada novo. Então volto para os poemas que estão inconclusos ou que ainda não possuem a forma desejada. E mesmo quando aparentemente estão prontos há sempre uma desconfiança sobre se não seria melhor isto ou aquilo. Semelhante a um móvel de casa quando não encontramos o melhor lugar para o acomodar. E depois que encontramos nada garante que o deixaremos ali para sempre. A primeira pessoa a ler meus poemas é a minha esposa. Ela é minha primeira leitora. Especialmente quando um livro está terminado. Sua opinião é a primeira crítica. Eventualmente, envio para algum amigo poeta ou meu editor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho usado bastante o bloco de notas do meu celular. É uma ferramenta que não desprezo de forma alguma. Além disso, tenho três cadernos de bolso que às vezes utilizo para anotar ideias ou escrever sob o fluxo do instante. Aliás, boa parte dos meus últimos rascunhos tenho publicado em minha página de instagram. Mas é no computador que trabalho com mais assiduidade. Gosto da tela maior e do teclado espaçado, permitindo dar conta do atropelo de palavras e imagens que surgem rapidamente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Aprendi a criar histórias para as pequenas coisas que observo no dia a dia. Gosto de imaginar a vida de um objeto, de uma roupa, de uma mesa de café, de pessoas estranhas, de uma fotografia. Tento imaginar um passado e um presente para tudo que retenho atenção. A imaginação ainda é o meu maior hábito. Pensar nas possibilidades do que pode ter acontecido, do que pode ocorrer, tudo que representa uma intervenção na vida, por isso acho que a literatura é um escritório vinte e quatro horas aberto para esse tipo de trabalho. E, sem dúvidas, a leitura literária é fundamental. Só comecei a escrever por conta de um livro do Sidney Wanderley, poeta alagoano que tenho como mestre, embora não tenha jamais o conhecido. Se não fosse a leitura do seu Na pele do lago ainda não teria entendido o que se passava dentro de mim e que só poderia se expressar através da poesia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho uma maior clareza de como escrevo, o que me move ou me desagrada. Aprendi a escrever em formas diferentes. Parei com endeusamentos automáticos. O que gosto ou não gosto é agora mais simples e viável. Aquele brilho da poesia ao mesmo tempo se intensifica e arrefece. Diria àquele poeta que seu sentido de urgência é uma máquina em funcionamento em direção a um ponto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pretendo escrever um livro dialogando com as artes visuais e gravar microfilmes de poesia. São projetos mais ou menos traçados e que espero realizar nos próximos anos. Mais recentemente tenho me dedicado a compor letras para música, o que é um grande desafio e aprendizado.
Em relação ao livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, se eu conseguir ler ao menos os livros que estão abarrotando as estantes de casa, talvez eu encontre aquele que ainda não existe.