Marco Aurélio Correa é pedagogo, escritor e pesquisador, autor de “Necropoéticas e outras histórias”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou professor de escola pública, professor dos anos iniciais do ensino fundamental para ser mais específico. Então na quase maioria do ano minha rotina matinal é em companhia dos meus pequenos. O que não quer dizer que eu não esteja lendo ou escrevendo também. Nesses tempos líquidos e conectados uma das primeiras coisas que faço ao acordar é checar as mensagens e ler umas besteiras de rede sociais para despertar. O feed hoje em dia virou o jornalzinho de outrora. A caminho da escola tento ler algumas páginas do livro da vez no ônibus, apesar de não ser muito indicado pelos oftalmologistas, esse costuma ser o único tempo que tenho para ler literatura. Todo dia inicio o planejamento com as crianças com uma leitura de um livro infantil, o que bom para começar o longo dia na escola com leveza e se aprofundar ainda mais nesse universo da escrita para os pequenos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre fui uma pessoa da noite. Sempre achei que rendia melhor a noite, principalmente nas madrugadas, porém, com o meu trabalho na docência comecei ter que me habituar com a vida matutina. Então o período que comecei a me dedicar mais a escrita foi a tardinha/começo da noite, porque quanto mais tarde fica mais o desgaste me pega. Mas a grande verdade é que professores escrevem no tempo que dá, no tempo que aparece. Principalmente quando temos datas e demandas. Imagino que essa tenha sido a realidade de professoras e professores do ensino básico público que intercalaram a docência com a vida literária, como Conceição Evaristo e Jefferson Tenório, por exemplo. Existe nessa relação uma dor e um glamour que criam um caldo interessante para nossa escrita.
Então quando o tempo aparece a minha inspiração consiste em pesquisar e sentir, nos mais variados sentidos. Vou desde a leitura de outros escritores, passando por assistir filmes, até a corrida e caminhada para fazer o corpo e a mente funcionar. Mas acho que o meu ritual mesmo é ouvir algo instrumental enquanto escrevo, podendo ser jazz como Coltrane e Davis, ou brasileiro como Pascoal ou Gismonti, ou até coisas mais inusitadas como rock progressivo dos anos 1970. O importante é ter uma camada musical que me deixa em transe para poder me concentrar por completo a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho metas pessoais, como o desejo de publicar, mas também tenho demandas específicas, seja com o trabalho na escola ou com a vida acadêmica. Então costumo dedicar bastante tempo para esses períodos concentrados no decorrer da semana, para no final dela poder relaxar e curtir sem me preocupar com essas necessidades. Escrever sem vontade, sem paixão não dá. Então as metas não costumam a ser diárias, deixo fluir mesmo, sem me pressionar, mas sem deixar de dar conta do necessário. As metas acabaram vindo depois que me entrei nesse universo literário, como a vontade de lançar coisas em formatos cada vez mais distintos, então estou aprendendo a lidar com elas agora só. Espero que continuem a ser mais uma relação de prazer do que cobrança.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tento não criar muitas barreiras com o que escrevo. Acho que se não for pra ser espontâneo não rola, mas isso não quer dizer que não tenha uma cobrança comigo mesmo com esse processo de pesquisa. Chega a ser uma constante estar o tempo todo interagindo com algo que pode ser uma fonte interessante para meus processos criativos. Já cheguei a tomar puxões de orelhas por pessoas próximas por não conseguir desligar essa minha vontade de estar sempre lendo, vendo, ouvindo ao produzindo algo. Mas para mim é um processo bem natural, sou curioso e inquieto, qualidades que acho que são bem importantes para escritores. Então para os estilos que estou acostumado a escrever – narrativas curtas, contos e escrita acadêmica – esse processo da pesquisa à escrita acaba sendo bem ligeiro. Agora que venho experimentando com narrativas mais longas tenho me cobrado mais com esse processo de por as ideias no papel, mas imagino que quando as coisas começarem a fluir naturalmente é porque já estou pronto o suficiente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Por incrível que pareça raramente travo. Tenho tantas ideias na cabeça que quando sento para escrever uma história ela já foi e voltou várias vezes na minha imaginação. Algumas só tenho o contexto e o ponto de partida e no decorrer delas vou deixando a minha imaginação fluir. Agora que venho me dedicando a um projeto mais longo, diga-se um romance, tenho me deparado com questões que ainda me são novas, mas imagino que não serão obstáculos tão grandes. A questão é dar o tempo certo para cada ideia.
O medo e as expectativas já me foram uma questão. Na verdade, ainda são, imagino que todos escritores são assolados por esses fantasmas. É fato que todos os escritores sempre querem muitos mais do que suas obras costumam os dar, mas confesso que meus dois lançamentos até então tem me aberto mais portas do que imaginei. A escrita acabou sendo uma consequência. Escrevia porque queria, o que viesse em seguida era lucro. Demorei a me considerar escritor, nunca foi uma profissão, sempre fui apenas professor. Agora que lido mais com a expectativa, pois quero alcançar voos maiores, mas sei que enquanto tiver ideias que acho que são interessantes de serem publicadas continuarei escrevendo e tentando. Perder o contato com as miudezas da vida da escrita seria o meu maior desencanto.
Agora a procrastinação é um grande problema. Até tenho uma boa disciplina em me concentrar com meus trabalhos, mas a adicção e ansiedade que as redes sociais causam na gente desviam muito da minha concentração. Tento fazer acordos comigo mesmo, a cada meia hora na frente do computador, faço uma pequena pausa para descontrair jogando conversa fiada. Por incrível que pareça dá certo e nessas pequenas pausas acabo encontrando material interessante para meus trabalhos. Mas de fato venho tentando mudar essa relação de procrastinação com o celular.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meu ponto fraco é a revisão. Não tenho paciência. Me cobro. Acho que não sou bom o suficiente. Apago quase tudo e começo do zero. Nunca consigo dar o ponto final. Sou ansioso. Então não costumo reler muito o que escrevo, tento revisar no decorrer da escrita, mas sei que não dá certo. Então confio muito nas pessoas que revisam e selecionam nossos textos, pois por conta própria não daria conta de finalizá-lo desse jeito. Apesar de ser um processo bem solitário a escrita não funciona sem a relação com o outro, então confio muito em quem me edita. Felizmente até aqui só tive experiências positivas com esse processo. Queria muito ter uns chegados para enviar meus textos e trocar sobre, mas no corre do dia a dia acaba que na maioria das vezes esse é um processo só meu. Quero mudar essa relação, tanto de ter mais paciência comigo mesmo no processo de revisão, quanto de confiar nas pessoas a lerem meus textos e opinarem. Não dá pra escrever sozinho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha infância foi do papel, foi brincando com lápis e canetinhas que comecei a me interessar por criar histórias, mundos e universos. Com os anos perdi a paciência e me habituei com a praticidade do papel, para ter uma ideia não uso caderno, nem imprimo textos no decorrer dos meus anos na academia. Quando decidi me concentrar na literatura reencontrei o papel e a escrita à mão. Ainda uso uma conversa comigo mesmo no whatsapp para tomar notas de algumas coisas do dia a dia, mas gosto de rascunhar ideias no papel e escrever as primeiras versões de contos em cadernos. A liberdade que a escrita á mão tem acho que dá uma maior fluidez a nossa imaginação. O ato de digitar o que escrevo é uma forma de lidar com a minha dificuldade de revisar meus textos. Nesse processo de reescrita vou remodelando minhas histórias e fazendo outras conexões. Mas não sigo um padrão fixo também, depende da espontaneidade, algumas escritas fluíram no papel e outras na digitação, o importante é sentir o fluxo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como disse, vivo uma vida intensa de descobertas. Acaba nem sendo de propósito, mas estou sempre consumindo alguma coisa. Essa avidez por interagir com alguma forma de criação humana me dá um repertório quase inconsciente de inspirações e referências.
Recentemente percebi que gosto muito de escutar as pessoas. Acho que a simplicidade do cotidiano, naquelas conversas fiadas, nas histórias relembradas, e nas anedotas da vida é um material tão rico quanto para o processo de qualquer escritor. Então tento viver a vida, tento me cercar das mais variadas experiências para estar sempre bem alimentado dessa matéria humana que é o ato de contar história. É ouvindo que se escreve.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A grande diferença mesmo é a confiança, não digo nem a experiência, mas é a capacidade de saber que posso oferecer algo de interessante para o outro. Não digo nem de qualidade ou técnica, mas de apresentar um universo escrito, que mesmo que pequeno, é rico e diverso. De uns anos pra cá as pessoas tem se interessado mais em ler a diferença, então por ser um homem negro que escreve sobre sua vivência, sei que terei um público, mesmo que pequeno, que tem interesse em ler pessoas iguais a mim. Sempre gostei de inventar histórias, mas agora tenho mais intimidade com esse processo. Acho que o que diria pra mim mesmo é o mesmo o que digo para meus estudantes: acredite em você mesmo e não tenha medo de errar. Imagino que a maior trava que temos é o medo de como nossos textos vão ser recebidos, mas como qualquer coisa na vida se não nos arriscarmos nunca iremos aprender. É importante termos a autoestima de confiarmos em nós mesmos, já passamos séculos sendo esmagados por um sistema que grita em nossos ouvidos diariamente que não somos capazes. Mas somos, e muito. É só ouvir a quantidades de vozes que estão aí fora contando outras histórias, aquelas histórias que a história não costumava contar. Talvez eu tenha dito esse processo de acreditar em mim mesmo e não ter medo de me arriscar muito tarde, queria muito ter tido o incentivo a continuar a inventar histórias, como fazia na minha infância, mas não foi o caminho traçado por mim. Por isso agora quero muito incentivar essa caminhada pela escrita, e que ela seja leve, livre, gostosa e natural para aqueles que tiverem coragem e interesse a mergulhar na escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho a ideia de dois romances na cabeça: um é sobre uma matriarca e uma escola dirigida e destinada para a comunidade negra. Tem muito caldo que quero extrair dessa pequena ideia, e ela vem sendo maturada na minha cabeça faz um bom tempo. Só preciso a pôr em prática. A outra é uma tentativa de resgate histórico. Quero escrever uma ficção histórica que reconecte o atlântico de uma personagem que consegue viajar esses mares, participando e observando de acontecimentos históricos. A ideia é que se passe no Brasil, Haiti e Estados Unidos, mas isso é ideia bem futura mesmo. Vamos com calma. Escrevo isso aqui tanto para botar pra fora as ideias e dar poder as palavras e porque quero ler isso novamente daqui uns anos quando estas ideias se tornarem palavras impressas.
Quero ler muitos livros que existem e muitos que ainda não existem. No dia que não quiser ou não puder ler mais nada novo serei uma pessoa infeliz. Por isso incentivo a escrita, pois quero que sempre estejamos bem servidos com novas narrativas. Para aquilo que ainda não aconteceu só posso contribuir com minhas ideias e projetos, mas já que a escrita é uma experiência coletiva, quero muito que aqueles que foram impedidos e desmotivados a escrever botem para fora todo aquele grito poético que nos faz ferver e viver.