Marcio Dal Rio é escritor, autor da “Balada do Crisântemo Fincado no Peito” (Reformatório).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Embora autônomo, mantenho a rotina de trabalho fora de casa, trabalho há 23 anos com assessoria de comunicação e com jornalismo. Sou naturalmente “bicho de casa”, então prefiro sair, mesmo com a possibilidade de fazer home office. A rotina e a vida de cidadão comum me fazem bem. Fazer o café, a casa em silêncio, tempo para pensar, são ritos fundamentais. A ida para o trabalho é também um importante momento de observação e maturação de ideias. Tenho tido o privilégio de trabalhar a pé, o que é melhor ainda. Mas, na manhã, antes de sair, mantenho a casa em silêncio. Nenhum aparelho eletrônico ligado. Apenas consulto o celular para ler notícias e as redes sociais. Por ter um trabalho sobretudo poético, tenho dificuldade de ter uma rotina de escrita na manhã, para alavancar projetos, por exemplo. Mas a manhã é campo fértil para novos poemas, ideias paradas, podem de repente andar. Uma notícia ou algo que se vê pela janela (moro num sobrado voltado para uma rua movimentada) podem ser motivos para um novo texto. Quando assim, escrevo imediatamente no papel ou direto no celular. Não acontece todas as manhãs. Dependendo sempre de uma provocação, o poema pode vir até pela metade, ou apenas uma frase ou verso. Ela fica guardada no papel ou mesmo no celular, para mais tarde se transformar em poema. Essa construção por vezes é rápida, por vezes pode demorar alguns dias até que o poema tome forma definitiva.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Além destes arroubos matinais, que não acontecem todo dia, tendo a funcionar melhor durante a tarde e aproveito brechas no trabalho. A poesia tem uma particularidade, pois ela precisa de impulso, de uma certa corrente elétrica, etambém precisa de tempo, precisa “do” tempo. Preciso da eletricidade, da comoção, se a eletricidade não vem, fica difícil, é possível arranhar alguma coisa, mas é difícil sair algo completo. A melhor maneira de estar preparado para escrever poesia é não estar preparado, estar absorto, pronto para a próxima corrente acidental. É respeitar o tempo e o “seu” tempo, dar tempo para o seu universo desenvolver, sua linguagem, o seu próprio “corpo” poético. O melhor ritual é estar de olhos e ouvidos bem abertos, estar de peito aberto, pronto para a acidentalidade da vida. Viver é um ritual de caos, portanto este caos nos serve e muito como estofo para nossos escritos. O desarranjo, o imprevisto, o impensável, o abjeto, o impreciso, tudo o que é fora do lugar nos interessa e nos é ferramenta para a poesia. Por isso não há caminho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho inveja de quem tem um esquema industrial de escrita, quem escreve diariamente de forma religiosa de tal horário até tal horário, escreve rápido, escreve “ene” laudas a cada dia. Tento fazer isso há 20 anos, jamais consegui. No entanto, se considerarmos a autopublicação nas redes sociais, escrevo todos os dias. Escrevo devagar, olho os teclados, sou incapaz de escrever em grande quantidade, em uma levada só. Não tenho meta, embora agora aos 46 anos o tempo passe a ser a meta mais impositiva. A meta: o tempo está acabando ou pode acabar. Desde que comecei, aos 23 anos, até hoje, aos 46, tenho a “vontade” e a “provocação” como termômetros da escrita. Escrever depois dos 40 vai se tornando mais complicado, por que você fica mais exigente por um lado, por outro mais disperso. Já brinquei que a partir dos 40 a gente começa desistindo. Lógico que resistimos, mas toda forma de resistência é também desistência. Desisto todos os dias. E recomeço. E recomeço. E recomeço. Um dos maiores desafios é quebrar a redoma, superar o silêncio, a mudez absurda do não-reconhecimento. Escrevo há 20 anos praticamente para as paredes. Tenho leitores fiéis nas redes sociais que me mantêm vivo, se não fosse o advento do blog e da rede social, não fosse esse retorno em tempo real destes leitores, um retorno que nos quebra a solidão inerente, talvez eu já tivesse parado. Escrever é a forma mais sublime de desistir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa do poeta é a vida. É preciso manter a antena ligada, acompanhar o noticiário, saber o que está acontecendo no Brasil e no mundo. Embora às vezes puramente alegórica ou abstrata, a poesia depende da realidade para viver. Sem realidade não há poesia. O poeta precisa viver e precisa se manter atento. O poeta precisa estar vivo. Nossa pesquisa está nas pessoas, no que elas fazem, como trabalham, como se movimentam, como se reproduzem, o que dizem nas ruas, no transporte, no trabalho, no comércio, nos bares, nas filas de banco. A poesia está nos acontecimentos secretos, nos não-acontecimentos do dia a dia. Uma simples distensão da realidade pode funcionar como um “tapa na cara” e provocar o poeta. Uma criança suja dormindo ao relento, uma discussão de um casal desconhecido em plena rua, uma moça falando de sexo anal do ponto de ônibus, um pote de comida esparramado na calçada, uma ação-reação em qualquer momento da existência. Tenho preferido elaborar novos projetos com temas fechados, é uma escrita mais difícil para a poesia, mas tenho me provocado para isso. Não tenho tido mais interesse de fazer meras coletâneas de poemas esparsos. Essa tem sido uma nova maneira de me manter interessado aos 46 anos de idade. Para nós, a escrita e a pesquisa não se soltam, pois a escrita é a vida, a pesquisa é a vida, a poesia é a vida, e sem a vida não há nada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho medo de não corresponder, pois minha vida já é por si uma “não-correspondência”. Um sentimento de carta extraviada. Vivo apartado do que poderia ser, do que poderia ter sido, do que poderia acontecer, e do que poderia ter acontecido. Então “ser ou não ser”, para mim, independe, não chega a ser questão. Lógico que todos trabalhamos por reconhecimento. Ser falado é bom. Me acostumei com o silêncio. Às vezes assusto quando recebo um elogio. Não tenho grandes anseios por uma grande e extensa obra. Sobretudo em poesia não pensar em grandeza é fundamental. O poeta precisa ser prioritariamente pequeno. Somos formigas, ninguém nos vê, só nos percebem quando mordemos. Publicar o primeiro livro me tirou um grande peso, pois demorou bastante para sair. Se conseguir chegar a quatro livros, já vou me considerar vitorioso. As travas são o beijo de vida e de morte. Elas são importantes para você se manter em busca, se manter em atrito com a vida. Lógico que chega um momento que incomoda e você precisa enfrentá-las. A melhor maneira é o resgate, resgar o que foi escrito, resgatar a si, resgatar a paz, resgatar o tempo, resgatar o silêncio. A internet pode ser um problema, no entanto mantenho ligada, tenho dificuldade para me desplugar. Sou implicado com a questão da procrastinação, me parece um termo inventado para o sentimento industrial da vida, esse sentimento moderno de produtividade a todo custo, ser produtivo como uma máquina fazedora de textos. Na poesia o “não-fazer” é tão importante quanto o fazer. Não fazer nada é muito importante. Muitas vezes não fazer nada é a melhor coisa da vida.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão depende da força da ideia, às vezes ela vem tão forte, que o poema já nasce praticamente pronto. São poucos ajustes e está pronto. Quando a ideia vem por uma palavra ou frase demanda mais tempo de feitura e de ajuste. Às vezes o poema parece incompleto, às vezes fica pela metade e precisa esperar. Os ajustes pode requerer a reescrita de alguns trechos, ou a troca da ordem dos versos. Alguma palavra fora do tom por outra, alguma palavra que tira o ritmo, ou verso que ficou carregado demais. Minha forma é sempre livre. Não quero ser clássico. No entanto é preciso respeitar o ritmo e o tempo das palavras. Elas precisam soar bem e ter um bom encadeamento com as demais. Prefiro escrever, pensar e explicar assim: de forma não acadêmica. Não mostro para ninguém, gosto de provocar surpresa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou da geração blog e meu bloganvile.zip.net, feito quase que diariamente de 2006 a 2016, foi um importante exercício para desenvolvimento de minha poesia. Dali surgiram os poemas para a coletânea “Transitivos”, que participei em 2011, e a base para a poesia que mantenho até hoje. Mantenho o Bloganvile guardado no meu site marciodalrio.com.br. O Facebook foi o passo seguinte e por isso tenho minha página como um caderno de exercício literário. Claro que não resisto e também solto minhas diatribes contra a realidade política e social no Brasil, sobretudo agora nesses tempos sombrios. A autopublicação virou uma forma da sobrevivência. O blog me foi fundamental para definir uma nova poesia na minha faixa dos 30 anos, mais pós-poética, mais prosaica, mais informal, mais indignada, mais anarquista, mais desconstruída, diferente e às vezes até divergente do “poemão” hoje em voga. Faço anotações a mão, mas ultimamente estou distante delas. Escrevo direto no notebook. Tenho um computador fixo em casa, já gostei dele, estou pensando em vender, pois tenho preferido escrever cada hora num lugar, ora na sala, ora no quarto e até mesmo na cozinha. Poesia se escreve em todo lugar, por vezes escrevo caminhando, e entro num estabelecimento comercial para terminar o poema ou a ideia, ou nervo central do poema. Já escrevi na fila do cinema, na mesa do bar, nas Lojas Americanas, entre panelas, CDs e DVDs. Por sobrevivência, aprendi a escrever pelo celular. Faço poemas inteiros direto no celular. Se tenho dúvida, deixo a página aberta no bolso, sem apertar o “publicar”. Espero um tempo, revejo, edito no celular mesmo e publico. Depois revejo no notebook e se tem correção a ser feita, faço. Isso pode acontecer a qualquer hora.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Meu primeiro livro se chama “Balada do Crisântemo Fincado no Peito”. São 138 poemas que contam uma história. Não é um romance, não há fio condutor. A história se dá pela carga elétrica destes poemas. Aqui o que vale é o fio descondutor. A história é banal: um cara leva um fora de uma moça chamada Corbelha e cai na vida, se aventura com uma aranha de seis pernas, com uma feirante, fica amigo de um traficante, tenta a vida como mercenário, cai numa pista de drag queens, morre muitas vezes, e (há quem diga) sobrevive. Durante todo esse processo ele é atazanado por criaturas divinas que o levam para o céu e para o inferno: os crisântemos. Gosto dessa possibilidade de quebrar o endeusamento da poesia, de descê-la do pedestal, de colocá-la em confronto com o banal, com o prosaico, de colocá-la com conflito com a música, com as histórias em quadrinhos, com a pop art e a arte em geral. Tento manter essa inquietação para os textos atuais e também para meus futuros projetos. Para mim, a poesia pura não existe, ela não é uma musa intocável, não é uma deusa dos acalantos cósmicos. Não há nada aqui com Deus. Poesia se faz na rua, se faz lama, se faz no atrito com a realidade, quanto mais rasgada e desgastada, melhor. Quais são os hábitos para isso? Me manter sempre em conflito, sempre em atrito, sempre dissonante, aberto para todos os erros, permitir-me naufragar e voltar, sempre.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrever é um não-caminho. Estreei meu livro solo aos 44 anos, quando venci o Prêmio Maraã de Poesia, em 2016, criado pelo poeta Osório Barbosa, o que permitiu que o livro fosse publicado no ano seguinte, pela Editora Reformatório. A “Balada do crisântemo fincado no peito” foi escrita na virada dos anos 2000, portanto quando eu tinha 20 e poucos anos. Desde então, tentei publica-lo por meio de vários concursos. Sempre o quis como meu primeiro livro, fui envelhecendo, não perdi o encanto pelo texto e a vontade de vê-lo livro, de vê-lo livre. Aprendi a conviver bem com esses muitos poetas, que são pessoas diferentes, mas na verdade são uma pessoa só: eu mesmo. Ou seja, o eu com 20, o eu com 30 e o eu com 40 anos. Está chegando aí um próximo sujeito, o eu com 50 anos. O que eu digo para esses caras? Não percam jamais de vista aquele menino de 20 anos! Ou que eu diria para o menino de 20 anos? Seja mais intempestivo e mais homem-bomba para conseguir seu livro, não demore tanto! No entanto, eu não tenho nada a reclamar dele, esse menino é a minha base de sustentação. Jamais poderei perder este menino de vista. A poesia precisa da juventude, e fazê-la é, de certa forma, perseguir a juventude pela vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há 20 anos sou cobrado para escrever a história da minha família, dos italianos que vieram para o comércio no Interior de SP, não me sentiria à vontade com o formato convencional, não sei, teria também dificuldade de transformar entes queridos em personagens. Talvez eu teria de transformá-los em cem por cento ficcionais. Mas é algo em suspenso, que se puder ainda farei, mas também no formato de poemas interligados. Gostaria de ler o livro da minha vida. Ela de certa forma ainda não existe.