Márcio Couto Henrique é professor da Faculdade de História da UFPA.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não gosto de acordar cedo. Não tenho uma rotina matinal específica. O tempo do trabalho começa quando ligo o computador, sempre depois do café da manhã. Costumo olhar as redes sociais e, principalmente, a conta de e-mail. Por sinal, as redes sociais representam um desafio para o processo de escrita. Roubam nossa atenção. É necessário ter firmeza diante delas. Quando tenho algo muito urgente para escrever, deixo-as todas desconectadas. Mas, se estou fazendo algo que não exija de mim tanta concentração, mantenho-me conectado, no meu caso, apenas com Facebook (que demorei a aderir) e WhatsApp (idem). Quando estou produzindo um texto realmente importante, gosto de isolamento e silêncio absoluto e se realmente me aborreço com barulho ou outras situações do cotidiano, não consigo continuar escrevendo. Mas costumo demorar a me aborrecer a ponto de travar a escrita. Prefiro trabalhar em casa, pois em minha sala na Universidade Federal do Pará as batidas na porta e a movimentação de colegas professores e alunos constituem um desafio à concentração.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho mais e melhor durante o dia. Nunca gostei de trabalhar de madrugada, que, para mim, foi feita para dormir. Não tenho ritual de preparação para a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária, até porque não tenho dificuldade para escrever. Gosto de escrever em períodos concentrados. Antes eu exagerava no tempo dedicado ao trabalho. Trabalhava o dia todo e só parava quando estava muito cansado. Trabalhava, também, nos finais de semana. Tinha dificuldades para dormir, com o cérebro em plena atividade mesmo depois que parava de trabalhar. Mas, hoje, evito trabalhar aos sábados e domingos, tempo que tenho dedicado à minha família e ao lazer. Também tenho evitado trabalhar além das 19h. Trabalho pesado o dia todo para não ter que trabalhar à noite. Isso me tem feito um grande bem.
Mesmo não tendo dificuldade para escrever, quando dou um intervalo longo entre um período e outro preciso de um tempo para recuperar o fio condutor da narrativa, do encadeamento das idéias, e isso me causa certa angústia. Mas, quando tenho tempo suficiente escrevo muito todos os dias.
Para professores universitários, as muitas tarefas da vida acadêmica constituem, muitas vezes, um grande obstáculo ao processo de pesquisa e escrita. Geralmente somos engolidos por uma rotina de reuniões, reuniões, reuniões, além da participação em bancas, elaboração de pareceres, relatórios, convites para palestras, entrevistas. Muito tempo é destinado, também, para a preparação das aulas. Evito assumir cargos na universidade, pois isso diminui ainda mais o tempo da pesquisa e escrita.
Momentos de lazer são fundamentais para o equilíbrio da mente. A frase “viver não cabe no Lattes” cai muito bem! (risos) Apesar de amar meu trabalho procuro manter a consciência de que não posso reduzir minha vida ao trabalho de professor-pesquisador-escritor. É uma parte importante de minha vida, mas não é a mais importante, muito menos a única. Quem faz da vida acadêmica a razão de ser de sua vida geralmente adoece e se torna uma pessoa chata, pois não consegue fazer outra coisa, não consegue falar de outra coisa. Gosto de sair com meus amigos e falar besteira, rir com os outros e rir de mim mesmo. Quando saio para beber com meus amigos, a última coisa que quero é debater categorias ou pensar no Lattes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente quando sento para escrever já tenho um roteiro mais ou menos estabelecido e, principalmente, já tenho todas as informações de que preciso para escrever. Primeiro leio tudo, faço fichamentos, transcrições literais de trechos de documentos e de bibliografia, estabeleço conexões entre ideias, identifico temáticas, de modo que a escrita flui mais rápido. O computador facilitou muito minha escrita, pois consigo localizar facilmente tudo que preciso na hora de escrever um texto. Costumo fichar os livros que me interessam, copiando citações literais seguidas do número das páginas. Tenho uma boa memória e lembro de trechos ou de palavras específicas que me interessam na hora da escrita, então uso a ferramenta Ctrl+L (localizar) para acessar a informação no computador e usá-la no texto que estou produzindo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando trabalho em um projeto longo ou em algum texto em torno do qual crio muita expectativa costumo pensar nele o dia todo. Vou dormir pensando nele, inclusive. No ato da escrita, desenvolvi um hábito peculiar: quando travo em alguma idéia, costumo ficar olhando para minha mão esquerda, acariciando-a com a direita, mais ou menos como faz um jogador de tênis com sua raquete durante uma partida. É um modo de me concentrar na idéia e sinto que as palavras que me faltam passam por minha mão, é como se eu lesse as palavras percorrendo minha mão. Então, volto a escrever. Mas, quem me fez perceber esse hábito foi minha companheira. Na verdade, o que realmente trava minha produção é a adequação de cada artigo aos critérios específicos de cada revista. Isso é uma grande chatice. Seria muito mais fácil se a formatação de artigos nas revistas seguissem um único modelo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Leio muitas vezes meus textos. Quando sinto que a leitura já está mecânica, passo alguns dias sem pegar no texto e aí leio novamente. Tenho artigos nos quais estou trabalhando há anos, ampliando, enriquecendo, até que sinta que eles estão prontos. Geralmente trabalho em vários artigos ao mesmo tempo. Crio pastas específicas para cada artigo no computador e os deixo lá. Vou finalizando por demanda externa. Creio que o artigo que produzi em menos tempo levou duas semanas para ficar pronto, pois o prazo que me deram era curto. Nem sempre peço para outras pessoas lerem. Quando tenho segurança no texto, não costumo pedir para outras pessoas lerem. Mas quando discuto questões sobre as quais não tenho tanto conhecimento gosto de ouvir a opinião de terceiros.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Para mim, o computador foi uma das maiores invenções da humanidade. Escrevo e penso mais rápido no computador. Nunca mais escrevi rascunhos à mão. A conseqüência disso é que perdi a habilidade da escrita à mão. Aperto demais a caneta, de modo que minha letra fica ilegível e num certo momento a mão trava. Quando preciso assinar dedicatória em livros de minha autoria é sempre um tormento para mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Em minha área de pesquisa, a História, me interesso por muitos temas e, às vezes, isso me torna um pouco disperso em termos de temas de pesquisa. Também por isso costumo trabalhar em vários artigos ao mesmo tempo, geralmente com temáticas bastante distintas. Minhas idéias vêm de situações igualmente distintas. Às vezes, recebo convite para uma palestra sobre um tema sobre o qual não tenho pesquisa em andamento. Então, ao preparar o texto de apresentação sinto que ele tem potencial para se transformar em artigo e o que era para ser apenas uma palestra se transforma em um artigo ou ganha uma pasta no computador esperando um tempo adequado para isso. Quando comecei a dar aulas na UFPA, meus alunos costumavam brincar dizendo que em tudo eu via um tema para um bom artigo! (risos) Às vezes, enxergo potencial ao ler um capítulo de dissertação ou tese de orientando da pós-graduação e faço o convite para publicação em conjunto. Então, trabalho a escrita a partir das fontes e da análise inicial de meu orientando. Gosto dessa experiência de escrever em co-autoria, seja com alunos ou professores.
Também procuro estar conectado com o tempo presente. Na condição de professor de História Indígena, aprendo muito estando em contato com os índios do presente, com suas lutas, com sua leitura e modos de inserção na história. Não consigo imaginar um historiador que se empenha em recuperar o protagonismo de determinados segmentos sociais no passado, mas é indiferente às lutas dos representantes destes segmentos sociais no presente. Fica faltando algo quando o que um historiador escreve sobre o passado nada tem a dizer para os homens de seu tempo.
O mais comum é que a ideia para meus artigos surjam a partir da leitura das fontes históricas que pesquiso. Primeiramente identifico regularidades temáticas nos documentos. Depois vou juntando dados e fazendo conexões entre documentos e textos, criando links do tipo “usar isto com aquilo”, com cada coisa identificada por autor, documento e número de página a ser utilizada. Organizo tudo no computador, separado em pastas específicas. Quando avalio que já tenho um bom volume de informações disponíveis começo a produção do texto escrito. Organização é fundamental em meu processo de escrita. Parto do princípio de que se eu não consigo acessar uma informação na hora em que preciso dela, ela não existe para mim.
O que mais me fascina na escrita é lembrar que, ali onde o leitor enxerga um artigo, antes só existia mato! (risos) Essa habilidade de localizar documentos perdidos na memória do tempo, esquecidos, armazenados em arquivos empoeirados, e então retirar deles elementos significativos, regularidades, problemas e dar a tudo isso um sentido expresso em uma narrativa que outra pessoa lê e diz “caramba, eu não sabia disso, que legal ler seu texto!” é isso que mais me fascina! Eu me consumo muito mais na produção do texto, é o momento em que me envolvo emocionalmente, em que me sinto mais desafiado em meu esforço criativo. Depois que o trabalho é publicado, eu me distancio emocionalmente dele e dirijo minha energia para o próximo trabalho. É isso que me mantém criativo.
Sinto falta de tempo para fazer leituras não acadêmicas, especialmente literárias, contos, romances. Já cheguei a usar o tempo da noite para isso, mas esse projeto ficou no meio do caminho. Pretendo retorná-lo, pois sei que, além de servir para relaxar, também é fundamental no processo criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Com o passar dos anos fui percebendo melhor que cada texto deve ser pensado em função de seu destino. Cada revista, por exemplo, tem um perfil e deve-se escrever pensando nisso. Aprendi muito com os pareceres anônimos que recebi dos artigos que publiquei. Eles vão nos mostrando o que os pareceristas observam nos artigos e o que eles valorizam a partir da expectativa dos leitores das revistas. Assim, fui aprendendo a ser mais objetivo, a ter mais clareza na escrita e a identificar novos caminhos em cada tema.
Também aprendo muito com os autores que leio. Algumas frases que leio em outros autores me marcam profundamente e me fazem parar a leitura por alguns instantes. Lembro, por exemplo, de quando li “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Ao falar sobre a variabilidade do meio físico brasileiro, o autor se reporta ao clima amazônico e ao falar sobre o período das enchentes dos grandes rios da região, surge no texto a seguinte frase: “A enchente é uma parada na vida”. Por alguns instantes parei a leitura, absorto pela força, pelo impacto descritivo dessa frase que tão bem retrata o efeito não apenas da enchente dos rios, mas também das fortes chuvas que caracterizam Belém, por exemplo. Como não parar diante da capacidade de Euclides da Cunha dizer tanto sobre a Amazônia fazendo uso de tão poucas palavras! Anos mais tarde, ao escrever o Dossiê Círio de Nazaré (IPHAN, 2006), que conferiu a esta celebração o título de patrimônio cultural brasileiro, me pus a pensar nos subtítulos dessa obra e num subtítulo inicial que traduzisse para o leitor o significado do Círio de Nazaré. Lembrei, então de Euclides da Cunha e formulei a frase “O Círio é uma parada na vida”. Assim como a enchente, o Círio de Nazaré causa nos belenenses a “sensação angustiosa de uma parada na vida”. Também me marcou profundamente a leitura de “Caminhos e fronteiras”, de Sérgio Buarque de Holanda. A cada página, uma frase impactante, uma habilidade impressionante de dizer as coisas de forma poética e fundamentada nas fontes que o autor pesquisou. Títulos de subtópicos como “Veredas de pé posto”, “Samaritanas do sertão”, “Botica da natureza”, além do título do próprio livro, “Caminhos e fronteiras”, constituem uma aula de metodologia da História e inspiração para a escrita.
Um desafio recente foi a escrita de livros paradidáticos. Quando recebi o primeiro convite, pensava que minha experiência anterior de professor do Ensino Básico tornaria fácil essa tarefa. Mas me enganei profundamente! Vi o quanto eu estava amarrado à escrita acadêmica, o quanto eu tinha dificuldade de escrever para fora dos muros da academia. Fiquei frustrado comigo mesmo, mas essa experiência serviu de lição e, depois de muito esforço, consegui produzir livros destinados a estudantes da Educação Básica.
Com o tempo fui ganhando mais segurança na escrita, o que me permite certa ousadia na narrativa, de modo a me livrar das amarras da tradicional e sisuda escrita acadêmica. Procuro lembrar sempre das palavras de Marc Bloch, em seu “Apologia da História”: “não imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares”. A escrita tem que cumprir seu papel de comunicar e isso precisa ser feito de forma compreensível para o máximo possível de pessoas. Nesse sentido, penso que escrever de modo a ser compreendido por doutos e escolares pressupõe o reconhecimento da posição política da escrita e do escritor. Não tem sentido defender a inclusão de novos sujeitos na História e escrever de um modo que exclui leitores. Escrever de modo a ser compreendido fora dos muros do saber acadêmico e científico também é um modo de inclusão social, de democratização do conhecimento. Escrever é um ato político e as palavras escolhidas pelo autor e o modo como as usa revela o ponto de onde este autor enxerga o mundo.
Com relação à minha tese de doutorado, eu procuraria fazer um esforço ainda maior para escrevê-la de modo a alcançar a compreensão de um público amplo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto de escrever uma espécie de Enciclopédia do Círio de Nazaré. Gostaria de ler um livro que não existe e nunca existirá: “Universidade sem o fogo da vaidade”.