Marcio Aquiles é escritor e crítico de teatro.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo cedo, às seis horas. Tomo café e escrevo um pouco, geralmente notas sobre algum trabalho literário que esteja desenvolvendo no momento. Em seguida, vou para a SP Escola de Teatro, onde trabalho como coordenador de projetos internacionais.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho nenhum ritual específico, tampouco preciso de um longo tempo disponível para escrever, conseguindo trabalhar bem mesmo em intervalos curtos. Passo pouquíssimo tempo em redes sociais, o que me proporciona mais períodos livres também, principalmente à noite e aos finais de semana.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Durante a semana, escrevo quase todos os dias, um pouco pela manhã e no final da noite. Como disse, consigo aproveitar bem períodos curtos também. Por exemplo, sou crítico de teatro da APCA e assisto a muitos espetáculos durante a semana. No intervalo entre a saída do trabalho e o início da peça, geralmente às 21h, estou sempre compondo ou editando algum texto. Nos finais de semana, também dedico ao menos umas quatro ou cinco horas para escrever.
Quando consigo visualizar a obra pronta, o projeto literário como um todo, porém, fico muito empolgado e passo a usar as madrugadas também, seja para compor ou editar. No momento, estou finalizando um livro novo, em formato híbrido, que mistura prosa, drama e poesia, portanto estou em uma fase de produção intensa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha memória é péssima, portanto se tenho alguma ideia que acho potencialmente interessante, preciso anotar de imediato. Às vezes é um conceito que quero usar, alguma característica para um personagem, uma frase… Meu primeiro romance, “O amor e outras figuras de linguagem”, por exemplo, surgiu a partir do título. Embora aborde vários tópicos, como narrativas sobre relacionamentos amorosos e substâncias psicoativas, existe um forte componente metaficcional também, uma investigação sobre a natureza da linguagem e do pensamento, entre outros tópicos, há um eixo central, que foi totalmente estruturado a partir desse nome que me veio à cabeça.
A escrita em si, contudo, é muito rápida. Se tenho o conceito que quero trabalhar, ou as características dos personagens que pretendo explorar, por exemplo, transformar em prosa ou drama é relativamente tranquilo para mim. Já a poesia, por sua vez, é mais difícil, no meu caso. Tanto que só comecei a escrever poemas quando estava com 30 anos. Antes não me sentia preparado, tampouco com vontade, para dizer a verdade. Não é um gênero que me interessava tanto. Mas eu comecei a estudar bastante Mallarmé, Pound e os concretos, o que despertou uma vontade insana da escrever poesia, então mandei ver.
A escrita exige um pouco de desinibição, tem gente que fica congelada, com medo de escrever por suspeitar que não vá produzir algo relevante, no “nível dos autores do cânone”. Eu, não, escrevo sem medo, porque tenho vontade, necessidade. A subjetividade da recepção é imensa, você pode produzir um texto que acredite ter enorme sofisticação artística e não ter impacto algum em parte dos leitores; por outro lado, às vezes um texto que julgue fraco possa tocar outros imensamente.
No ano passado, durante o lançamento de “O Eclipse da Melancolia”, meu último livro, ouvi de uma amiga, muito querida, mas que não encontro com frequência, uma história que jamais imaginaria. Ela me contou que tem um alto grau de dislexia, mas que havia lido um dos meus primeiros livros, o “Tipologias Ficcionais e Linguísticas” e compreendido tudo. É um livro meio “chato”, com várias armadilhas semânticas e procedimentos cifrados, mas ela interpretou tudo de um modo absolutamente genial.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas são inevitáveis, e convivo bem com elas. Por exemplo, todos os anos eu escrevia uma peça curta para encenar no festival Satyrianas. Desde 2016, porém, não consegui escrever absolutamente mais nada para esse formato específico, espetáculo de curta duração. Escrevi romance, escrevi 80 poemas para um livro novo, escrevi “peça longa”, mas não consegui escrever algo mais sintético para montar na Satyrianas, apesar da vontade absurda de continuar participando. Não é cliché, bloqueio criativo existe, é fato; todo ano recebo o convite para o festival, meus amigos pedem para eu escrever algo novo, e tenho que dizer, putz, não tá rolando, não estou conseguindo escrever nada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Edito bastante, faço cortes, acréscimos e mudanças radicais, se acho necessário. Para projetos de livro, geralmente envio o material direto para os editores, sem compartilhar com mais ninguém. Todavia, no final do processo, com a versão do pdf final, antes de a editora enviar a obra para impressão, sempre peço para minha esposa e mais uma pessoa ler, geralmente minha mãe, irmã, ou minha sogra, em busca de erros de digitação, formatação e coisas do tipo. E alguns erros, infelizmente, persistem, não tem jeito, seja em volumes de pequenas, médias ou grandes editoras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo diretamente no computador, mas sempre tenho um caderninho à disposição, principalmente para ideias mais urgentes, como um verso que já surge na mente meio que pronto, e certamente irei esquecer, se não anotar, ou alguma idiossincrasia para determinado personagem, coisas do tipo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Referências são tudo. Em qualquer campo das ciências (naturais ou humanas) e das artes, é fundamental aprender a maior quantidade de modelos, estruturas, procedimentos, axiomas possível, de modo a ter material conceitual suficiente para trabalhar. Somos seres altamente empíricos, com forte tendência à mimeses. Assim, ter alto índice de referências ajuda muito na produção, seja de conhecimento científico ou artístico. São raríssimos casos como o do matemático Srinivasa Ramanujan, que com poucas referências formais já era capaz de gerar ou compreender complexos sistemas numéricos. Eu me considero absolutamente ordinário, assim como a gigantesca maioria das pessoas. Para sair dessa platitude e desenvolver uma arte potente, preciso me esforçar ao máximo. Nisso, aquisição de referências é imbatível no processo de composição artística.
Sou bastante obstinado quanto a isso, de modo quase paranoico. Entre os meus 20 e 30 anos, por exemplo, senti que precisava aumentar exponencialmente a minha cultura cinematográfica. Anotei os meus 200 cineastas favoritos e assisti a filmografia completa de cada um deles, todos os filmes, sem exceção, mesmo para os diretores com extensa filmografia, como o Buñuel, Bergman ou Antonioni, por exemplo. Nos últimos três anos, por sua vez, senti absoluta necessidade de conhecer mais da literatura norte-americana contemporânea, então fui lá eu ler tudo de Pynchon, Paul Auster, Jennifer Egan, Jeffrey Eugenides, Chuck Palahniuk, Joyce Carol Oates, Paul Beatty, Franzen… É isso, para mim a melhor maneira de se manter criativo é estar sempre rodeado de boas referências.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Pode parecer impossível, muitos naturalmente podem duvidar, mas creio que consigo alcançar um bom distanciamento crítico em relação à minha própria obra. É como se eu me desdobrasse em vários personagens, o que escreve, o que lê casualmente, e o que analisa a própria narrativa ou a poesia. Minha formação em estudos literários contribui no processo, sem dúvida. Digo isso porque a questão da crítica, em si, impulsionou dois marcos decisivos em relação à composição dos meus textos. Primeiro tendo o professor Alcir Pécora como meu orientador, na Unicamp. As dicas cirúrgicas e sugestões que ele fazia na minha dissertação foram vitais na forma como eu escrevo e compreendo hoje um trabalho mais extenso, seja analítico ou ficcional.
Por outro lado, no período em que trabalhei como jornalista, e depois crítico, na Folha de S.Paulo, aprendi a ter maior capacidade de síntese, dado o limitado espaço que o jornal impresso dispõe. Foram dois eventos marcantes para minha produção textual. Mas tudo é um percurso contínuo, quando eventualmente eu pego para ler coisas que escrevi há 15, 20 anos, às vezes penso, que lixo, mal escrito, ficcionalmente pobre e de pouca envergadura intelectual. Mas não me cobro, tampouco sinto vergonha de textos antigos, mesmo porque, de fato, não existe uma “evolução” cronológica linear; o gramática do texto inevitavelmente vai melhorando com o tempo, mas o potência ficcional vai variar sempre, em épocas mais ou menos criativas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Putz, tem um projeto de performance, que ficou no passado, e me arrependo de não ter me esforçado com mais afinco para desenvolver. Seria de escrita poética alternada, em locais públicos, eu em São Paulo, e o poeta Márcio-André em Budapeste. Eu escreveria um verso, ele outro, e continuaríamos alternando a redação, com o texto sendo projetado ao vivo para o público ver como desenvolveríamos a estrutura do poema. Inicialmente eu havia idealizado uma performance de 24h, os dois em jejum. Depois o Márcio-André pensou em uma variante, onde o público poderia escolher as restrições ou novos procedimentos de escrita que deveríamos incorporar ao processo. Hoje, infelizmente, eu não teria condições físicas ou psicológicas para aguentar uma performance dessa ordem.
Quanto ao livro que ainda não existe, eu responderia com um desejo, de termos mais e mais livros que situam o ser humano historicamente, de preferência obras didáticas, lúdicas e bem escritas, desconstruindo as fábulas místicas e religiosas mais superficiais. A ficção é algo sublime, mas usar uma ficção como forma de dominação política, financeira e/ou social, como faz a imensa maioria das religiões, é algo perverso. Essas histórias, transmitidas oralmente ou pelos cânones religiosos, são engodo, foram escritas por outros seres humanos, frágeis e ordinários, assim como eu, você e todos nós, sem poderes sobrenaturais de desvendar os mistérios do universo por meio narrativas simplistas e banais, geralmente carregadas dos preconceitos mais rasteiros e de hierarquias dogmáticas tacanhas. O ser humano precisa de ficção para viver, mas vamos ler ou ouvir ficções interessantes, e não patifarias pobres de sentido, repletas da empáfia que caracteriza o embuste daqueles que querem se distinguir acima da maioria, de ver uma verdade que os outros, nós, pobre de nós, ignorantes e impotentes, não podemos alcançar… fala sério.
A divulgação científica cumpre um pouco esse papel, quando difunde que a ciência é uma, e apenas uma, forma de interpretar o mundo, com suas hipóteses, que podem ser refutadas por teorias mais acuradas, posteriormente. A humildade da física, por exemplo, é esplendorosa, quando contextualiza suas hipóteses para o universo observável, sem contar ainda outros fatores, como a percepção, a consciência e a linguagem, que deixam o estudo dos fenômenos naturais ainda mais complexos.
Estamos vivendo um momento complicado, em que cretinos semiletrados assumem ministérios e pautam suas políticas públicas com base em seus dogmas religiosos ou morais, e dogmas religiosos e morais geralmente significam um poço de preconceitos (étnicos, de gênero, orientação sexual etc. etc.), banalidades fantasiosas e infinitas doutrinas arbitrárias e aleatórias. Ceticismo é ferramenta essencial para se adquirir maturidade intelectual, e, sem maturidade intelectual, é impossível vislumbramos uma sociedade minimamente igualitária, livre e harmônica. Por fim, um pouco de sensibilidade artística também não faz mal a ninguém, especialmente agora, em que as trevas da intolerância e da boçalidade expandem seus territórios cada vez mais.