Marcia Camargos é escritora, pós-doutora em História pela USP e pela Sorbonne.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não cultivo uma rotina muito fixa, a não ser quando tenho prazo de entrega de algum trabalho. Em geral escrevo no período da tarde ou de noite, porque pela manhã procuro cuidar do lado prático do cotidiano, limpar a casa, lavar roupa, e também fazer exercícios ou algum tipo de esporte. Antes da pandemia frequentava uma academia, mas depois eu comecei a me exercitar em casa ou saio para correr. Então eu deixo a tarde e a noitinha para escrever, que assim não preciso interromper para fazer aquelas coisas normais do dia-a-dia, como ir ao supermercado e etc.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como já mencionei acima, em geral eu trabalho melhor a partir do meio da tarde, depois de ter me desincumbido dos afazeres domésticos. Não tenho um ritual pré-estabelecido, preciso apenas de um pouco de silêncio, de um lugar tranquilo, embora também consiga produzir em meio a outras demandas. Desde que tive meus filhos, há muitos e muitos anos, aprendi a espremer os minutos livres que sobram depois de todo o resto, para me dedicar à escrita. Mesmo se sou interrompida por demandas de terceiros, depois consigo me concentrar de novo, para mim isso nunca foi um problema. Ou melhor, tive que me habituar a esse ritmo, porque com crianças pequenas a gente nunca pode se dedicar integralmente a um texto, nem se desligar da realidade. Brinco que morro de inveja quando ouço que alguém está se “trancando num hotel” para escrever. Eu jamais pude me dar esse luxo, sempre escrevi cuidando de casa, da família, de idas ao banco pagar contas, das tarefas domésticas e etc.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se estou num projeto com prazo definido, me obrigo a uma rotina mais rigorosa, para ter tempo de revisar o texto com calma, corrigir quantas vezes forem necessárias. Gosto de imprimir o que redigi, porque a leitura feito no papel é diferente daquela feita na tela do computador. Cada versão traz as suas vantagens e especificidades. No computador, por exemplo, temos recursos de dar busca a palavras repetidas e assim troca-las por sinônimos, pois a nossa língua é rica demais e nos permite substituir aquelas que foram empregadas no parágrafo anterior. Agora, a leitura no papel parece que faz os erros saltarem aos olhos, acho mais fácil pegar os deslizes, sejam eles quais forem, do que no texto do arquivo. Então, quando tenho um prazo de entrega ou quando eu mesma resolvo que preciso terminar um livro, procuro seguir uma meta mínima de caracteres digitados por dia. Assim o trabalho flui, sem ficar pesado demais nem exigir dedicação exclusiva, algo que nunca pude obter.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é muito simples. Primeiro, procuro selecionar todo o material bruto, fruto das pesquisas. Depois vou alinhavando e limpado, até chegar ao texto final, que vou burilando com todo cuidado. Muitas vezes leio em voz alta, para sentir sua vibração, ver se tem ritmo, se é agradável. Porque o texto é um pouco como uma partitura, as frases devem ligar-se umas às outras, ele não pode terminar de maneira brusca, salvo se isso for intencional e fizer parte do estilo, se for esse seu objetivo. Quer dizer, ele tem que fluir, correr como as águas de um rio, seja de forma mais caudalosa ou violenta, seja sutil e delicadamente, mas sempre seguindo o desejo do autor. E não encontro muita dificuldade em passar da etapa da pesquisa para a escrita final do texto, para mim é um processo natural, uma coisa intimamente ligada à outra, sem traumas nem sobressaltos. Mesmo porque, ao longo dos levantamentos, o texto vai se delineando no horizonte, sobretudo quando somos nós mesmos os pesquisadores. Na medida em que colecionamos os dados e coletamos as informações, talvez até inconscientemente, a escrita vai tomando forma dentro da cabeça, e assim tornando o processo bem mais simples e direto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em geral não tenho travas da escrita, mas claro que o medo de não corresponder às expectativas está sempre presente. Mesmo porque, o escritor é um ser meio carente, ele quer se sentir querido, quer que gostem dele, então o temor do fracasso é real e amedrontador. Então, para tentar evitar isso, eu procuro fazer meu texto ser lido por outras pessoas, assim tenho a aprovação prévia e me sinto mais segura. Agora, claro que a gene acha que poderia ter feito melhor, aquele coisa da busca da perfeição persegue a maioria dos que atuam no âmbito artístico, creio eu. Se sob uma perspectiva isso é prejudicial, porque nos trona exigentes demais, a ponto de, muitas vezes nos impedir de trabalhar, sob outro ponto de vista essa espécie de “utopia” nos impulsiona, nos faz caminhar para a frente, em busca de um ideal que se afasta na media em que nos aproximamos. No fundo, trata-se de um sentimento banal, bem humano, que a maioria de nós experimenta nas respectivas produções e me leva a pensar em Monteiro Lobato, de quem sou uma das biógrafas. Certa vez ele confidenciou ao colega mineiro Godofredo Rangel, com quem trocou cartas durante toda a sua vida adulta, que eles haviam nascido para perseguir a borboleta das asas de fogo. Corriam atrás dela sem descanso. Se não a capturavam, vinha aquele gosto amargo da frustração. Se tinham êxito, queimavam as mãos. Contudo, o que ele não chegou a mencionar é que um dia, a gente se distrai e ela pousa no nosso ombro. Nesse fugaz instante ocorre uma epifania, o texto ganha outra dimensão e o escritor cria asas. Dura pouco, mas se trata de uma experiência da maior intensidade, que deixa marcas profundas e impacta positivamente a escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se dependesse de mim, eu jamais entregaria nenhum texto, porque ele é sempre a versão mais recente, nunca a versão final, porque ela simplesmente não existe. Reviso dezenas de vezes e assim mesmo nunca estou totalmente satisfeita. Meu sonho de consumo é fazer um “recall” dos meus livros, para poder corrigir e melhorar o texto. Sem exagero, quando releio alguns deles fico procurando defeito e achando que eu poderia ter feito melhor. Meio frustrante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre digito no computador, reviso e utilizo todos os recursos disponíveis para aperfeiçoar minha escrita. Adoro a tecnologia, e leio quase que exclusivamente no Kindle, quase nunca compro livros de “carne e osso”. Acho prático, rápido e até mais barato, embora também goste muito de “fuçar” livrarias e bibliotecas, porque sem querer a gente acaba descobrindo preciosidades, tropeçando, por assim dizer, em alguma pepita de ouro que nos acena da prateleira. Agora, para o cotidiano, uso mesmo os recursos tecnológicos que de fato facilitam muito a vida e mostram novos caminhos dento do fazer literário.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêem de diferentes fontes, mas sobretudo dos livros que já li no passado. Quer dizer, meu estofo literário, digamos assim, me fornece um arsenal inesgotável de ideias. Não cultivo nenhum hábito especifico para me manter.criativa, mas tenho o dom da curiosidade, a mania de tentar ver sempre o outro lado da moeda e de nadar na contracorrente. Assim nunca estou satisfeita, e passo a vida buscando um ideal que, na verdade, sei que não passa disso – uma idealização, a busca do intangível. Graças a essa procura insana, as ideias borbulham na minha cabeça, e uso algumas delas para desenvolver meus trabalhos. Outras permanecem no limbo, elas nunca se realizarão.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o tempo minha escrita foi adquirindo um estilo próprio, fruto da maturidade. Sinto que hoje é muito mais fácil fazer um texto e desenvolver uma ideia. Percebo que a qualidade da minha escrita melhorou, o que é natural, pois a prática vai torando você mais articulado, mais rápido e eficiente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há uma série de projetos na minha cabeça, e muitos deles permanecerão assim, sem serem realizados. Quanto ao livro que gostaria de ler e não existe, eu não saberia dizer. Porém, tem um que queria muito ler, e ainda não consegui. Trata-se de Ulisses, do James Joyce. Tentei diversas vezes, em inglês, que domino perfeitamente, quanto em português, mas não tive sucesso em entrar no clima. Umberto Eco dizia que um livro requer algum grau de comprometimento, um esforço do leitor, que não é um sujeito passivo. Se ele desistir aos primeiros obstáculos, jamais vai entrar no mosteiro no alto das escarpas. Em relação à maioria dos livros tidos como herméticos ou mais “difíceis”, entre aqueles de Proust aos de Guimarães Rosa ou Saramago, consegui escalar as rochas íngremes e penetrar na magia guardada no seu âmago. Ulisses não quer abrir seus mistérios para essa pobre leitora ignorante. Quem sabe um dia? Não desisti ainda.