Magno Catão é poeta, advogado e mestre em direito pela UFPE, autor de “Legislação racista e antirracista no Brasil: apontamentos” (Offset, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando a pandemia começou, eu tinha acabado de defender a minha dissertação de mestrado. Nos últimos meses de 2019 e nos primeiros meses de 2020, portanto, eu estava um pouco alheio às literaturas de ficção e à poesia e muito imerso, pela pressão do tempo, em leituras técnicas e jurídicas.
Começava a manhã já disposto a ler e, posteriormente, a escrever – algo que nem sempre acontecia e deixava-me num estado de desânimo pelo resto do dia. Quem escreve academicamente, deve, no entanto, perdoar-se, porque a escrita não vem em doses certeiras e iguais diariamente. É completamente normal não conseguir produzir em alguns momentos.
Com o início da pandemia e o fim do mestrado, a rotina alterou a semântica dos meus fazeres cotidianos: voltei a ler ficção e poesia. E, apesar de os sentidos do mundo estarem invertidos nesses tempos tão inóspitos, tenho conseguido manter esse hábito depois que acordo: sempre leio um pouquinho. E agora sem necessariamente nenhuma obrigação de escrever – seja poesia, seja algo de teor acadêmico.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Poeticamente, sempre sou mais noturno e além-noturno: habito muitas madrugadas lendo e/ou escrevendo. Nesse período, as ideias chegam-se a mim súbitas e necessito escrevê-las, provavelmente devido ao fato de surgirem a partir do diálogo com outros autores, filmes e pensamentos sobre mim mesmo e minhas relações. E costumo visitá-los todos, mais intensamente, à noite.
Todavia, sou uma pessoa que lida com a inspiração de modo muito aberto, então algumas vezes escrevo também durante o dia, embora não seja a regra. Vêm-me uns versos e depois outro e mais outro e assim nasce um poema ou um quase-poema, não exatamente terminado ou ainda muito imaturo.
Na verdade, às vezes sinto que todos os meus poemas são quase-poemas. Tenho muita dificuldade em abrir suas travas e deixá-los vagarem. Diria que meu ritual poético é este: permitir as palavras se agigantarem quando resolvem sair do casulo e ter dificuldade em abandoná-las quando impõem o crescer das asas.
Admiro os amigos que me confessam ter poemas prontos na cabeça. Os meus vão nascendo a partir do momento em que começo a escrever. Tenho meus momentos de faíscas e ponho-as no papel. Geralmente penso em poucas imagens prontas. Dificilmente um poema inteiro surge na minha cabeça, ele só se faz na sua própria tessitura.
Já academicamente, procuro ser mais rigoroso, uma vez que tenho prazos além de mim. Costumo estipular algumas horas diárias para manter-me focado na escrita, malgrado, como eu tenha dito, nem sempre eu consiga produzir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou muito livre e não me obrigo a escrever poesia diariamente. Vez ou outra, no entanto, pergunto-me se não deveria ser mais disciplinado nesse quesito, pois sou da opinião, como diria João Cabral de Melo Neto, de que o exercício criativo é também um ofício, mas tenho receio de essa última palavra morar em mim de maneira muito pesada e retirar-me o prazer que é dar à luz um poema.
Fruir da nossa existência não pode ser algo que nos enrede nessa teia de produção à qual somos empurrados desde a mais tenra idade. Citando outro autor, o escritor indígena Ailton Krenak, percebemos que “a vida é um fim em si mesmo”. Parafraseando: a poesia está pela poesia.
Logicamente, é necessário ter tenacidade, ser um leitor voraz, buscar novos autores, tangenciar descobertas, mas com ternura e leveza. Assim, eu posso passar longos períodos sem produzir nada ou ter períodos de intenso processo criativo, sempre respeitando meus momentos de inação. Durante a minha quarentena, passei dois meses ausente da escrita e dois meses criando muito, por exemplo. Algumas dessas criações, a maioria, estarão no livro de poemas que lançarei em breve.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita poético é muito instantâneo e livre. Mas eu pesquiso e pesquiso bastante. A pesquisa do poeta é a leitura intensa e diária e não tem como fugir disso, a não ser que você queira afundar a si mesmo no mais completo e profundo ostracismo.
Eu me movo da leitura para o que escrevo às vezes fugaz, às vezes remoendo pensamentos vagarosamente, dias e dias me escutando para conseguir me desembocar no leito-papel. Posso escrever palavras rememoradoras de ideias repentinas que por algum motivo ainda ocupam o limbo entre o mundo das ideias e o mundo das concretudes.
Autores que me emocionam muito acabam sendo um suporte para a minha escrita: converso muito com eles e não me contento em ler apenas um livro, mas, sim, esmiúço toda a obra da pessoa. Tenho muitas ideias a partir desse exercício, a leitura apaixonada é o que mais move a minha escrita poética.
Academicamente, a pesquisa nunca foi uma dificuldade para mim. Posso ler bastante sobre um tema por horas a fio. Já a escrita…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Enquanto escrevia minha dissertação, não conseguia lidar bem com as travas da escrita e com a procrastinação, apesar de tudo ter ocorrido bem no final. Creio ser esse um sentimento presente em muitas pessoas na pós-graduação – não é à toa que temos altos índices de discentes com transtornos psiquiátricos, estatística na qual me incluo.
A depressão crônica é uma realidade na minha vida. Embora eu esteja bem quando devidamente medicado e “psicoterapizado”, ela é um monstrinho crescente em momentos de pressão, como lidar com prazos e o medo estrondoso de escrever algo ruim.
No dia da defesa, avisei à minha mãe para ela preparar-se: “você vai ver seu filho ser massacrado”. Definitivamente, não fui massacrado. Recebi algumas críticas, é claro, porém meu trabalho foi recebido razoavelmente bem. Minha mãe disse nunca mais acreditar em mim quando eu comentar que fracassarei feio. Estou contente por isso.
Recentemente, lancei um opúsculo chamado “Legislação racista e antirracista no Brasil: apontamentos”, um ensaio acadêmico contemplado pela Lei Aldir Blanc. A obra é um excerto da minha monografia, urdida em 2015, há cinco anos. É óbvio que, de lá para cá, a minha escrita acadêmica amadureceu, e levemente bateu a vergonha de publicar algo feito há tanto tempo. Não obstante, decidi maturar aqui minha perspectiva sobre o assunto: em vez de preocupar-me se a minha escrita é grandiosa ou não, optei por encarar o fato de que ela está tratando de um tema importante e pode despertar algumas pessoas. Há aí uma função.
Dessa mesma forma cresço os olhos, hoje, para a minha dissertação: pode não ser esplendorosa, mas fala sobre crimes políticos durante a ditadura militar na Circunscrição Militar de Pernambuco (que abrangia Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte). Fui o primeiro pesquisador a compilar tais dados sobre essa região. Nesses tempos sombrios, é fundamental resgatar nosso passado autoritário.
Conquanto eu esteja cada vez mais distante do Direito na minha vida, gosto de imaginar que ocupei esse nicho a fim de preocupar-me com temas sensíveis e de ter tocado a percepção de algumas pessoas sobre esses assuntos.
Com a poesia, tenho sentido cada vez menos preocupação em cumprir as expectativas alheias. Gosto de pensar em Rilke, para quem só eu mesmo posso dizer quando estou pronto ou não para me lançar ao mundo. Claramente, a opinião das pessoas que você admira é importante. Sinto-me extremamente lisonjeado quando recebo elogios dessas pessoas, mas tenho aprendido a escrever melhor não necessariamente para ser elogiado.
Tenho o desejo de ser visto como qualquer artista, mas venho me desprendendo de preocupações infrutíferas sobre o julgamento alheio. Quando o temor de não ser aceito escapa dos limites aceitáveis e paralisa o devir criativo, é hora de olhar a si mesmo com um pouco mais de candura.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso, reviso, reviso. Leio, leio, leio. Às vezes, chega a ser exaustivo e preciso até afastar-me do que escrevo para não criar ojeriza; às vezes, frustro-me porque determinado poema, por mais que eu tente, não chegará a ser bom e precisarei descartá-lo.
Mostro para amigos poetas ou amigos apreciadores de poesia o que escrevo, analiso as opiniões deles com muito rigor e, sobretudo, gratidão por disporem do seu tempo comigo. Já fui elogiado e já fui duramente criticado. Faz parte. Não fico magoado, dizem que a vaidade dos poetas é terrível, mas a minha definitivamente não é tão grande.
Friso, porém, o meu gosto pela autonomia. Uma pessoa por quem nutro respeito pode odiar o que escrevi, mas, se eu achar bom, manterei o poema. Citando novamente Rilke: respeito a minha própria intuição sobre meus poemas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha relação com a tecnologia é muito boa. Apesar de escrever um verso ou outro nos meus cadernos, só termino um poema no computador. Não me sinto muito à vontade para acabar meus escritos no papel, é como se eu me sentisse completamente travado sem poder digitar e dispor do teclado. Provavelmente eu fujo da regra, vejo muitos amigos poetas relatarem a preferência pela caneta.
Acredito que tal intimidade tem a ver com a minha história: sempre fui, desde criança, muito conectado. Aos seis anos, transcrevi do papel para o antigo Wordpad um livrinho inteiro emprestado da biblioteca, pois devia devolvê-lo, mas queria tê-lo sempre comigo. A forma que encontrei de eternizá-lo foi a sua “cópia” computadorizada e divertidamente feita por mim.
Cresci lendo os quadrinhos da Turma da Mônica não só nas revistinhas físicas, mas também digitalmente. Comecei a escrever aos 17 anos e já pulei direto para o computador, tive blogues, tumblrs. Acostumei-me profundamente a escrever assim.
Igualmente, não tenho problemas com livros digitais. Leio confortavelmente usando meu Kindle, mesmo que eu ame cheiro de livro novo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como eu disse, a leitura apaixonada é meu maior motor. Tenho uma regrinha, felizmente bem acolhida pelo meu espírito, de ler todos os dias, nem que seja um pouquinho, uma paginazinha. Filmes e séries podem me inspirar, além das histórias errantes, as tramas vagantes, a vida alheia. Como digo num poema, “tudo é uma presença se a imaginação lateja”.
As minhas ideias também vêm de dentro, de experiências próprias. Uma vez fui definido como “intimista” por um crítico. Creio que é verdade. No meu próximo livro, falo muito da minha própria infância, de questões muito minhas. É claro que sou alguém que compartilha com todo mundo a dádiva e o peso de estar vivo, minhas intimidades podem, por isso, ser universais.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu amadureci. Tenho mais respeito pelas palavras, pelo seu ritmo, leio poesia com mais rigor e comprometimento. Estou, sobretudo, mais calmo, menos afoito e mais atento, esperando mais lentamente a maturação dos meus poemas. Não gosto muito de pensar no que diria a mim mesmo se eu pudesse voltar aos meus primeiros textos, porque, feliz ou infelizmente, jamais terei esse poder.
Celebro a minha coragem de outrora, apesar de olhar com rigidez e até com culpa o que escrevi e publiquei há alguns anos. Quebrando um pouco o tom da pergunta, prefiro confidenciar para mim mesmo um poder do agora: “perdoe-se”. É o mesmo conselho que concedo a meus amigos escritores.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quando comecei a minha vida criativa, além de poemas, escrevia contos curtos. Tenho uma vontade imensa de retornar a essa aventura. Por isso mesmo, tenho lido muitos livros de contos ultimamente para sentir-me atraído e inspirado. Gostaria de escrevê-los líricos, de prosear poeticamente.
Não sei se há um livro que ainda não exista para suprir alguma necessidade minha. Há tantos mundos por aí desconhecidos, estou sempre tateando novidades e compreendendo a minha ignorância das coisas. Contudo, sinto a necessidade de ver mais obras escritas por pessoas indígenas. Gostaria de que o mercado editorial abraçasse mais essas vivências. Quando leio, sempre faço o exercício de incluir na minha lista autores não-brancos, mas tenho dificuldade de encontrar livros de pessoas indígenas, e não acredito na negligência delas, mas, sim, na inacessibilidade editorial.