Luiza Mussnich é poeta, escritora e jornalista, autora de “Microscópio”, “Lágrimas não caem no espaço” e “Para quando faltarem palavras”, todos pela 7Letras.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não acordo depois das 9h. Fico alguns minutos de olhos fechados na cama tentando me lembrar de algum sonho (se sim, corro para anotá-lo no caderno que mora na mesa de cabeceira), deixo o corpo desadormecer, me levanto, faço café na prensa francesa, leio as notícias.
Pra mim, escrever é um trabalho de corpo inteiro – por isso, preciso movê-lo. Muitas vezes tenho epifanias de ponta-cabeça numa postura de yoga ou durante uma corrida. Quando isso acontece, paro para anotar no bloco de notas do celular (também costumo ter ideias no banho, o que é sempre mais trabalhoso…).
Em dias normais, me sento no computador por volta das 11h, trabalhando a partir de trechos escritos na véspera ou me aventurando por arquivos de rascunhos e anotações. Sempre com o caderninho da vez à mão, zapeando as páginas escritas nos últimos dias.
Quando nada flui, recorro ao que eu estiver lendo no momento: um romance, um livro de contos, cartas, ensaios, poemas, ou entrevistas. Ler é parte essencial do processo: é lendo que se escreve, então procuro ler muito, ler de tudo. Assistir a filmes também ajuda. Um lampejo pode surgir a partir de uma cena que me comova ou de um diálogo esperto.
A mesa e a cadeira de um poeta são por vezes só uma mesa e uma cadeira, em que me sento ereta ou de pernas cruzadas, estalo a coluna, espero as coisas acontecerem. Noutras, um observatório de onde acontece uma encruzilhada entre os tempos, e também a anulação de todos eles.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O trabalho acontece muito antes de eu me sentar para escrever. Quem escreve nunca tem “folga” do expediente. Sábados, domingos, viagens e férias costumam ser momentos de muitas observações e anotações. Vida e escrita são indissociáveis. Para um escritor, o que acontece com ele e no seu entorno tende a virar matéria prima. Mas essa é somente uma das nossas muitas fontes. Sentar para escrever é a última etapa de todo o processo, uma espécie de transposição.
É necessária certa disposição para entrar em “estado de escrever”. Quem escreve precisa de tranquilidade, mas, ao mesmo tempo, de um coração intranquilo. Há de haver alguma tensão, movimentos tectônicos tirando tudo do lugar para reorganizarmos.
Às vezes o trabalho antes do almoço rende bem, mas há dias em que as ideias me mantêm acordada até de madrugada (essa é a escrita que normalmente demanda mais edição; e também a mais pungente).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A não ser que eu precise entregar um texto, ou esteja trabalhando num projeto específico, não tenho uma meta de escrita diária. Há dias mais fáceis que outros para escrever, mas geralmente não há um dia sem ao menos uma linha. Não por obrigação, alguma autoimposição minha, mas por necessidade. Um dia sem um registro seria como um dia que não existiu. Somos sensíveis a estímulos e há sempre algo chamando nossa atenção, por mais ínfimo que seja. Ou talvez justamente por isso. Temos obsessão pelas coisas mínimas; e que nos são enormes. Aquilo que se esconde na repetição, essa poeira dos acontecimentos, resquícios e detalhes têm enorme importância pra nós.
Como diria Manoel de Barros: “Escrever o que não acontece é tarefa da poesia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho o hábito dos cadernos desde muito nova: anoto conversas, entreouvidos, aulas, palestras, trechos de leituras, ideias que me acometem aleatoriamente. Então há sempre material de onde partir para a escrita. O paradeiro não importa tanto — vai-se descobrindo no trajeto.
Meu processo tem muito das técnicas de montagem e colagem. Desloco versos e parágrafos, substituo palavras, reorganizo frases. Às vezes começo de anotações estruturadas ou de frases soltas. Noutras, de uma linha, de uma palavra que seja e que possa servir de faísca para um texto. Sou uma acumuladora e não é incomum que reaproveite trechos descartados.
Fora poesia e demais escritas ficcionais, por vezes estou trabalhando em outros projetos, que requerem mais disciplina e horários mais rígidos. Para estes, preciso pesquisar e estudar bastante, ouvir gravações de entrevistas, editar textos. Movimenta toda uma outra engrenagem interna para a composição.
Mas não importa o que se escreva: escrever bem é reescrever. Muitas e muitas vezes. Até que, uma hora, a coisa vai.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procuro não me desesperar durante períodos mais travados. Em dias em que a escrita parece bloqueada, recorrer a livros já lidos e cheios de marcações é uma boa tática, assim como olhar fotografias que tirei e cadernos antigos. Em caso de urgência, vou à praia sozinha, dou um mergulho no mar e aproveito para prestar atenção às conversas dos outros.
Escrever começa nos olhos, nos ouvidos e sempre numa investigação interna e profunda. É preciso fazer perguntas o tempo todo. Somos inquietos por natureza.
A procrastinação faz parte do processo; ela só não pode inviabilizar a escrita. Muitas vezes tenho que dormir sobre uma ideia, um pensamento ou um texto. Encaro isso como uma forma de deixar a mente trabalhar sem meu comando, fazendo associações livres e inconscientes. Temos que acreditar não só no fato, mas também na intuição, no sonho, no desejo. Essas forças poderosas.
Sobre o medo de não corresponder às expectativas, sempre haverá críticos ao trabalho, então isso não deveria ser motivo de preocupação. Motivo de preocupação deveria ser a qualidade do que se escreve e o empenho, a paixão com que se escreve. Isso é decisivo num texto. Outra preocupação que tenho é a de não ceder a soluções fáceis. A escrita nunca pode ser simplória. As coisas deste mundo estão longe de serem simplórias. Ou fáceis.
Os projetos longos devem ser encarados como uma corrida de longa distância, um horizonte a ser alcançado, sem atropelo ou passos maiores que as pernas. A pressa é uma inimiga perigosa. Para tudo na vida.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Esse é um assunto sobre o qual penso muito. Quando e como se termina? Há coisas que poderiam durar indefinidamente? Giacometti acreditava ser impossível terminar realmente alguma coisa. Em que momento uma obra de arte pode ser considerada finalizada? Existe essa demarcação espaço-temporal em que podemos dizer que um trabalho está terminado (não sempre cabe mais uma pincelada, um último traço, uma reorganização de cenas, um outro corte, mais ou menos uma palavra)?
Talvez, se não fossem publicados, eu não pararia de revisar alguns dos meus escritos nunca. Mas chega uma hora em que é preciso largar o lápis, antes que o texto sofra amputações e perca sua espinha dorsal. É natural, a revisão, já que estamos em processo contínuo de amadurecimento e aperfeiçoamento, tanto enquanto indivíduos quanto como produtores de texto.
Há poemas que dão a sensação de estarem terminados; não comportam sequer uma vírgula a mais. Não sei muito bem que sinal é esse; mas sinto que nada lhes pode ser acrescentado ou subtraído.
Tenho alguns bons amigos-leitores-interlocutores com quem divido meus textos. É uma sorte grande ter essa troca. Temos que saber ouvir críticas e sugestões e não se apegar demais aos escritos, mas entender a gênese do próprio trabalho e refletir antes de fazer concessões.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma ótima relação com a tecnologia. Não importa tanto qual é o suporte, importa o que é escrito. O rascunho pode acontecer em qualquer lugar. Depende de onde eu estiver. Apesar do hábito dos cadernos, faço anotações sem pudor tanto no bloco de notas do celular (principalmente quando estou em cinemas e outros ambientes escuros), quanto no guardanapo de papel de um boteco. O importante é capturar a ideia, esse ser menor que um minuto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não há limite para a origem de uma ideia. Qualquer coisa pode virar objeto de escrita. É preciso estar atento, perseguir e acreditar no menor estímulo. Tento estar com olhos, ouvidos, mente e coração abertos, querendo saber mais do que não me é familiar. As antenas de um escritor têm de captar todo e qualquer sinal. Somos, por natureza, animais curiosos, interessados no outro e naquilo que desconhecemos. Isso é, inclusive, um forte traço da nossa humanidade. Não podemos perder o hábito de fazer perguntas, de pensar em todos os “ses” e “talvezes” do mundo.
O diagnóstico de câncer do meu cachorro se transformou num longo poema ainda inédito sobre a passagem do tempo e nossa incapacidade de sentir dor no lugar de alguém. O segundo turno das eleições presidenciais de 2018 virou o poema “Berlim”, publicado na edição político-literária da revista Época.
Já tive uma ideia ao ver a pegada de animal gravada no concreto da subida da Serra das Hortênsias, enquanto andava de bicicleta. Interrompi o giro dos pedais para anotar o pensamento no celular. A ideia se desdobrou em dois poemas do “Microscópio”. Um teste de gravidez de farmácia também acabou sendo matéria prima de outro poema, assim como a ativação de uma obra de arte cinética do artista plástico Alexander Calder, uma frase ouvida num observatório de estrelas no Atacama, uma fotografia vista numa rede social, um jogo do Botafogo… E por aí vai. Uma amostra do mosaico do meu nonsense.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu passei a ser mais crítica e exigente com os escritos, e a deixá-los descansar por mais tempo antes que fossem considerados prontos. Também procuro aumentar meu repertório de leituras e estudos para conhecer mais do que já foi feito e pensar melhor em quê e como fazer.
Falando pela minha experiência, primeiros textos costumam ter uma marca naif e denotar alguma crueza e inocência do escritor. Mas isso pode também ser um ponto positivo, porque a vida costuma endurecer e desenternecer as pessoas.
Eu diria a mim mesma para amadurecer, mas não há muito que se possa fazer sobre isso, senão deixar passar o tempo, mas sem nunca aniquilar o frescor do olhar, tampouco nossa capacidade de desnaturalizar o mundo.
Acredito que com os anos o escritor entende melhor a própria escrita, cria e conhece sua voz e ganha mais segurança.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho tido cada vez mais vontade de experimentar. Escrever é um enorme exercício de liberdade: dá a sensação de que é possível fazer de um tudo. Quero me aventurar por narrativas de mais fôlego e, quiçá, para outros suportes, e também por trabalhos visuais, pensando a palavra como centro da obra. Alguns desses projetos já estão em andamento.
Eu ainda preciso ler tantos que já existem!
Mas gostaria de ter lido livros de poesia de Clarice Lispector e Susan Sontag, por exemplo; um livro de cartas trocadas entre Ana C. e Sylvia Plath; mais livros do Victor Heringer; um livro com segundas, terceiras e quartas opções de títulos não utilizados e um livro em que escritores, cineastas e artistas plásticos detalhassem projetos que acabaram não realizando (talvez um dia eu me aventure nessa empreitada!).
Se mandassem um poeta ao espaço, gostaria de ler o livro que ele escreveria na volta da viagem. E se saísse uma tentativa de responder o “Livro das perguntas”, do Pablo Neruda, eu leria com interesse — e temor. Não sei se gostaria de ter todas as respostas, mesmo sendo uma pessoa curiosa. Eu gosto é das perguntas.