Luiza Gianesella é poeta e (arte-)educ(omunic)adora, autora de “entremarés” (Borboleta Azul, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
começo o dia via de regra apertando muitas vezes seguidas o snooze do celular e deixando novamente pro dia seguinte o plano de acordar mais cedo fazer ioga sair pra andar no parque meditar tomar banho e escrever poesia tudo antes das nove da manhã (a gente faz cada promessa louca pra gente mesma) mas a real é que costumo acordar mais ou menos 1h antes da hora em que preciso começar a trabalhar (não com literatura, com as coisas que pagam as contas) e esse tempo é suficiente para tomar café da manhã e alimentar os gatos e trocar de roupa e lavar a cara e só eu sou bem lerda às vezes ramelo, acordo atrasada e vou pro zoom com remela est-ce que tu viens de te lever? (ce acabou de acordar?) me perguntava meu prof de francês às oito da manhã e eu não entendia era nada mas se não tem francês ou videoconferência no primeiro horário eu caio na besteira de abrir um portal de notícias e tentar me atualizar enfim o começo do meu dia quase nunca é literário a não ser que isso tudo aí seja literatura
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
varia muito em épocas de trabalho assalariado em horários menos convencionais, rolava de sentar onze da manhã e escrever em fluxo atualmente ando bem funcionária, de forma que alegrias como sexo e literatura em horário comercial só de maneira relativamente escusa (recomendo) mas mesmo mais livre acho que escrevo melhor à noite já me aconteceu algumas vezes de ir deitar e ficar girando duas ou três palavras na cabeça sem saber direito o porquê ou de onde elas vêm um pouco como quem masca chiclete e aí do nada essas palavras virarem verso e esse verso puxar outro e aí um pouco encantada com o parto involuntário e um pouco desconfortável por ter que me levantar eu pego me levanto e passo as palavras pro papel foi assim com o começo de um poema muito longo que escrevi em fluxo sobre a morte da minha mãe viver um carnaval deveria ser algo como uma euforia alforriada veio isso e depois, ainda deitada, algo sobre a vida, gelo e queimaduras demorei pra resolver essa metáfora, cabeça no travesseiro mas quando ela montou no entanto sinto a vida escorrer como a água escorre de uma pedra de gelo que queima o interior de um punho cerrado eu precisei levantar, pegar um caderno e escrever de pijamas e às vezes é uma proposição mais direta, mesmo bora, mulher vamo escrever q ce é poeta às vezes cola rituais, não tenho a não ser que tudo isso aí etc.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
eu passei uns dez anos da minha vida contando pra mim e pros outros que eu tinha parado de escrever writer’s block, a porra toda só se achando muito importante mesmo pra afirmar ter writer’s block, né em inglês ainda toda a glória e a penúria do mundo miradas em você um gesto magnânimo, virar as costas pra literatura arrumar um emprego etc. 2008-2017 mais ou menos mas era tudo mentira, claro que eu sempre escrevi a coisa é que escrever não é só botar palavras no papel ou digitar coisas na tela escrever é o meu cacoete, eu sou dessas pessoas que fala como quem escreve se forem transcrever uma fala ~espontânea~ minha vai ser muito fácil, é um texto pronto coitada da minha analista, eu me dibro o tempo todo (coitada de mim, na verdade) e acho que eu também sempre lidei com tudo como sendo texto, embora ache que tenha feito isso de uma forma bem zoada por muito tempo e hoje em dia lide com esse cacoete de outra maneira, enfim divago o que eu queria dizer é que efetivamente eu produzi muito pouco texto durante muito tempo mas acho que durante todo esse tempo eu estava sim escrevendo, só que só da porta pra dentro e o processo desses últimos anos tem tido a ver com escrever da porta pra fora, com tudo o que isso implica de risco e exposição e delícia mas, tentando responder de forma mais direta eu costumo escrever em períodos mais concentrados (às vezes uma madrugada, à minha revelia, à revelia do serviço no dia posterior; às vezes uns meses, sobre um mesmo tema, sob uma mesma impressão) e deus me livre de metas: pouca coisa vira texto mas no fundo eu acho é que escrevo demais
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
faz bastante tempo que não escrevo prosa de maneira mais sistemática, e tenho tido vontade de retomar essa verve, na verdade tô falando isso porque não sei o quanto essa pergunta se aplica à escrita de poesia, que é o que eu tenho escrito mais (apesar de essas fronteiras serem bem questionáveis, vide talvez essa entrevista) mas eu acho que tem duas respostas possíveis uma é que eu não sou muito sistemática ou estável ou persistente acho que ia ser muito difícil pra mim escrever uma narrativa longa e coerente certeza de que no meio do caminho eu ia mudar de ideia, de ritmo, de registro adoro cinema mas nunca entendi como é possível alguém se manter tão firme nas próprias convicções e vontades pelo tempo necessário pra parir um longa-metragem acho que eu não seria cineasta nem a pau romancista, há controvérsias; veremos (mas talvez ser cineasta não tenha nada a ver com nada disso) a outra é que tudo é pesquisa aquela verve de que falei ali em cima que tem a ver com tratar tudo como se fosse texto: me aliviou muito o peso desse cacoete quando eu entendi que não tinha problema nenhum eu querer ler a vida e as pessoas ou escrever a minha vida, ou me escrever desde que eu encarasse isso tudo como literatura e não como não-ficção e desde que eu deixasse os outros escreverem as próprias narrativas e os próprios poemas por si sós sem querer interferir nisso (para além da interferência natural e saudável que consiste em estar vivo e se afetar) então é isso, fulano na minha frente toma cachaça com limão e tem um modo muito específico de dizer genial pra mim é o pixinguinha sicrana faz perguntas como quem disseca um sapo e todos somos o sapo quando meu amigo me abraça parece que ele calcula o tempo apropriado para um abraço um moço me beija como se fosse obrigatório beltrana sabe o que se passa comigo sem que eu precise proferir palavra (e, claro, me divorcio, minha mãe morre, quero mudar de país, o neoliberalismo é o horror da nossa época, tenho dois gatos; ordens de grandeza) e isso tudo são notas e é pesquisa; às vezes dá em texto, às vezes não a não ser que tudo etc.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
hoje em dia lido bem há não muito tempo lidava bem mal a procrastinação é tipo uma expertise minha somos amigas, não tenho muita pretensão de ser produtiva em arte (embora isso talvez não seja muito bom pra minha carreira de artista, mas pensa nessa expressão, carreira de artista) o medo de não corresponder às expectativas é sempre um falso medo, né a questão é encontrar a sua turma o famoso não gostou, cospe fora os harmônicos fazem vibrar outras cordas por simpatia e se a gente levasse tudo isso a sério a vida ia ser bem mais gostosa mas assim, claro, morro de medo, e essa experiência recente de ter publicado meu primeiro livro (entremarés, pelo selo Borboleta Azul) tem sido bem louca nesse sentido vivo tomada pela sensação de que é possível que alguém em algum lugar esteja me lendo agora à minha revelia, como ousa e junto com isso vem sempre o medo de alguém ler e simplesmente meh o que é muito pior do que a pessoa odiar com todas as forças que lixo isso mas penso que lido bem com isso hoje em dia especialmente porque não tenho a menor dúvida de que as coisas que eu escrevo vêm todas de um lugar de muita autenticidade povo pode não gostar, certamente mas me acusar de fingimento difícil sobre os projetos longos, já falei ali em cima sobre não ser cineasta mas acho importante um outro adendo: meu livro abre com um poema chamado sina que é assim nunca começa nada que termina e isso pra mim é uma verdade incontestável me parece que eu só conseguiria me dedicar a um projeto longo se eu não precisasse tentar garantir que ele não estaria saindo dos trilhos ao longo do processo ou seja só se ele fosse muito mutável e aí talvez não fosse um projeto longo mas algo que vai se modificando e que na verdade são muitas coisas que se sucedem acho que eu gosto mesmo é de fazer junto seja com os outros seja com o tempo
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
dez bilhões de vezes é um inferno talvez pela falta de maiúsculas, pontuação e, sei lá, parágrafos decentes, o incauto leitor possa estar sob a impressão errônea de que eu sou uma pessoa assim espontânea mas a real é que eu tenho alma de revisora às vezes eu me chamo pejorativamente de maria mesóclise e ainda que convenhemos que nada nunca fica realmente pronto (já dizia meu amigo cortázar que as únicas coisas que terminam de verdade são aquelas que recomeçam todas as manhãs) a ânsia da revisora é tentar esgotar o paranauê deixar o texto redondo ó pretensão então eu me perco bastante nessas; ao mesmo tempo, tenho percebido que tem um lado bom nessa história que é o de me permitir uma conexão com a sonoridade do texto isso talvez tenha ganhado corpo quando eu estava fazendo a versão sonora do entremarés e li o livro de cabo a rabo em voz alta, gravando desde então tudo o que produzo eu leio e releio tantas vezes que acabo decorando se tem um pedaço que eu não decoro nem por decreto, sinal de que algo vai mal nesse pedaço depois que decoro fico repetindo em loop na cabeça lavando a louça, no banho, declamo pros gatos quando retorno e comparo com a versão escrita volta e meia alguma coisa não bate (claro) aí quebro um verso de maneira diferente troco uma palavra ajusto uma métrica tentando respeitar o que o poema falado instaurou fazendo a escrita se submeter a esse retrabalho de som, memória e afeto não deixa de ser uma forma de revisar, e eu tenho aprendido muito com ela e tô aqui pensando se eu mando essa entrevista sem nem passar os olhos de novo ou se vou entrar num loop de burilamento desse texto (quando eu era pequena eu queria ser ourives quando crescesse, sem brincadeira) (e vocês jamais saberão o que de fato ocorreu e isso é bem lindo né?) sobre mostrar pra outres, sim, mostro com frequência uns trechos no instagram, eventualmente um poema pra ume amigue e quando compilei algo que tinha assim um jeito de livro chamei gente mais chegada pra ser leitorie beta eu aprendo muito com a leitura alheia seja acompanhando a entonação de alguém que me lê em sarau (fico besta) seja lendo atônita as anotações de leitura que um dos caras que escreveu o posfácio do meu livro, o taynnã de c. santos, muito generosamente dividiu comigo (cai por terra a fantasia da incomunicabilidade) seja ouvindo de uma amiga de infância que um poema específico é muito eu seja pensando que posso morrer feliz porque um amigo que não tem nenhuma relação com poesia bateu a mão na mesa bêbado e disse puta que pariu no dia em que eu li um poema meu pra ele enfim não fossem esses afetamentos não servia pra grandes coisas a gente escrever e eu espero conseguir retribuir na mesma moeda sempre tento
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
além da verve de revisora eu tenho uma verve de programadora que eu nunca realizei plenamente mas sempre tive uma relação bem próxima com tecnologia digital; meio heavy user mesmo num dia normal eu fico umas 10h-12h em frente a uma tela, não por escolha mas tudo são escolhas, luiza então eu acho que eu tenho uma relação próxima porém conflituosa com tecnologia quero aprender python e ao mesmo tempo quero sair das redes sociais e aprender a plantar mandioca entendo que nada muito furtífero vai sair desse oito-ou-oitenta e tento me guiar pela máxima de que o que não devo fazer é esquecer que todo esse rolê do virtual e do ~metaverso~ é uma construção e depende inclusive de uma infraestrutura física que é sim frágil e precária, vai saber, tubarões roendo cabos transoceânicos, labaredas solares varrendo a rede ou seja não é o ar que respiramos não foi deus que fez a não ser que indiretamente, enfim divago pensando na escrita, varia às vezes gosto muito de papel e lapiseira, mais que caneta ou lápis principalmente pra traduzir poesia, que é uma coisa que eu curto fazer e às vezes pra escrever, também mas no geral eu escrevo direto no digital: seja no computador, seja no celular no celular, não uso bloco de notas, como li várias pessoas aqui neste site falando que fazem uso o google docs mesmo e já vou fazendo um rolê meio diagramado usando os estilos e quebras de página e tals você tira a garota do design gráfico mas não tira o design gráfico da garota agora, o importante é perceber que cada suporte é um suporte e condiciona, sim, o texto tipo no papel a indentação é mais livre não tem um tab padrão, você pode brincar com a disposição das palavras na página sem pensar num grid regular e tal e não precisa ser times new roman 11 ou 12 é menos binário e depois você (ou alguém) que se vire para transpor pro digital ou bora de fac-símile etc. por outro lado eu gosto muito da falta de rasura no digital a ideia de que se você corta um verso e deleta ele some não fica ali riscado, a linha de baixo já sobe a não ser que você vá consultar o histórico de edição do documento mas aí também, né crítica genética de si mesme? então pra todos os efeitos tem uma volatilidade no digital que pra mim faz bem gosto dessa sensação de tomar uma decisão definitiva e cortar fora toda uma estrofe me sinto meio corajosa embora exista ctrl+z
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
eu não sei se o que faço é realmente escrita criativa tipo não fico esperando uma inspiração ou mesmo caçando um bom tema tenho a sensação de que o que escrevo é muito mais uma forma de me relacionar com o mundo do que uma forma de botar coisas novas no mundo embora essa relação se dê através do colocamento de coisas novas no mundo, não se pode negar mas assim, o impulso inicial tá mais pra um espanto diante do abismo do desconhecido do que com uma descoberta meio eureka ou mesmo de uma construção e nem sei se lido mesmo com ideias embora eu tenha uma mente muito lógica e opere muito mesmo no plano racional, não é isso que eu faço quando eu faço literatura inclusive literatura me parece uma forma de tentar escapar às armadilhas disso dessa hiperracionalidade na qual eu me enxergo muito cultivar alguma coisa que deixe aquilo que está fora da linguagem entrar pegar isso que entrou e dar uma forma que é linguagem, mas linguagem num estado nascente mais na chave do espanto, mesmo não muito contaminada pelo uso, pela cristalização das ideias uma forma que em geral é mais rítmica e imagética uma vez escrevi no posfácio do livro saqiyat, do lucas r. gaspar: o rio ainda ondula no pouso de uma mariposa que o criou em seu vôo — poema ao mesmo tempo criador e rastro do agenciamento que articula mariposa vôo pouso e rio — coincidindo tempos e elementos distintos — só é possível captar esse agenciamento no poema — só o poema é capaz de dar origem a ele — o olhar usual encadeia linearmente — vôo mariposa pouso — sem rio — sem coincidência — paralelo a esse olhar um olhar poético agencia vôo rio mariposa pouso ondulação — agenciando coincide tempos e espaços num silêncio denso — obriga a uma parada e uma mirada — poema e agenciamento se estranham e coexistem neste silêncio de que participamos mesmo na prosa é um pouco isso que eu busco, talvez de maneira menos concentrada mas deixando que algo se passe com os personagens, que algo que eu não controlo muito vá ditando o andar da carruagem tudo isso pra que algo possa ser descoberto (não exatamente por mim) se é que é essa a palavra soa como uma enorme pretensão tudo isso e é mas vejam bem o fato de eu dizer que tento não quer dizer que eu consiga acho que o hábito que eu tenho tentado cultivar é esse o da tentativa
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
eu escrevo desde muito, muito cedo primeira vez que eu escrevi um poema e olhei pra ele e pensei aí tem coisa eu tinha uns 10 anos lembro do poema até hoje no barco, um sonho no mangue, mata, árvore, caranguejo a vida corre solta como a brisa a vida é o mar e a areia no luar, uma vontade danada de pescar a lua claro que a memória deve ter modificado muito o texto ao longo dos 25 anos que hoje me separam dele mas, assim eu lembro e eu não lembro o que comi hoje no café da manhã então algo ali foi muito significativo pra mim e ficou como que marcado a ferro e fogo na minha sensibilidade e acho que a resposta à pergunta sobre o que mudou ao longo do tempo tem que necessariamente passar por uma tentativa de entender o que, ali, foi significativo pra mim falei ali em cima que eu curto traduzir poesia eu curto traduzir em geral (faço parte de um coletivo de tradução chamado e/y traduções, aliás cheguem mais, não precisa ter nenhuma experiência prévia, só vontade e não tem fins lucrativos, somos autogestionados e anticapitalistas) acho que, na verdade, mais do que ser texto, tudo é tradução e eu lembro que esse poeminha foi um exercício de tradução ~intersemiótica~ (a profa fez a gente ver um vídeo sobre os pescadores de caranguejo no mangue e pediu pra cada um escrever um poema) então ali eu tava traduzindo vídeo em poema e acho que essa transposição de linguagem essas duas coisas que eram a mesma e não e uma delas eu que tinha feito uou isso tudo deve ter me encantado (me encanta hoje) também lembro de achar foda a imagem da lua refletida na água e portanto passível de ser pescada e de como era relativamente fácil sugerir isso (esse absurdo) numa poesia lembro de ter desenhado o barco, a lua, o reflexo da lua na água, o moço com uma vara de pesca mas isso não me sugeria o mesmo que no luar, uma vontade danada de pescar a lua acho que ali eu entendia, sem dar esse nome, claro que as palavras tinham um potencial imagético que às vezes nem as próprias imagens têm estava inaugurado ali um mundo onde era possível pescar a lua e eu nem sabia o que era isso de pescar a lua ainda não sei e acho também que ali eu me encantei pelo ritmo tem um ritmo bom em mata árvore caranguejo (talvez eu fosse uma poeta melhor com 10 anos do que sou hoje) e lembro que aos 16 eu decorei boi morto do bandeira boi morto, boi morto, boi morto e que a quebra em boi morto, boi descomedido, boi espantosamente, boi morto, sem forma ou sentido com boi num verso e morto no outro revirava alguma coisa dentro de mim revira ainda e eu sei o poema todo até hoje convosco – altas, tão marginais! – fica a alma, a atônita alma mas divago acho que o que eu quero dizer é que talvez eu almeje hoje a esse trato fácil com a linguagem a esse espanto diante dela que eu tinha aos 10 anos talvez ainda aos 16 assim como a gente nasce sabendo ioga e aos poucos vai esquecendo no começo da vida a gente tem uma relação muito melhor e mais livre com a linguagem mas aí a escola, o vestibular, a família, nossas próprias e imensas pretensões vão botando rédea em tudo e quando você vê fodeu e aí toca tentar reconstruir essa relação, caçar um pouco essa criança perdida entendendo que na idade adulta isso é um abismo, um risco, uma treta ou, por outra, abrir mão e virar redatora publicitária ou analista de business intelligence mas, tentando responder mais diretamente, eu acho que o que mudou foi que hoje eu tenho menos imensas pretensões do que na época do writer’s block embora me pareça muito imensa a pretensão de usar a linguagem pra me relacionar melhor com as coisas e com as pessoas mas assim jabuti, nobel se vão achar bonito se eu tô dando continuidade à conversação da humanidade não tô ligando muito não e, bem relacionada a isso, tem a noção muito clichê de que feito é melhor do que perfeito então hoje eu também tenho bem menos receio de botar no mundo uma coisa manca mesmo porque entendo que as coisas que eu boto no mundo não são um mundo mas sim parte do mundo, e que só botando elas pra jogo e deixando elas intersectarem com as coisas que os outros botam no mundo é que eu vou viver de verdade (assim e na dança dos corpos, também adoro a dança dos corpos) e eu fico emocionada escrevendo isso porque acho que há um tempo eu até tinha chegado a estas conclusões mas na prática, é recente, tinta fresca mesmo enfim espero que no fim das minhas contas a única coisa de que eu possa me orgulhar seja a minha nudez, que tô aí cultivando e é por isso que se eu pudesse voltar no tempo e me encontrar criança, adolescente, mais jovem no meio do meu writer’s block etc. eu não teria conselho nenhum pra dar e eu talvez só dissesse algo como te prepara (sorrindo) ou nem isso, nada mesmo porque sou nerd o suficiente pra saber que voltar ao passado e intervir não pode dá ruim
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
eu quero escrever um livro sobre a minha infância indo pro sítio da minha avó no interior e sobre como ela pediu pra eu jogar uma cabeça de demônio (de plástico) na água da cachoeira. a princípio esse livro se chamaria vento no rosto, mas eu acho esse título péssimo. ele também seria sobre caminhões, street fighter e flores que soltam melzinho quero também escrever um livro sobre branquitude, herança e família. sobre meu bisavô branco poeta modernista propagandista de governo autoritário e propagador da noção de democracia racial e sobre minha avó loira poeta que nunca perdoou meu avô mulato (sic) por ele ter jogado fora por engano todos os livros de grego e latim dela. esse eu não sei se se chamaria napë ou moral da genealogia mas acho os dois títulos péssimos, de uma pretensão atroz eu queria reescrever um livro de contos que escrevi há uns treze anos e que quase ganhou um prêmio mas nunca publiquei, chamado solipsismo, mas não sei se ainda estou nessa vibe, graças a deus (caiu por terra a fantasia da incomunicabilidade). e também porque meus protagonistas eram todos homens e eu já tentei inverter ou neutralizar isso e fica muito esquisito e, assim, sou mulher pacas (hoje). e é claro que esse título é o pior do mundo eu tô escrevendo um livro que pra mim é erótico mas tô achando que as pessoas não vão achar muito isso, não. ele chamava poemas de amor e agora chama eras e eu tô começando a achar que não tenho muito talento pra dar título também quero muito escrever um dia sobre john frum e o culto à carga, mas é só uma pira por enquanto mas na verdade eu gosto mesmo é de fazer a muitas mãos me chama! e eu boto fé que tudo o que eu queria ler já existe pode ser que exista sem que eu saiba da existência pode ser que eu queira ler e nem saiba disso e na verdade nem vai dar tempo de ler tudo o que eu sei que existe e quero ler nessa vida curta e eu sou uma leitora super irregular não li e provavelmente não vou ler os clássicos leio tudo pela metade, enfim assim a pergunta é ótima e claro que eu poderia fazer um exercício de imaginação e ele seria válido mas atualmente eu ando esperando que o mundo me baste