Luiz Eduardo de Carvalho é escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não. Definitivamente, não! A grande maioria das manhãs são dedicadas ao sono, exceto, é claro, quando tenho algum compromisso que não consigo deixar para o período da tarde. Sou extremamente notívago, desde criança, e sempre sofri quando minha rotina envolvia atividades matinais. Meu ciclo circadiano sempre foi do avesso: durmo quando o sol aparece! Assim, minha única rotina matinal é a de escovar os dentes e ir para a cama!
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A madrugada, depois do movimento do dia e da noite, é o momento em que melhor desempenho minhas atividades. O silêncio, a tranquilidade, a ausência de demais estímulos disputando minha atenção formam o cenário perfeito para o mergulho alienado no espaço da ficção em que vivo imerso durante a criação. Nesse sentido, tal alheamento é igual ao que experimentamos quando lemos um livro envolvente e ficamos submersos na história sem contato sensível com o entorno.
Não tenho rituais de preparação para iniciar a escrita. Basta não estar com fome ou submetido a outras urgências fisiológicas que me sinto sempre apto a produzir. A única preparação que sempre me acompanha é a leitura, leio muito, mas isso ocorre em períodos alternados com os da escrita e não necessariamente como antecipação ou preparo para o ato em si.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Essa questão é muito variável. Como regra, imponho-me prazos para a consecução das obras a que me proponho criar. Desde 2015, dedico-me exclusivamente à produção literária e conquisto meu sustento prioritariamente dos prêmios a que concorro, assim, é fundamental respeitar os prazos de inscrição. Como há uma clara concentração de concursos entre os meses de março e outubro, só tenho um pouco mais de respiro entre meados de novembro e fim de janeiro, quando, para descansar, escrevo textos sem estar visando aos prêmios, porém disposto a criar um pouco de lastro para o próximo ciclo. Nesse sentido, sou quase um agricultor de palavras: há os dias de plantio, de colheita, de comercialização e os de agradecer e festejar. Considero cada ciclo como uma safra, tanto de livros e textos avulsos, quanto de premiações que me garantem a reserva financeira e, portanto, a tranquilidade para permanecer criando no período seguinte.
Quando estou nos períodos de prazos apertados, como agora, imponho-me metas diárias sim, com cotas de páginas a serem produzidas, afinal, tenho que, eu mesmo, ser meu patrão e cobrar-me a produção assídua e pontual. Além disso, é comum assumir outros compromissos profissionais, como a redação de prefácios, apresentações, resenhas; participações em coletâneas e a realização de revisões, organizações e padronizações de obras de terceiros, serviços sempre condicionados por prazos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Outra vez, a resposta depende da ocasião. Há obras a que me proponho sem nenhuma pesquisa, pois inteiramente derivada do meu repertório de conhecimentos já assimilados. Claro que, durante a criação, alguns dados pontuais acabam sendo verificados, ou na forma de acréscimos ou de confirmação daquilo a que nem sempre a memória dá garantias inequívocas.
Em outros processos, fico absolutamente dependente da pesquisa e, assim, alterno momentos de coleta de informações com os de redação ou, e isto é bastante comum, escrevo sem a informação exata e, depois, procedo à pesquisa para tornar mais precisas e verossímeis as cenas que crio.
É muito raro propor-me a uma pesquisa anterior para chegar ao branco do papel com todas as notas tomadas previamente. Acredito no fluxo e numa certa autonomia do processo criativo que, durante o ato, convida-nos a pequenos desvios, complementos ou variações que não foram previstas e que, muitas das vezes, exigem novas pesquisas pontuais. O contrário também acontece: durante a criação, surgem algumas pesquisas extras que trazem acréscimos muito bem-vindos à obra em construção.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A ansiedade, nesse contexto, é minha aliada. Quanto maior, mais me imponho a produção contínua e atenta a prazos, justamente a fim de me aliviar de seus sintomas. A extensão do projeto não influencia, pois, ao impor-me cotas mediadas por prazos, divido as expectativas e a derivada tensão. Por exemplo, ao fazer um romance, comprometo-me a escrever o trecho tal em um período estipulado e, assim, divido a ansiedade do processo todo em capítulos e considero cada pequeno trecho como um todo cumprido antes de partir para o seguinte. Nesses momentos, é comum aumentarem as horas diárias dedicadas à criação e, consequentemente, diminuir a dedicação a outras atividades correlatas ou de lazer. Isso sem dizer que, na maioria das vezes, o mergulho é tão intenso e prazeroso que o tempo deixa de concorrer como obstáculo, simplesmente abstraio sua imposição draconiana, entregue à fruição do momento da criação.
Travas constantemente afligem qualquer um que lide com processos criativos. Quando ocorrem, o remédio é não ceder às angustiantes armadilhas da procrastinação, pois adiar é sempre um processo impulsionado por determinantes inconscientes sobre os quais temos a consciência suficiente para nos causar crescente apreensão, recriminações e angústia. O jeito é assumir que não estamos prontos para iniciar ou prosseguir determinada lida, fazermos uma pausa assumida, distrairmo-nos com outras atividades, com o compromisso de, num determinado prazo pré-estipulado, voltar ao trabalho. Ficar sobre o muro é o pior, a solução é pulá-lo logo, desfrutar do que possa haver do outro lado e, a seguir, pulá-lo de volta para reassumir as tarefas que nos chamam. Mesmo que o passeio do outro lado seja curto e insuficiente, ele alimenta, ou alivia, muito mais o espírito aflito do que o simples vislumbre proporcionado pela posição sobre o muro. Ou seja, diante do impasse, é preferível permitirmo-nos vagabundear com classe a ficar fingindo que não nos entregamos ao adiamento do compromisso, afinal, como já nos ensinou o Domenico de Masi, o ócio pode ser bastante valioso à ação criativa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes: durante a escrita faço leituras recorrentes e, depois de tudo pronto, leio pelo menos três vezes, sempre fazendo ajustes que vão do estilo e da estrutura textual a simples correções ortográficas ou sintáticas. Sinto que, com isso, elimino mais de 90% dos problemas, mas restam, inexplicavelmente, pontos cegos. É incrível a facilidade que tenho para detectar essas questões em textos alheios e como não consigo enxergá-los em meus próprios.
Tenho alguns poucos leitores afetivos, os quais muito já contribuíram com o aperfeiçoamento do meu estilo que, balizado em suas considerações, tem se tornado mais claro e fluido. Careço, contudo, de leitores críticos capazes de percepções e proposituras estético-estruturais e também daqueles que encontram os errinhos escondidos. Escrever é, também nesse sentido, um ato solitário.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
De uns dez anos para cá, escrevo tudo no computador ou, quando estou longe dele, no bloco de notas do celular. Antes, quando me propunha a produzir textos literários, preferia estar diante da máquina de escrever a registrar os textos em cadernos, mas, naquela época, eu era apenas um diletante que sentia o chamado e o respondia com o ritual de dispor-me diante da Olivetti do meu pai, depositar o sulfite no rolo e entregar-me ao som metálico das teclas estalando para borrar de tinta o alvo do papel. Uma curiosidade: a minha primeira resenha escrevi a giz, no quadro negro de uma sala de aula no antigo prédio da ESPM, no Bixiga, para o livro A Quarta Parede, do meu querido professor de então, Mário Chamie. Depois, quando me tornei professor, lembro-me de ter anotado alguns poemas na lousa, durante períodos vacantes das aulas. Gostava da facilidade que era apagar e reescrever com giz, coisa que só foi superada pela tecla del dos computadores, anos mais tarde.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ah, como eu gostaria de saber de onde vem minhas ideias, principalmente as melhores, pois, assim, poderia sempre recorrer a esselocus criativo para pegar, à vontade, mais e mais delas! Creio, entretanto, que a maioria cria-se a partir do meu contato com outras obras artísticas. Leio muito, sempre frequentei teatro e cinema (e filmes na TV), ouço música durante muitas horas diárias, muitas vezes com atenção exclusiva, mas tenho sempre uma de fundo, principalmente instrumental, frequento exposições de artes plásticas, adoro ópera, arquitetura, dança. Sempre estive ligado às artes e à cultura. Fui editor dessa seção em veículos jornalísticos, onde cobria o mainstream e as políticas públicas de cultura; fui gestor cultural público, privado e no terceiro setor; fui professor de Teatro, Redação e de História da Arte. Tudo isso, acrescido dos amigos que colecionei em todos esses cenários, cada qual com imensas contribuições, tornou-se um caldo muito nutritivo e tão promíscuo que é impossível buscar a pureza de uma ideia que não venha contaminada por muitas outras.
Como todas as atividades citadas sempre me proporcionaram imenso prazer, sempre as encarei como entretenimento, como momentos de puro deleite do dolce far niente. Novamente evoco de Masi, com sua proposta de ócio criativo. Assim, quando não estou escrevendo e, mesmo antes, quando não estava às voltas com outras tarefas profissionais, fico fazendo nada diante de um livro, de um palco, de uma tela, de corredores de museus e galerias, sob a lona de um circo ou simplesmente na praça, conversando com artistas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos, livrei-me um pouco da afetação e das pretensões. Julgava que escrever bem era escrever difícil, de forma rebuscada, com uma sintaxe recortada e repleta de degraus. Aos poucos, fui assumindo um estilo mais linear, com menos entrecortes, menos intercalações. Deixei de consultar o léxico a todo instante em busca de sinônimos mais refinados, mas nunca descuidei de conhecer novas palavras para naturalmente incorporá-las ao meu vocabulário corrente. A escolha dos temas sofreu o mesmo tipo de depuração. Minha maior luta é esta: tornar-me mais simples para mim mesmo e para os leitores sem, no entanto, banalizar a forma ou os conteúdos do que escrevo.
Se pudesse voltar, diria: “eu sei de coisas que você ainda não sabe, mas não as direi, pois jamais lhe roubaria o imenso prazer da realização de as encontrar por conta própria. Escreva, escreva, escreva, aprenda com cada erro, com cada frustração, não tenha pressa quanto aos resultados, não queira louros antes dos méritos, não se preocupe com a chegada: frua o trajeto. Nenhum conhecimento substitui o aprendizado”.
Foi assim comigo. Não me envergonho da vergonha que tenho de textos passados, pois sei que eram os primeiros passos de uma caminhada que nunca termina. Mais tarde, também não me envergonharei da vergonha dos textos de hoje. Tudo é processo. Por aceitar isso com naturalidade e rir de coisas que fiz, é que sinto a continuidade do aprendizado que jamais terminará, pois o desconhecido é infinito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São tantos os projetos ainda por se cumprir. Que o tempo seja generoso comigo! Quero muito escrever autoficção a respeito de muitas experiências que experimentei nos bancos e depois nos tablados das salas de aula, nas redações jornalísticas, nas cercanias dos palcos, nos bastidores da política… Tantas conversas geniais em salas de professores, no cafezinho da redação, nas coxias dos teatros, em ateliês de amigos, na praça e em botecos… Tanta gente interessante que merece figurar como personagens de ficções para que resista um resíduo de suas identidades únicas, de seus conhecimentos irresgatáveis, de suas expressões brilhantes. Tenho tanta memória para aliar à imaginação!
Adoraria ler aquele livro escrito a quatro mãos pelo Jorge Luís Borges e pelo Umberto Eco, prefaciado pelo Eduardo Galeano, acerca de um livro meu que ainda não foi escrito a respeito de uma América Latina e de um Brasil enfim senhores de suas identidades feitas de diversidade.