Luísa Fresta é escritora e crítica de cinema.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia começa de uma forma assustadoramente banal. Para além dos gestos automáticos de higiene pessoal, tenho o hábito de desligar o despertador do telemóvel antes dele tocar e verificar alguma mensagem matutina. Em seguida bebo um copo de água. Depois do pequeno-almoço verifico o meu e-mail para fazer a necessária triagem entre o importante, o urgente e o supérfluo.
Como os filtros anti-spam não são perfeitos, acontece muitas vezes encontrar mensagens do meu interesse neste espaço. Por outro lado, embora tenha um conjunto de tarefas programadas com antecedência, reservo 10 a 20% do tempo para imprevistos, que por vezes se expandem perigosamente para horários já alocados à agenda “normal”.
Depois há, necessariamente, uma rotina de escrita/leitura que se prolonga pelo dia todo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou ave noturna, sem dúvida. O meu espírito está muito mais desperto e ativo desde o final da tarde até perto da meia-noite. Entre as 18h00 e as 24h00 consigo produzir qualitativa e quantitativamente de uma forma muito mais intensa. Também estou mais atenta aos erros, sou mais criativa e sinto, claramente, um pico de energia.
Se existe um ritual de preparação, ele começa por vezes meses antes de sair o texto. Há um tema que me ocorre, uma ideia, um episódio interessante, algo sobre o qual eu gostava de escrever; nesse momento eu tomo nota dessa ideia sob forma de tópico, meia dúzia de palavras-chave. Esse tópico, não raras vezes, transforma-se em título. Ou seja, quando eu começo a escrever, refiro-me à ficção, já tenho uma ideia do que quero escrever, a pesquisa está feita (se for caso disso), incluindo aqueles pontos fulcrais, palavras, expressões ou ideias que não podem deixar de ser abordadas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quase todos os dias escrevo, o que não quer dizer que tudo seja publicável. O que é sagrado para mim é apenas isto: ler. Coisa que faço todos os dias. Mas não me imponho uma meta de escrita diária: tenho, isso sim, uma ideia do tempo de que disponho para afetar a um determinado projeto de escrita.
Por exemplo, imagine que eu pretenda escrever uma série de poemas sobre os insetos mais comuns da região onde vivo. Então eu planeio uma fase para pesquisa, incluindo trabalho de campo, se for necessário, com fotografias ou desenhos, e depois preciso de começar a escrever realmente os textos até uma data que defino como meta.
Também penso no quantitativo: se a ideia for escrever um livro com esse material, de quantos poemas vou precisar? Isso não significa que escreva ao quilo (ou a metro), mas apenas que gosto de ter uma ideia clara do caminho que pretendo seguir.
Durante a viagem posso alterar um pouco a rota, fazer adaptações, até posso constatar que os poemas não me estão a proporcionar a satisfação que eu almejava e então é necessário saber recuar para melhor armar o salto.
Nessa planificação também há obrigatoriamente um tempo para revisão, a auto revisão e a revisão externa.
Para responder concretamente à sua pergunta, embora nunca me afaste muito da escrita, tenho períodos em que escrevo de forma mais febril, compulsiva, frenética e isso pode representar semanas ou meses de trabalho intenso de escrita intercalados com pequenos períodos em que me dedico a outras tarefas conexas como revisão e tradução, contacto com “o mundo exterior”, uma vez que escrever é um processo íntimo e solitário.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Interessante questão. Esse processo nem sempre é fácil. Por um lado, queremos conferir credibilidade à ficção, assente sobre a pesquisa necessária em cada caso, mas por outro lado a ficcionista quer soltar-se das amarras e voar livremente, esquecendo-se, ocasionalmente, do seu compromisso intrínseco com a realidade. Em maior ou menor grau, existe sempre algo que nos remete para o mundo real e precisamos de uma certa dose de veracidade para criarmos as narrativas, mesmo as mais fantasiosas ou fantásticas. Comigo costuma ser esse o processo, mas não significa que seja sempre assim.
Então, desse conflito saudável entre o real e o imaginado, nasce o conto (em prosa de ficção, que é o que mais tenho escrito).
Normalmente deixo o meu lado mais criativo escrever como sai, de forma espontânea, e depois procedo aos necessários ajustes e correções em função da pesquisa prévia, das notas recolhidas anteriormente.
Não posso escrever cada parágrafo policiando-me, senão torna-se uma tortura e a escrita não flui, parece que existe um travão interno. Porém, no caso de crítica de cinema ou de resenhas de livros já consigo escrever de uma maneira mais estruturada, com rigor e simplicidade, esforçando-me por ser clara e cirúrgica, ainda que a minha marca esteja sempre lá. Não somos robots.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Até ao momento ainda não senti o peso desses bloqueios de escrita, a não ser de forma ténue e breve, mas com certeza que virei a conhecê-los.
Há alturas em que escrevo de forma mais fluida, outras nem tanto, por isso preciso de fazer uma revisão atenta para ver o que posso melhorar no texto, se não está sem graça, cheio de banalidades, como está a coerência e o ritmo, se não existe a possibilidade de estar a ser mal interpretada; e também se porventura existe uma repetição de ideias em relação a narrativas minhas anteriores. Isso pode acontecer e é uma situação relativamente frequente, desagradável, em relação à qual é preciso estar-se atento.
Existe realmente o medo de não corresponder às expetativas. Mas sobretudo em relação às minhas próprias expetativas, pois a minha autoexigência é elevada (consigo ser bastante dura comigo mesma).
Mas não sei se os leitores têm expetativas desmesuradas em relação ao que escrevo. Ou seja, talvez ainda tenha alguma margem de manobra (margem para errar, para ser redundante ou repetitiva) e as pessoas – poucas mas fieis – que me leem, estejam recetivas em relação a vários temas e abordagens. De mim esperam, acredito, uma escrita clara, com poucos floreados e sintética. No mais posso variar e reinventar-me, até porque eu própria preciso de me divertir enquanto escrevo.
Quanto a projetos longos, não sei se está a pensar em novela ou romance. Se for o caso, eu nunca escrevi nenhum(a) (em prosa escrevo sobretudo contos, como mencionei mais acima). Mas no dia em que tentar fazê-lo já antecipo a ansiedade, que será, espero, minimizada, com uma boa fase de preparação. Posso imaginar a importância da disciplina, pesquisa aprofundada, constância, criatividade, rigor e atenção aos detalhes que implica a escrita de uma narrativa longa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No mínimo duas vezes. Idealmente há uma terceira revisão passado algum tempo. Sim, mostro os meus trabalhos a pessoas do meu círculo familiar ou muito próximas, que são leitoras muito rodadas, frontais e exigentes. E depois são sempre vistos e comentados pela minha editora, claro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador. Por vezes tomo algumas notas no telemóvel mas escrever textos é uma coisa que só faço no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias surgem sobretudo do quotidiano. Da família, do amor, das conversas com amigos, de locais próximos ou distantes, de episódios caricatos, da pobreza escondida, da personagem fascinante que se oculta na vida pacata do bairro. Por exemplo.
Mas também surgem da fantasia, do sonho, da revolta perante as injustiças. Da hipocrisia social, dos hábitos perpetuados em nome das tradições, do que fazemos sem questionar. Ou seja, as ideias surgem de qualquer pequeno detalhe para o qual um dia decidimos olhar com atenção. De uma conversa ouvida no Metro, de uma consulta hospitalar, de uma memória de infância. Os hábitos que cultivo para treinar a criatividade são muito simples: viver plenamente, estar atenta aos outros, ler bastante, ver bons filmes e documentários. Na verdade, não estou a ser absolutamente sincera pois esses hábitos não são cultivados com um fim específico; tenho-os desde sempre, pelo menos na fase adulta. Em todo o caso, funcionam acessoriamente como um treino para o meu trabalho, que visa manter o cérebro oleado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Os meus primeiros textos talvez fossem mais ingénuos e espontâneos. Não sei se tinham menos qualidade conceptual, mas a forma era mais frágil. Talvez tivessem um tom demasiado intimista, quase como um diário. Enfim, eram mais infantis e rudimentares. Se voltasse a esse tempo faria o mesmo, imagino, pois esse processo foi necessário para escrever como escrevo hoje assim como a fase atual é essencial para edificar os processos de escrita futuros. Cada passo que damos deixa uma marca na terra, mas é também um salto para o futuro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Talvez um dia venha a escrever uma novela. Se me sentir madura para isso e se tiver algo de concreto e relevante a relatar. Veremos. Em todo o caso, tenciono manter uma presença assídua naquilo que eu chamo literatura familiar (uma noção mais alargada do que a mera literatura infantojuvenil), na poesia e no conto, para além de continuar a escrever resenhas e, de forma agora menos frequente, artigos de opinião sobre cinema e crónicas.
Eu tenho lido tão bons livros desde a infância, livros tão diversificados, que me custa imaginar um tema específico sobre o qual gostasse de ler e que ainda não me tenha passado pelas mãos. Mas a verdade é que de vez em quando me cai no colo algum livro que me preenche como leitora e tenho sempre uma lista de 3 ou 4 que quero ler a curto/ médio prazo. Sobretudo romances.
* Entrevista publicada em 10 de julho de 2022.