Luísa Demétrio Raposo é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O meu dia começa sempre inesperadamente, um som aberto, interno, seco e espalhado. Eu durmo poucas horas, 5 ou 6 no máximo por noite. Acordo, abro a janela, contemplo o céu e tudo o que ele faz, sempre.
Todos os dias, é um ritual, os astros reflectem a força e em que condição se encontra o meu interior.
Tenho também o hábito há muitos anos, ouvir Bach ao pequeno-almoço, sempre.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não tenho horas para escrever. Eu não gosto de horas, para nada ou coisa alguma, horas são açaimes.
Textos, poemas manifestam-se ruidosamente na mente, são explosões a acontecer. Por vezes sou atropelada por elas, velozes, sempre atrás de mim, de rua em rua.
Escrevo muito durante a noite, o escuro é o grande companheiro de escrita, é através dele que eu separo a mulher da carne, e o Ser da escrita, e tudo é uno. Uma só energia. Transcender. E eu, ali, sou a totalidade, o negro calvo das palavras.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu não tenho metas, nunca tive. Eu escrevo para poder matar a mulher e a carne. Eu escrevo para poder desaparecer, para Ser. Eu sou a palavra, o fogo, a minha alma habita cada uma delas, e todas juntas arrumam e desarrumam um corpo, o meu.
Separar a mulher da escrita, desaparecer sem recurso a qualquer tipo de piedade.
Sangrar. A carne entre a tempestade. Os relâmpagos colados à testa, uma metade contra a outra.
Eu escrevo todos os dias. Em casa, todos os dias. Fora de casa, todos os dias. No café, por vezes. No local de trabalho, todos os dias, durante a hora de almoço, todos os dias nos intervalos, todos os dias, em viagens sempre, etc etc tenho sempre sebentas comigo, todos os dias. Na minha casa em todas as divisões existe uma. Escrever. Escrever. Todos os dias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tudo, tudo, tudo, o que escrevo transmite o meu caos. Há em tudo o que escrevo a explosão.
Há palavras onde é mais acentuada a escuridão, e em todas emanam paragens violentas tal como sugere a ardência e a fome o exige, e eu só me alimento do que inflama e arde. E sou eu, é tão evidente. Um texto. A massa brava, abrasa-mo pó, sublimando criaturas, animais, larga em fronte alta. Quatro patas e duas, pousadas. Um tudo-nada, definir contorno entre a mão livre a e carne, onde a baba se propaga, e o selvagem amanhã pelos golpes em abandono. Onde tudo cresce pouco ou nada comum.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca penso nisso.
Os meu medos são ridículos (como todos os medos) e não são ligados à escrita.
Eu jamais irei corresponder às expectativas de alguém. Em explosão tudo é possível, tudo.
É a desordem e continuar a arder.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Normalmente uma vez.
Nem sempre, gosto sempre de reservar o melhor para a gaveta, para minha leitura pessoal. Não partilho muito o que escrevo, principalmente desde há uns tempos. É muito sangue a jorra pela raiz, demasiada violência. (risos)
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu escrevo sempre primeiramente à mão. Depois escrevo no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei responder. Talvez do Infinito. Do útero. Do sexo. Do quente. Do fluxo do sangue. Do bater contrariado. Do centro. Da tempestade. Não sei responder concretamente.
Eu trabalho muito em oficina a parte sensorial, estimulando os sentidos. A energia sexual também é geradora e a grande criadora do que crio enquanto artista.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu mudei, nós mudamos diariamente e em consequência o que escrevo foi acompanhando essa metamorfose. Tornei-me independente, publico o que quero, quando quero e como eu quero, e isso enquanto escrita transmite-me um poder infinito sobre a minha energia e sobre as minhas obras. Tudo está ao meu comando, isso é a descoberta do século, pessoalmente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sei responder, porque nunca penso nada a longo prazo. O que é hoje, e quem em conhece sabe que é assim, já não existe amanhã. É impossível responder a essa pergunta.
Eu gostaria de ler livros sem o costume brando da autopsia.
Livros que fodem verdadeiramente.
Mas, no fundo é normal assim acontecer, a orfandade não tem lugar nem pátria. Escrever esmaga tudo em função do obsessivo e do insuportável. O fogo, lentamente executa tudo à nossa volta.