Luís Fernando Amâncio é colunista no site Digestivo Cultural e autor de Contos de Autoajuda para Pessoas Excessivamente Otimistas (LiteraCidade, 2014).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meus dias como todo cidadão honrado e cumpridor de seus deveres: amaldiçoando o despertador. Amaldiçoo ele com todas as forças, que, junto com minhas faculdades mentais, não serão muitas nas próximas duas horas. Não lido bem com acordar cedo. Por outro lado, também não me sinto bem quando acordo tarde. Em resumo, meu problema é acordar, mesmo.
Sou servidor público, então tenho, sim, uma rotina que é, depois de enrolar o máximo que posso, me embrulhar às pressas em alguma roupa, engolir um desjejum e fazer uma caminhada até o trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O momento de ouro para minha escrita começa às 18h43 e vai até às 20:37. Aproximadamente. Não sei se é algum alinhamento astrológico, numerologia, brecha divina… Só sei que, se eu estiver devidamente turbinado por café, nessa faixa de horário minha cabeça fervilha, os dedos deslizam alucinados pelo teclado. Entretanto, geralmente estou cansado demais nesse horário. Ou só distraído, mesmo. Então, a magia só acontece a cada ano bissexto.
Não sou muito disciplinado, passo longe de rituais ou rotinas na escrita. Mas algo que me ajuda é estar mais isolado, sem ninguém para me abordar com as abomináveis perguntas tipo “o que você está fazendo?” ou “tá escrevendo o quê?”. Abordar um escritor com essas questões, no meio do trabalho, deveria ser crime. Raramente sei o que estou fazendo quando estou diante de uma página do Word, uma pergunta dessas me deixa bastante desnorteado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Em períodos isolados. Lamentavelmente, como disse anteriormente, não tenho muita disciplina com a escrita. O fato de me dedicar mais a textos curtos, contos e crônicas, favorece isso. Terminado o texto, é partir para o próximo projeto. Que pode sempre esperar um pouco.
A situação foi diferente quando eu fazia mestrado e escrevia textos acadêmicos. Aí, sim, precisava de uma rotina e, sobretudo, de metas. Porque a gente não pode se dar ao luxo de não cumprir prazos, ter produtividade, nessa situação. Mas, atualmente, só frequento as academias de ginástica, mesmo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando escrevo um texto de maior fôlego, notas são importantes. Gosto de esboçar tópicos, uma sequência de situações para serem desenvolvidas pela narrativa. É muito útil fazer uma estrutura do texto que ainda não veio ao mundo. Isso é quando se tem mais tempo, claro. A ansiedade para produzir um texto às vezes me faz pular esse processo, aí é abrir o Word, estalar os dedos e partir para a escrita, sem maiores delongas.
Atualmente, meu processo de escrita tem sido um tanto caótico: no horário de almoço, com o estômago clamando por comida. É a brecha mais segura que tenho. Pois se deixo para escrever quando chegar em casa, bom, raramente vai acontecer. Os afazeres domésticos não são fáceis de se domar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é como o demônio, uma legião. Aparece de várias formas. Eu me saboto demais, sei disso. É aquela história, você vai escrever, mas quer dar uma olhada nas notícias antes. Pronto, sem querer está metido numa armadilha complexa de links que vão puxando outros links e curiosidades de utilidade duvidosa. De repente, você descobriu que a Austrália já teve um mamífero chamado Tigre-da-Tasmânia que foi extinto no início do século XX, mas como seu texto não é sobre ele, ainda não saiu do primeiro parágrafo.
É a procrastinação que te leva a essas armadilhas, e também o medo e, sobretudo, a ansiedade de não dar conta de conceber o texto. Escrever não é um mar de rosas, embora você possa sair arranhado no fim do processo. Mas com concentração, vontade e sabendo que você poderá tirar suas dúvidas sobre a fauna da Oceania mais tarde, dá pra superar esses riscos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar é importante. Não sei precisar quantas vezes faço, pois chega uma hora que a leitura fica até viciada, então é preciso dar um tempo ao texto antes de ler novamente.
Minha irmã, Angélica Amâncio, também é escritora, inclusive já participou desse projeto. A interlocução com ela é algo muito produtivo, ainda que tenhamos estilos diferente. Não trocamos textos o tempo todo, antes de publicar um livro, certamente vou pedir a opinião dela sobre a obra.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É engraçado lembrar, mas até o começo da graduação eu me recusava a escrever diretamente no computador. Sentia-me travado, como se computador e criatividade não combinassem. Escrevia tudo no papel, à lápis. Só depois digitava no computador. Chegou uma hora, claro, que percebi que estava fazendo trabalho em dobro. Então, condicionei-me a escrever no computador e não parei mais. Ainda gosto do papel, sobretudo para escrever notas. Mas o texto surge no computador.
Minha relação com as tecnologias é boa, mas sinto que, pela idade, já estou um pouco ultrapassado. A geração de escritores que está vindo já deve escrever diretamente no celular. Isso eu já não consigo. Nem e-mail eu escrevo pelo celular, pra ser sincero.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acredito que é fundamental, para ter ideias, estar com a mente ativa. Ver bons filmes, séries, ler livros que te provoquem. A criatividade vem da gente, é claro, mas é bom ter uma fagulha para iniciar o incêndio. O que comumente vem de uma cena que você observa na rua, uma notícia no jornal, uma história que o seu vizinho sem noção está contando à plenos pulmões e você, sem opção, escuta pela parede.
Às vezes, entretanto, uma ideia surge de onde não deveria. Eu trabalho em um almoxarifado, então, não raramente, tenho uma ideia enquanto estou contando o estoque de um item. Pode ser bom para a literatura, mas é péssimo para o trabalho, pois eu tenho que recomeçar conta. Aí, anoto a ideia em um papel e, na hora do almoço, desenvolvo ela um pouco mais.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
É possível que eu tenha ficado um pouco mais cuidadoso com a questão da revisão. Ainda não sou um revisor exemplar, longe disso. Mas é que antes eu tinha preguiça, mesmo. Nunca gostei de ler textos meus. Não sei se é comum, mas eu não gosto. É, inclusive, uma curiosidade minha: escritores leem a si mesmos, músicos ouvem suas próprias músicas? Então, não é algo que me dê prazer, mas revisar é necessário, ler seus próprios textos é um ótimo exercício, inclusive.
Gosto dos meus primeiros textos como registros de uma época. Sou historiador, é importante para mim guardar a memória daquilo que já se transformou. Então, eu não diria nada para mim se voltasse aos meus primeiros textos. Pois, se dissesse algo, seria: “deixa assim, com o tempo você vai melhorar”. Mas aí meu eu do passado responderia, aflito, “como assim, você tá dizendo que está ruim? O quê eu preciso mudar?”. Então, é melhor não dizer nada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Olha, estou respondendo a essa questão no meio do embate eleitoral mais tenso que já vi. Portanto, hoje, o projeto que eu gostaria de fazer é o de um sucesso de crítica e, sobretudo, de público, que possa financiar meu exílio. Recebi esse questionário em 2018, mas tenho medo de que ele já seja publicado em 1964.
Infelizmente, ainda não me movi na direção desse sucesso. De forma que, seguindo a resposta, o livro que eu gostaria de ler é o manual que vai me ensinar e me inspirar nessa tarefa.
Mas, falando sério, tenho vontade de escrever um romance. Inclusive pelo alcance, mesmo. Tenho a impressão de que muita gente não leva livro de contos ou de crônicas à sério, por mais ultrapassado que esse pensamento seja. O problema é que só tenho ideias para, estourando, três laudas de texto.