Lucilene Machado é professora da UFMS, doutora em Estudos literários pela UNESP.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho muito apreço pela palavra rotina. Faço o que o meu corpo quer. Um dia levanto cedo, outro não; um dia faço ginástica, outro não; um dia tomo aquele café, em outro faço jejum… sou movida por meu estado de espírito, que nunca é o mesmo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu escrevo na hora que tenho tempo. Às vezes de manhã, outras pela noite, antes do banho, depois do banho… em muitas ocasiões quando me falta o sono… tenho um ritual esquisito que é o de ler poesias antes. A poesia me leva para o interior de mim, me ajuda a acessar uma parte mais profunda do ser, me livra das circunstâncias externas, verticaliza o instante da invenção. Não tenho necessidade de uma ambiência sofisticada, mas preciso do meu espaço, do meu silêncio, do meu cantinho. Morro de inveja das pessoas que dizem que escrevem no aeroporto… como eu queria! No aeroporto, como nos lugares que há uma proliferação de pessoas, eu observo, eu penso, eu reflito, tenho ideias, mas escrever jamais. É como se eu tivesse perdendo os fenômenos ilustrativos se apresentando diante de mim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Por conta do meu trabalho (sou professora em uma universidade), apenas por isso, escrevo em períodos concentrados. Às vezes passo uma semana sem escrever nada no computador, mas a minha cabeça não para. No pensamento eu pratico o que eu chamo de primeira instância, onde vou fazendo relações do tema com as possíveis situações, criando analogias… Até a parte estrutural pode começar nesse período. Já redigi parágrafos inteiros enquanto lavo louças. Na minha cabeça vou deslocando as vírgulas, substituindo um verbo, afinando um adjetivo, carregando semanticamente uma frase… às vezes consigo uma frase perfeita, mas se não paro para escrever, logo esqueço. A cabeça de um escritor é assim, imagino que não seja só a minha, estamos possuídos por uma espécie de compulsão fabuladora. Meus amigos mais próximos já percebem quando estou nesse processo interior de escrita. Dizem que eu fixo o olhar num ponto e me calo. Eles têm razão. A realidade interna vai se potencializando e eu embarco numa fantasia, na possibilidade daquilo se transformar em texto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu modelo de escrita não me exige grandes pesquisas, aliás eu sou uma preguiçosa para pesquisar quando escrevo literatura. Eu já faço pesquisas para a escrita acadêmica, para os artigos e ensaios, de modo que na literatura eu deixo jorrar. Às vezes me ocorre uma frase, mas se não sei a quem atribuir a autoria, coloco mesmo no texto que não me lembro e pronto.
O meu movimento se dá, como já disse, entre as instâncias mentais e composicionais. A segunda instância é estruturação do texto que já foi mentalizado em uma primeira. Confesso que muitas vezes a coisa não sai como prevista, a composição trai o imaginário com o aparato prático durante concretização do texto. A parte semiótica, das representações e dos símbolos, acaba por trazer novos sentidos, novas possibilidades para a leitura e mobilizando outras esferas da significação. A linguagem nem sempre consegue traduzir o que você estava pensando. As metáforas, as metonímias, o próprio ritmo – quando você precisa substituir palavras – acabam driblando a linha reta anteriormente plasmada. Quem exercita a escrita percebe que captar a essência, assumir uma criação via linguagem não é fácil. A consciência mais profunda acaba resvalando nos braços da estética e na captação do belo, o que me parece bastante normal, o processo de invenção não está isento do processo de composição.
Hoje sou consciente que lidar com a palavra, embora se tenha como matéria prima fantasias e subjetividades, é algo racional, sobretudo porque o escritor precisa promover revoluções para tornar artístico o seu produto cultural. Precisa fugir das palavras que se oferecem na mesma sequência, elas estão sujeitas a se agruparem segundo suas afinidades particulares e nos fadarem a um projeto esperado, pré-concebido, sem muita surpresa para o leitor. Drummond disse certa vez: “não rimarei a palavra sono com a incorrespondente outono/ rimarei com a palavra carne/ ou qualquer outra”. Por outro lado, vc precisa construir um espaço para que o leitor se sinta em pé de igualdade contigo e que ele seja tentado a crer que também poderia realizar o mesmo trabalho sem muito esforço. Esses desafios me atraem muito e me levam a exercer esse trabalho de dizer coisas comuns de um jeito sofisticado, sem parecer pernóstico. Não sei se já consigo fazer isso bem, mas é esse o meu exercício, é essa a minha tentativa artística.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrever é lidar com as travas da escrita o tempo todo. O mundo é complexo, dificílimo e o trabalho de representá-lo, expressá-lo, transubstanciá-lo por meio da linguagem é uma responsabilidade muito grande. O ato da criação literária consiste numa tomada de atitude que vai além das que praticamos cotidianamente. O caminho fácil vai produzir mesmice, vai ser repetição e mediocridade.
Quanto ao medo, a arte está ligada à parte criativa, intuitiva, então eu tenho de ousar, isso é certo, e ousar é sempre perigoso. Os instrumentos para fabricar a arte estão atrelados à ousadia e na escrita precisamos encontrar a medida exata. Aí entra uma coisa que se chama autocensura, do tipo “o que vão pensar de mim se me atrevo a escrever isso?” a autocensura é algo que nos impede ir adiante, impede a nossa aventura de lançar-se no escuro, cerceia a nossa criatividade, precisamos estar muito atento para perceber a medida certa das coisas. O medo, hoje, já é algo com o qual lido bem, mas me lembro que quando escrevia para um jornal, há quase 20 anos, eu perdia o sono no dia anterior à publicação da crônica semanal. Meu medo era como as pessoas julgariam o meu arcabouço de conhecimento, porque quando você escreve você se expõe. O seu texto é a sua representação. Por meio dele é possível saber os livros que você lê, as músicas que você ouve, os filmes que você vê… porque é esse arquivo interno que utilizamos para significar os sentidos que captamos, a realidade que apreendemos. Cada autor constrói o seu mundo ficcional a partir das voltas e revoltas de sua experiência pessoal. Significantes e significados emergem de nossa inteligência e, “casualmente” nossa inteligência é linguística. Então, tudo está conectado com o nosso arquivo de linguagem, o que inclui leituras, memórias, vivências. Aí vamos deixando nossas marcas. É por meio de nossa linguagem se estudam os nossos textos e por eles também somos ressignificados e isso, sim, dá muito medo. No fundo sabemos que escrever é como viver, uma sábia ou tola mescla de determinismo e invenção. Essa é a grande metáfora da vida. Às vezes queremos mudar alguma coisa para que ela fique mais emocionante, mas a linguagem nos impõe suas estruturas fixas irremediáveis, suas travas, e nos limitamos a seguir suas rotinas, caímos no automatismo apático. Assim também é a literatura. Cada vez que produzimos uma frase inesperada, inédita, não mecanizada estamos alterando luxuosamente as leis da física, da psicologia ou de qualquer coisa que rege o automatismo.
Quanto aos projetos longos, sim, é complicado para nós que temos de trabalhar para se sustentar e não sobra muito tempo para desenvolver um projeto amplo que exigiria estudos, pesquisas etc. como é o caso de um romance. Tenho pelo menos três iniciados e não consigo levar avante exatamente pela falta de tempo. São projetos que necessitam continuidade, não dá para escrever um pouquinho hoje, outro no próximo mês…. razão pelo que acabam parados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca sinto que estão prontos. Chega um momento que decido publicá-los e só. Mas se os leio, mesmo já em livros, encontro algo a ser melhorado, a ser modificado… encontro algo do que me arrepender… é perverso isso.
Eu sempre gosto de mostrar a alguém, mas nem sempre há alguém disposto a essa leitura crítica. As redes sociais me ajudam nisso, dá um feedback, mas não é uma leitura crítica, em geral são pessoas que gostam de você e querem que você desponte no eixo nacional, querem te estimular, o que também aprecio, claro, todos queremos algum estímulo, algum aval para seguir produzindo. Mas ter alguém com uma leitura mais exigente é essencial. Eu tenho uma amiga que exerce esse papel de primeira leitora. É alguém em quem confio e tem liberdade de me apontar qualquer coisa que estiver fora de contexto, mas às vezes não quero sobrecarregá-la com essa carga de responsabilidade, porque também tem seus compromissos e afazeres. Mas, boa parte dos textos são lidos por ela sim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O mais natural é escrever no computador. Mas gosto de escrever à mão. Escrever na agenda, escrever nas paredes da casa… depois “passo a limpo” para um arquivo digital que se chama “anotações” para eu recorrer quando precisar.
Minha relação com a tecnologia é de dependência, eu diria. Preciso dela para me comunicar, para me relacionar, para trocar ideias, fazer projetos, ler… a tecnologia hoje é meu canal de contato com o mundo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias não vêm da inspiração, mas de um lugar incômodo que eu não sei definir. Eu julgo que advêm de zonas profundas. Às vezes tenho a impressão que a força construtiva não foi cognitiva, apenas intuitiva. Que as garras invisíveis das frases vão absorvendo o sulco dos movimentos sociais e filosóficos humanos para que o texto cumpra sua função local ou universal. Um tanto incongruente. Em outras, torna-se bem difícil essa relação. O discurso tem que encontrar o seu lugar para que se apresente ao mundo e dentro desse mundo, às pessoas que nele habitam. Nunca é igual. Cada composição apresenta uma dificuldade diferente, a linguagem é inefável, é preciso carregá-la de significados, de lucidez, de insanidade… construir jogos, metaforizá-la para a construção de um texto o menos óbvio possível.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Bem, mudei eu, mudou o texto, mudou o processo… tudo muda e é mister que seja assim. À medida que cresce o seu “arquivo literário” interior por conta das frequentes leituras, o seu universo de escrita também é ampliado, a sua capacidade de penetrar mais profundamente nas questões humanas também. Você aprende a movimentar melhor essa engrenagem da construção dos sentidos que as relações intertextuais estabelecem dentro do texto de forma direta ou indireta, as malhas da construção poética hoje são muito mais visíveis para mim, estão melhor desenhadas. Hoje também tenho menos vícios de linguagens. Leio os textos antigos e vejo frases com muita adjetivação, o que atualmente evito, e tento trabalhar com o valor e a força do adjetivo único… também consigo trabalhar melhor com a questão do inesperado, para provocar o estranhamento no leitor, algo que no inicio não sabia muito bem como fazer sem criar vulgaridades. Amadureci sim… isso não significa que não tenha de crescer mais, sempre temos, mas já consigo usar recursos da escrita que antigamente não ousava, como é o caso de retirar o leitor de sua zona de conforto, e levá-lo a outra zona mental de implicação psicológica e social.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Neste momento, eu gostaria de escrever um romance que a dialogue com a condição da mulher indígena. Tenho uma vaga ideia de tudo, na verdade, apenas um contorno do que terei de preencher, mas já existe uma personagem que está atuando sobre mim como um elemento mobilizador de valores e padrões. Ainda estou numa primeira instância, com pensamentos analógicos (risos) entre as referências indigenistas no mundo e a linguagem, mas como a pergunta é sobre algo que não comecei, está valendo.
Quanto ao livro que eu gostaria de ler e que não existe…. acho que não sei o que responder.. tudo existe, tudo foi exaustivamente pensado, eu teria de ir para o surreal. É uma pergunta ampla que eu poderia responder como as candidatas a mis universo: algo que promova a paz mundial.