Lucila Losito é escritora, autora de “Com o Corpo Inteiro”.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Sim, normalmente eu tenho vários projetos ao mesmo tempo. Neste momento, eu estou fazendo mestrado na Unicamp e tenho muitas coisas para ler. Estou escrevendo o próximo livro e já começando a pesquisa do seguinte. O bom é que tudo é muito interligado, as coisas se alimentam. Ao organizar um festival ou uma imersão onde o tema está diretamente ligado à minha pesquisa, estou de certa forma, vivendo o que eu pesquiso. Conversando e compartilhando meus aprendizados. Eu chamo isso de pesquisa viva. Uma coisa acaba levando à outra. A vida alimenta o processo criativo, o trabalho com as imersões e atendimentos, alimentam a vida. E por aí vai… me sinto bastante inteira, as coisas finalmente estão todas interligadas.
Este ano, por exemplo, às segundas, quartas e sextas-feiras pela manhã, eu danço, medito e faço alguma atividade de divulgação dos meus trabalhos nas redes sociais, à tarde eu tenho aulas na Unicamp, leio ou estudo. Nas terças e quintas pela manhã, eu cuido da casa, sempre faço almoço, divulgo meus trabalhos nas redes sociais e na parte da tarde, eu atendo como terapeuta, acompanho autores em processos criativos, organizo residências e imersões, me dedico ao livro do Proac. Aos finais de semana, eu me desligo de tudo para namorar, ficar com família ou amigos, de preferencia no meio do mato. Normalmente, eu gosto de escrever na parte da manhã, mas como este ano estou mais pesquisando, tenho deixado as manhãs para meditar e dançar.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu acho que cada projeto é um. Mas eu sou uma pessoa que normalmente deixa fluir. É bastante difícil para mim organizar ou controlar qualquer coisa. Mas estou tentando ser mais estruturada, porque no último romance eu bati muito a cabeça. Fiquei muito refém da história e dos personagens. Desta vez, quero encontrar um meio termo, entre ser levada pela história e me entregar aos mistérios, ao inconsciente dos personagens e textos, e pegar as rédeas do processo, ter uma estrutura que me sustente e me ajude a criar alguma leveza. Quero poder dançar com as palavras sem me esparramar no chão como tantas vezes fiz no primeiro romance. O mais difícil para mim é escrever a primeira frase, ou melhor, o primeiro capítulo. Pelo menos, foi assim com o primeiro romance. Não consigo dizer nada sobre os próximos, mas acho muito importante a primeira página. A última nem sempre é tão importante, as vezes a história acaba antes, ou o ápice se dá em outro lugar. Mas a primeira página para mim é sempre muito importante e difícil, normalmente só consigo fazer depois que o projeto acaba e consigo enxerga-lo como um todo.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Eu não consigo seguir uma rotina. A escrita para mim é algo que acontece. Eu me coloco algumas regras, mas não as sigo à risca. Sou mais adepta aos ritos. Para que eu consiga entrar em processo criativo, eu preciso chegar a um grau de concentração que é parecido com um transe, onde as palavras se concatenam sem passar pelo racional, é um trabalho de fluxo, algo que acontece ou não. Quando não acontece, há outras tantas coisas que precisamos fazer com os textos, como edições e pesquisas. Tenho a impressão de que há um fio que conduz a narrativa, quando a gente consegue segurar este fio e vai aos poucos puxando ele, a história vai se construindo. Eu me sinto uma espécie de canal, que estou a serviço de algo maior que eu. Só entendo depois de algum tempo. Preciso de silêncio para escrever, mas não preciso de um ambiente particular. Anotações eu faço em qualquer lugar e com qualquer tipo de barulho. Os gatilhos são o que mais importa, o texto já está escrito em algum lugar, antes mesmo de coloca-lo no papel. Para mim apanhar o gatilho, é meio caminho andado, e ele acontece em qualquer lugar, nos lugares mais inesperados aliás.
No momento, eu tenho experimentado escrever à partir do corpo, então, preciso de tempo para pesquisar o que meu corpo tem a dizer. Me colocar no lugar do personagem e deixar o corpo me mostrar o que ele sente. É um processo muito vivo e eu tenho aprendido muito com ele. Acredito que o leitor vai perceber a diferença. É a primeira vez que uso esta técnica, da fenomenologia, para escrever e ler. No último romance, eu ainda não tinha adquirido esta técnica.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Eu nunca passei por um momento de trava, de ficar sem ter ideias, eu sigo tendo muitas ideias e desejos, me falta tempo e braços para tantos livros e projetos. Meu problema é não conseguir sentar para escrever. As ideias estão todas ali, mas eu procrastino o momento de sentar a escrever, com tantas coisas que de fato preciso fazer para poder me sustentar. Mas a grande verdade é que escrever é se expor, é uma doação muito grande, é um processo muito intenso e visceral. Às vezes a gente precisa tomar fôlego.
Eu sou uma pessoa bastante dedicada às minhas paixões. Para mim, é uma questão de decisão. Quando eu decido de fato que vou me dedicar a algo, eu consigo, faça chuva ou sol. Para lidar com a procrastinação, eu me imponho prazos de entrega possíveis e factíveis. O importante é parar de se sabotar. No primeiro romance eu me sabotei tanto que levei 8 anos para escrever. Estas coisas tem prazo, é como relacionamento, a gente pode perder o bonde. O amor segue igual, mas as coisas tem o seu tempo. Eu quase perdi o bonde com o meu primeiro romance, não quero que isso aconteça mais na minha vida. Ficar tão refém de um texto a ponto de não saber onde ele começa e eu acabo. Onde eu acabo e ele começa. Uma história precisa acabar, para outra começar. No primeiro livro, a gente ainda é muito ansiosa, quer colocar tudo num livro só. Eu tenho a impressão que o meu primeiro romance poderia ser dois livros, mas não me arrependo de ter feito exatamente assim. O livro “ camisa branca” foi engolido pelo livro “com o corpo inteiro”, assim como um objeto deixado na floresta é engolido pelo mato.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Com certeza absoluta foi o meu romance “com o corpo inteiro”. Por ter ligação muito direta com a minha vida ele me consumiu demais. Por trazer a história da minha família e também de minha cidade e antepassados, acabou mexendo muito com todos. Tive que consultá-los, passar o livro para meu pai, minha mãe e minha madrasta lerem. A opinião deles era muito importante, não queria magoá-los. Também passei o livro ao meu ex-namorado e ao meu namorado atual. Foi importante obter as opiniões deles. Mas, foi um livro muito difícil de escrever, e de lançar. Foi estar pelada na frente de muita gente. Ainda bem que eu estava pintada com jenipapo. Me senti protegida pela minha ancestralidade, minhas crenças, minha aliança com a verdade e com a vida. Mas não posso dizer que foi fácil. Me orgulho muito de ter escrito este livro. Nele, eu olho para as minhas próprias sombras e convido o leitor a olhar para as suas. Não há libertação maior. Abraçar as nossas vulnerabilidades é a única forma de nos tornarmos mais inteiros.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
São os temas que me escolhem. Eles me atravessam. Eles me atropelam. Eles me capturam. Quando eu vejo já estou ligada a uma história. Algumas vezes, é também alguma reparação que eu quero fazer, como ocaso do atual livro, onde eu escrevo, mas não sou a autora. Apenas ouço e transcrevo as falas destas 11 mulheres que eu acredito que o mundo precisa conhecer e ouvir. Eu me sinto parte delas. Estou escrevendo porque acredito que o mundo precisa ouvir o que estas mulheres tem a dizer, e o que elas dizem, tem muito mais força saindo da boca delas. Estou escrevendo porque elas não sabem escrever, mas sabem muito, e precisam ser ouvidas. Estou escrevendo porque uma delas foi minha babá, e ela andava com um lenço cobrindo a boca. Eu conheço a dor de não ser ouvida, mas imagino que a dela, doméstica e descendente de escravizados, seja muito maior que a minha. Não posso escrever um próximo livro antes de possibilitar que ela também possa ser ouvida. Ela me amamentou, meu corpo faz parte do corpo dela, o dela faz parte do meu. Todas as mulheres que serão autoras deste livro, de alguma forma me alimentaram. E eu preciso prestar a minha homenagem a elas.
Não mantenho uma leitora ideal em mente, mas no caso do meu romance “com o corpo inteiro”, eu escrevia para o leitor como se estivesse escrevendo para um futuro namorado, ou para meu ex-namorado. Um namoro hipotético entre a autora e um leitor.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Para mostrar o rascunho para outras pessoas eu preciso estar minimamente satisfeita com o que escrevi. A primeira pessoa a ler meus textos é sempre o meu namorado, Fernando. A gente troca muito sobre vários assuntos. Somos muito diferentes, ele é uma espécie de contrarregra, me apresenta sempre um contraponto. Sempre olha por outras perspectivas e conversar com ele me fortalece. Depois disso, procuro um grupo de colegas e/ou profissionais que possam me passar perspectivas mais profissionais.
Com as poesias eu sou bem menos exigente, displicente até. Coloco nas redes, ainda em fase de processo. Com o romance, as coisas parecem que ganham um contorno mais definitivo, uma coisa engancha na outra. Narrativa longa é preciso fôlego, só de pensar já me arrepia a espinha. Eu preciso de muito tempo, escrevendo um romance, para poder mostrar para alguém.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Foi um divisor de águas para mim, fazer o curso livre de formação de escritores do VERA CRUZ. Ali, eu comecei a me enxergar como escritora de fato. Entender o que isso significava. Na minha cidade do interior, não haviam escritores, era algo muito distante da minha realidade. Demorei bastante para me levar à serio. Eu gostaria de ter ouvido que o caminho é longo, mas que não é preciso ter pressa. Que vale a pena ser quem a gente é. Gostaria de ter ouvido para não me demorar tanto para me dedicar a mim, acreditar no meu trabalho. Para lançar um livro, é importante encontrar parceiros que acreditam em você e invistam no seu trabalho, acrescentando camadas ao que você fez. Isso faz muita diferença. Mas só acontece, quando você mesma, acredita em primeiro lugar. Foi muita auto-sabotagem até eu começar a enxergar o meu valor. Gostaria que alguém tivesse me dito para não perder tanto tempo fazendo coisas para os outros, fugindo de mim com a desculpa de que era preciso dinheiro para me sustentar. As desculpas são muitas, a gente sempre arruma uma quando a autoestima está baixa. O mundo prático nos tira da escrita, há sempre outras coisas que parecem mais importantes, mas quando você no fundo sabe que é uma escritora, precisa tirar tudo da frente e apenas ser quem você é.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Eu acho que é muito comum a gente copiar alguém, ou muitos alguéns, no caminho de achar o próprio estilo. Eu sinto que comecei fisgada pelo livro “a chave de casa” da Tatiana Salem Levy. Foi ele que me fez começar a escrever. Mesmo assim, sinto que tenho um estilo bem diferente dela. Acho que o nosso estilo de escrita vai ficando mais claro, na medida em que nós vamos nos conhecendo melhor também, e vamos ficando mais transparentes, nos deixando conhecer, transparecer através dos textos.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Eu recomendo demais:
“o som do rugido da onca” da Micheliny Verunschk
Uma obra que tem coração.