Luciana Fátima é escritora, estudiosa da vida e obra de Álvares de Azevedo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa com café! Eu necessito de café para acordar. Durante a semana, minha rotina é bem intensa, pois eu trabalho no departamento de produção de conteúdo acadêmico de uma universidade. Quase todo o material teórico dos cursos de EaD passam pela minha revisão. É leitura que não acaba mais!
Somente nos fins de semana é que me concedo a calma dos pequenos prazeres. Faço tudo em câmera lenta: absorvo o aroma do café sendo feito, observo a manteiga derreter no pão, enquanto ouço a música clássica que meu namorado (Arlindo Gonçalves, parceiro de vida, de fotografia e de literatura há 27 anos!) coloca para nos fazer companhia durante o café da manhã. Não gosto de me impor horários rígidos no fim de semana. Só quando me sinto suficientemente acordada, sento-me para escrever. Então, se a escrita começa a fluir, não paro até a exaustão me dominar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como meu tempo para escrever é escasso, não posso me dar ao luxo de escolher um melhor horário. Eu escrevo quando e onde dá. Já produzi muita coisa no transporte público, no intervalo das aulas, no horário de almoço, no banheiro, em crises de insônia…
Por conta da situação de isolamento social, quase não saímos mais de casa, então, acabei desenvolvendo uma rotina de escrever todo sábado e domingo. Começo cedinho e produzo o dia inteiro.
Eu nunca havia reparado nisso, mas tenho uma espécie de ritual, sim: eu coloco livros e cadernos sobre a mesa; lápis, canetas e marcadores a postos, pego um grande copo d’água, ligo o computador e mergulho no universo da escrita. Para começar, preciso reler o que havia produzido anteriormente no texto. Só assim alcanço seu ritmo, seu tom, sua linguagem. Eu simplesmente não consigo continuar de onde parei – mesmo que tenha sido no dia anterior.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende muito do tipo de texto. Quando estou escrevendo meus livros e não tenho prazo, deixo a coisa fluir naturalmente e não me cobro quanto a metas. Se preciso produzir artigos, prefácios ou textos encomendados, desenvolvo um cronograma para não me perder. Faço um plano geral, uma espécie de resumo dos tópicos que vou abordar, e me esforço para cumprir pequenas metas; por exemplo, escrever cinco páginas no fim de semana ou um capítulo curto por dia. Também vou adaptando, de acordo com o nível de dificuldade do texto e com o meu grau de cansaço. Procuro respeitar este último item porque chega um determinado momento em que meu cérebro desliga e é inútil querer continuar.
Uma coisa que ajuda bastante no meu processo produtivo são as barganhas que faço comigo mesma: “Se concluir este capítulo, tomo uma taça de vinho! Se finalizar esta página, como um chocolate!”
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu sou uma eterna pesquisadora. Nunca acho que minhas notas são suficientes, por isso, não vejo separação entre pesquisa e escrita – eu escrevo pesquisando e pesquiso escrevendo.
Comecei a estudar de maneira estruturada o Ultrarromantismo e Álvares de Azevedo por volta de 2005, no curso de pós-graduação. A monografia que escrevi sobre o poeta foi publicada em 2009 e, depois disso, continuei pesquisando as histórias dos estudantes e da faculdade de Direito de São Paulo. Em 2015, publiquei uma biografia romanceada em formato de diário, escrito em primeira pessoa, como se fosse o próprio Álvares narrando passagens de sua vida. Em 2019, Arlindo Gonçalves e eu publicamos um livro escrito a quatro mãos sobre nossos ídolos (Ian Curtis o dele e Álvares de Azevedo o meu), e a pesquisa teve um rumo diferente, já que a proposta era mais filosófica.
Atualmente, estou escrevendo outro livro sobre o poeta e, a cada novo capítulo, pesquiso coisas diferentes – ora sua vida e obra, ora a São Paulo do século XIX. Às vezes, estou na frente do computador com cinco ou seis livros na mesa, dois ou três cadernos cheios de anotações, e diversas páginas de internet abertas para consultar informações. É um processo deliciosamente complexo!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Estou sempre lendo e escrevendo. Mesmo quando não envolvida em projetos oficiais (o que é raro), eu escrevo o tempo todo – desde resenha de livros, passando por textos para redes sociais e revistas, até cartas e diários. Esse hábito tem me ajudado a não sofrer da síndrome da página em branco.
Guardo dezenas de caderninhos com anotações que misturam meus próprios escritos com trechos de livros lidos, citações que podem servir como epígrafes, e ideias de contos e histórias para – quem sabe – serem desenvolvidas um dia.
Uma particularidade que aconteceu bem no início da pandemia de covid-19: logo nos primeiros meses de isolamento, passei a sentir grande dificuldade para me concentrar. Eu não conseguia ler nem escrever direito, e fiquei bastante incomodada por isso. Para retomar o hábito, busquei ler livros mais curtos e com temáticas mais amenas; e registrei minhas angústias em um diário, no qual me forcei a escrever todos os dias. Lentamente – não sem muito esforço, diga-se de passagem – consegui me reencontrar e voltar à rotina anterior de leitura e escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Hoje eu tenho uma preocupação muito grande com a qualidade do meu texto, por isso, reviso muitas e muitas vezes. Talvez, devido à natureza do trabalho, acabei ficando excessivamente rigorosa. Ao ler um livro por prazer, se encontro muitos erros gramaticais ou ortográficos, repetição indiscriminada de palavras, advérbios ou adjetivos desnecessários, fico irritada e acabo abandonando a leitura.
Se escrevo algo que sinto não estar bom, deixo de lado. Mas isso nem sempre foi assim. Quando comecei a escrever, eu tinha urgência de mostrar meus contos aos outros e de publicá-los – o que me fez participar de inúmeras antologias. Como prática e exercício literário, acho que foi muito útil, contudo, alguns textos não estavam maduros e, se fosse hoje, eu não os publicaria.
Quanto a mostrar trabalhos, a única pessoa em quem confio plenamente é o Arlindo Gonçalves. Conversamos muito sobre literatura, estilos de escrita, ambições literárias (ou a falta delas!), por que e para quem escrevemos etc. Temos uma sintonia que nos permite falar de maneira bastante franca sobre o trabalho um do outro, tanto para dizer quando está bom quanto para sugerir acertos e melhorias.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Ao mesmo tempo que me dou superbem com a tecnologia, eu adoro escrever à mão. Sinto grande prazer ao desenhar as letras e formar palavras, adoro o barulho do lápis sobre o papel! Mas, se preciso produzir algo rapidamente, escrevo – sem problema nenhum – direto no computador.
Para mim, ambas as formas são processos distintos. É impossível, hoje em dia, prescindir do computador, do texto digitado, mas escrever à mão estimula não apenas músculos diferentes, como também ativa partes do cérebro que criam experiências sensoriais diversas.
Gosto de escrever a lápis, com caneta bico de pena e, às vezes, na Manuela – minha máquina de escrever! Acho esse processo (que muitos chamariam de retrabalho) bastante enriquecedor porque, ao ter de digitar a versão inicial, repenso o que escrevi e sempre acabo melhorando o texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Colho ideias em todos os lugares: uma conversa ouvida na rua, notícias de jornal, filmes, livros, músicas, e especialmente obras de arte. Gosto muito de visitar museus, de ver exposições – o que, infelizmente, não fazemos há muito tempo. Antes da pandemia, sempre que saíamos de uma exposição, eu tinha ideias para escrever algo.
Alguns de meus contos foram baseados em imagens fotográficas. Adoro olhar para uma fotografia e imaginar a história daquele lugar, daquelas pessoas, recriar suas realidades.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o passar dos anos, aprendi a “deixar o texto dormir” antes de publicá-lo. Percebi que algo que escrevia no calor do momento e achava maravilhoso não resistia a uma noite. No dia seguinte, quando ia ler novamente, o texto já não me parecia bom. Uma semana depois, ele precisava de muitos ajustes. Depois de um mês, eu quase me odiava por ter escrito aquilo.
Depois de anos, olho para meus primeiros escritos e sinto vontade de morrer por tê-los publicado! No entanto, se eu pudesse voltar no tempo, não mudaria nada. Todas essas etapas fazem parte do aprendizado e do crescimento. Ninguém nasce pronto. Precisamos passar por tudo o que passamos para chegar aonde chegamos. E acredito firmemente que eu não teria chegado a esse grau de maturidade se tivesse pulado etapas pelo caminho. Gosto muito de uma frase atribuída a David Bowie que diz mais ou menos: “envelhecer é o extraordinário processo no qual você se torna a pessoa que sempre deveria ter sido”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acho que, para nossa sorte, todos os livros já existem! E os que ainda não foram escritos estão sendo gestados na mente de alguém, prontos para sair do mundo das ideias e passar a habitar a realidade.
Uma das coisas que Arlindo Gonçalves e eu estamos fazendo para não sucumbir diante do isolamento social é nos mantermos constantemente ocupados com projetos literários. Criamos um caderninho repleto de ideias de livros e, sempre que estamos desanimados, recorremos a ele para estimular o outro a continuar lutando. Planejar essas atividades tem nos mantido produtivos e esperançosos de que, quando tudo isso passar, vamos reunir muitos amigos para celebrarmos a literatura que nos salvou!