Luciana Annunziata é escritora, autora de “Os cadernos do desencontro de Antônio Guerra” (Quelônio, 2018).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A primeira coisa que eu faço sempre é escrever uma ou duas páginas, porque sonho muito e esses registros para mim são fundamentais. Não vivo sem o meu sonhário.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho um horário definido, mas normalmente acabo trabalhando na escrita à tarde e ao anoitecer, com as tarefas burocráticas da vida já encaminhadas. Eu tenho o costume de guardar frases ou títulos ao longo do dia e quando começo a escrever, parto sempre desses guardados, que podem vir de um acontecimento, de um sonho ou da sequência necessária de um projeto em que eu esteja trabalhando. É o caso da escrita do romance. O personagem parece pedir “olha, agora você precisa tratar disso aqui”. Quando eu sento para escrever, a coisa acontece porque eu vim maturando às vezes por dias.
Também cuido da questão do silêncio. Não consigo escrever com barulho de jeito algum! Então porta fechada, cachorro do lado de fora, aviso aos navegantes da casa para não ser interrompida.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu processo é bem diferente para poesia, conto e romance. A poesia tem uma urgência, uma ânsia de colocar aquilo para fora. Já escrevi no ônibus, em sala de espera de consultório médico, até atrás de ticket de supermercado. Ela brota no momento de solitude, quando você consegue escutar a si mesma, e isso nem sempre se dá na solidão.
Os contos costumam começar por uma frase que me ocorre no meio do dia. São fragmentos que anoto mentalmente (ou no papel, porque adoro um caderno e não saio sem um). Muitas vezes é uma pessoa que eu conheço, outras é uma frase mesmo, algo que me invade e eu nem sei o que vou fazer com aquilo. Muitas vezes os disparadores são propostas de cursos que eu faço, como o Submarino, do Ronaldo Bressane, onde estou no momento.
Já o romance é mais exigente e essa escrita “por espasmos” só funciona no início do processo. Chega uma hora em que é preciso se isolar e mergulhar. Com meu romance “Os Cadernos do Desencontro de Antônio Guerra” foi assim. Escrevi trechos, capítulos, e sequências que chegavam a 15 páginas, mas depois era preciso costurar tudo, entender melhor quem era o protagonista, estar profundamente com ele, sentir suas dores, pensar como ele pensa. Isso só é possível com imersões mais longas, de 15, 20 dias. Sem isso acho que nunca teria terminado. Acho linda essa coisa do Karl Owe Knausgaard de ter um estúdio, ir todo dia e escrever por 6, 8 horas, mas para mim é uma utopia por enquanto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não consigo isolar a pesquisa da escrita. À medida em que vou pesquisando escrevo trechos, mesmo que vá jogá-los fora. Acho fundamental isso porque a aventura é literária e não acadêmica. Atualmente estou num projeto que exige muita pesquisa, um romance que tem um enredo bastante intrincado e se relaciona com o momento histórico do país. Nesse caso, sei que o meu método gera desperdício, vou ter que descartar ou reescrever completamente alguns trechos, mas isso não me aborrece.
Agora, há uma pesquisa que é seminal para um romance: o ponto de vista e a voz do narrador. Sem isso quase não dá para começar. Precisa ter aquela sensação: achei, é isso, é a partir desse lugar que eu quero contar essa história. E como chegar lá? Testa, testa, escreve, escreve, até achar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando não me sinto pronta para escrever, não forço. Leio e pesquiso.
Eu confio muito. A escrita virá. Vou cultivando os personagens e seu universo até maturar. Escrever tem a ver com deixar-se atravessar, deixar vir, abrir-se a uma proposta que muitas vezes você não sabe bem de onde nasceu. É ser veículo. Não consegue andar? Injeta óleo, cuida da fuselagem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso muito, muito mesmo. Há trechos que eu releio 15, vinte vezes antes de colocar no mundo. Eu adoro editar e cortar, é quando o tempo mais voa. Também leio em voz alta. “Os Cadernos do Desencontro de Antônio Guerra” eu li inteiro em voz alta em um final-de-semana antes de mandar para o editor. Fechei a casa, desliguei o telefone e fui. Achava que o romance estava pronto e mesmo assim, achei rebarbas.
Também gosto de mandar para alguns leitores antes de publicar. No caso de “Cadernos”, o projeto que enviei para o PROAC foi exatamente isso. Fazer dois grupos de leitura, escutar as reações, refinar. Foi especialmente interessante porque eu estava escrevendo em primeira pessoa como homem. No final, fui bem convincente nessa voz. Mas havia núcleos da trama que os leitores pediam para aprofundar e percebi riquezas que estavam sendo perdidas. O livro acabou crescendo com isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu uso os dois recursos. Hoje dificilmente escrevo um capítulo inteiro ou um conto à mão, mas os cadernos são a minha primeira mídia de registro. Tenho uma quantidade enorme de cadernos guardados. A primeira coisa que eu faço quando acordo é papel e lápis (não gosto de caneta). Poemas normalmente nascem inteirinhos à mão.
Mas o fato é que eu digito muito rápido. Então quando é para mandar ver mesmo, é no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu observo e escuto. Adoro escutar as histórias de vida das pessoas. Atualmente estou fazendo um trabalho com mulheres de periferia e fico pasma com as histórias delas. É como se houvesse uma parede secreta numa biblioteca que já era enorme e então, através dessas mulheres, eu entrei; porque no Brasil, tem toda uma parte da realidade que uma pessoa como eu, que nasceu num contexto privilegiado, não tem acesso. A escuta me traz consciência das limitações do meu ponto de vista.
Andar por aí, conhecer gente diferente, entrar no mato, conversar com os bichos, conversar com a arquitetura da cidade, com o lixo. Tudo narra.
Outra fonte importante são os sonhos. É onde meu universo se amplia, onde pode haver uma fogueira debaixo de uma casa, onde posso sentir a terra tremer, o chão rachar, é onde visito meus próprios mistérios. Agradeço todos os dias por sonhar tanto e me lembrar.
E leio. O máximo que consigo, menos do que gostaria. Mas leio. E muitas vezes copio os trechos que me encantam.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: faz aí, mas não se apega.
Eu tenho um livro de contos inteiro que descartei. Foi escrito em 1998, antes de eu mergulhar de verdade na literatura. E era ruim. Até reli para ver se não estava sendo muito exigente comigo mesma, mas era ruim.
Hoje eu tenho um processo intencional de melhorar tecnicamente. Quanto mais eu leio e escrevo, melhor meu texto fica. Nesse processo, uma coisa que mudou muito é evitar qualquer avaliação enquanto escrevo. A escrita precisa atravessar o corpo, é preciso se jogar e se divertir. Senão você trava, amarra o texto, acaba escrevendo bonitinho mas sem revelar aquilo que só você podia revelar. Eu realmente me divirto escrevendo, é a coisa mais legal que sei fazer! Então procuro me conectar com essa alegria criativa. O pior que pode acontecer, é jogar fora. E nisso, já estou treinada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um romance com uma protagonista que viaja sozinha para um lugar distante. Fiz isso três vezes na vida, viagens longas onde vivi histórias muito boas, algumas tristes, outras muito engraçadas. Quando conto para alguém, percebo que são boas histórias. É algo que eu deveria colocar no papel.
Quanto a um livro que não existe… não sei dizer. Ainda tenho que ler muito mais para poder dar conta do que existe; aí, daqui a uns quarenta anos, talvez eu possa responder essa pergunta. Do ponto de vista existencial, do que é mais importante para a expressão da alma humana no mundo, a literatura já é imensa.