Louise Belmonte é escritora, atriz, educadora e diretora de cinema e teatro, autora de “Primeira Pele” (Quelônio, 2022).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou uma pessoa que escreve de manhã, quanto mais cedo, melhor. Escrevi meu primeiro livro inteiro entre as 5:00 e as 7:00. Acho que Clarice também gostava de escrever nesse horário. Para mim, particularmente, me dá gosto sentir que as pessoas dormem enquanto eu escrevo, saber que meu celular não vai estar lotado de mensagens se eu precisar pesquisar algo nele, saber que não estou sendo procurada. Talvez seja uma sensação de invisibilidade que eu sinto ser necessária.
Ultimamente, na escritura do meu segundo livro, não tenho conseguido acordar tão cedo. Talvez sejam os cansaços dos nossos tempos ou eu só esteja ficando mais velha e mais cansada mesmo rs mas continuo escrevendo de manhã, entre 9 horas até o 12:00 e pouco. Minha mesa não tem luminária, o que meu companheiro julga ser uma insanidade, mas a resposta é simples; com uma grande janela na frente e sendo uma escritora diurna, eu nunca preciso de mais luz.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acredito que a primeira pergunta já está respondida. Sobre a segunda, escrever me toma tempo. Isso porque escrever, para mim, não se resume ao ato de estar na frente do computador e escolher letras no teclado. O escrever já acontece no café preto da manhã – puro -, no me vestir – descobri, principalmente na pandemia, que preciso me vestir para escrever, preferencialmente com as roupas que me fazem sentir uma boa escritora -, e eu, particularmente, não consigo escrever se não estou lendo. Então sento na minha mesa, abro livro da vez, que geralmente tem a ver com o assunto do livro que escrevo, na forma, no conteúdo ou na linguagem, e leio o tempo que for necessário, até que a ideia venha. E ela vem, normalmente depois de mais ou menos uma hora. As vezes mais, as vezes menos. As vezes com 15 minutos de leitura, as vezes simplesmente não dá as caras.
Música também pode ser importante, dependendo do que escrevo. O momento do play é o momento em que a ideia aparece. Como o início de um espetáculo, fecho o livro, dou entrada na música e começo a escrever. Para o meu primeiro livro, que acabo de lançar, intitulado “Primeira Pele”, não tive uma playlist fixa, era um livro nostálgico, sobre a adolescência e suas marcas, sobre a memória. Então as músicas que me vinham no ato da escrita também eram um exercício. Para esse novo, criei uma playlist específica, que me leva a um lugar sem tempo definido, um Brasil que acontece hoje mas também acontece ontem e amanhã.
Enfim, além de escritora eu sou professora de escrita criativa e sócia-produtora em uma escola rs então podemos ficar falando por horas e horas sobre métodos e rituais, sou apaixonada por esse tema uma vez que acredito fielmente que a inspiração pode vir de fora para dentro, que a experiência é algo que nos acontece mas que devemos e podemos nos colocar em certos estados, nos induzir a determinamos riscos.
Vejo a escrita como uma performance, talvez a mais íntima delas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todas as vezes em que engato num processo de escrita é porque estou num processo de escrita contínuo, não necessariamente diário. Uma amiga me disse certa vez que para escrever um livro você precisa passar de um momento específico não pré determinado, como um ponto de não retorno que não sabemos onde fica mas sabemos quando o passamos. Depois disso o livro se escreve sozinho, e a disciplina não se torna desnecessária mas sim natural.
Eu não poderia concordar mais e, portanto, é isso que almejo, quando escrevo. Encontrar esse ponto de não retorno, como se a escrita tivesse um certo cordão umbilical, uma corda de tecido muito fino e delicado que, para não arrebentar, é necessário que não nos afastemos demais. Porque a palavra e a linguagem nada mais são do que extensões de uma visão de mundo, traduções possíveis que precisam estar perto do que se vê.
Olhos – mãos – estômago – coração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Notas. Esse é um assunto engraçado por aqui. Perco praticamente todas as notas que eu faço. Porque não consigo ser organizada em relação a isso. As faço no papel que estiver disponível, seja em alguma página do livro da vez, num guardanapo, nas notas do celular que se acumulam e se perdem porque nunca são apagadas. Hoje em dia acredito que o ato de escrever o pensamento, para mim, é mais importante do que tê-lo a mão depois. Como se algo se concretizasse ao ser passado para o papel. E tem também aquela sensação mágica de ser encontrada por alguma observação esquecida, e como o acaso opera de maneira misteriosa na escrita.
Então, acho que eu me movo não só da pesquisa para a escrita mas também da escrita para a pesquisa, não numa forma linear mas sim em um constante ouroboros – a cobra que come seu próprio rabo -, porque – e aqui eu corro o risco de estar me repetindo -, a pesquisa é a escrita e a escrita é a pesquisa.
Quantas vezes eu não tive de parar o que estava escrevendo porque precisava saber mais sobre assuntos absurdos que surgiram entre as páginas e eu não fazia a menor ideia? Quantas vezes as próprias palavras me davam ideias que eu não tinha e não teria tido, se não estivesse ali, escrevendo? E quantas vezes o ato de observar, de me colocar como pesquisadora diante do mundo – porque talvez mais importante do que o objeto-pesquisa seja o corpo-pesquisa, esse estado de criança curiosa que temos de nos propor e perguntar mas por que isso?, mas como isso acontece? -, fez com que minha escrita enriquecesse e seguisse por caminhos menos óbvios e mais meus?
Não consigo separar esses dois elementos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando eu estava começando a escrever, essa mesma amiga me deu um conselho que foi essencial e que eu acredito que todo jovem escritor deveria ouvi-lo: ponha na sua cabeça que você vai escrever um livro médio. Um livro ok. Seu primeiro livro não vai ser genial, vai ser ok.
Isso me tirou um peso enorme das costas e, mais do que isso, me aproximou do que eu acredito hoje, de um tipo de pedagogia da qual eu sou completamente partidária que é: escrita é trabalho.
A arte é um ofício como qualquer outro e ninguém nasce sabendo, ninguém nasce gênio fora os gênios de fato rs e eu não sou uma gênia. Eu tenho uma vocação, tenho, sim, eu leio muito desde que sou pequena, eu fui incentivada a leitura, eu escrevo bem mas se eu quiser ser excelente eu vou ter que ir além.
Eu terminei de escrever a primeira versão de Primeira Pele em 2019, com vinte e um anos. O livro foi lançado agora em 2022, depois de três anos de revisões e olhares, meus e de pessoas que eu confio. Ele certamente está melhor do que em 2018, é um livro melhor. Eu poderia ter parado ali, mas não é assim que se dá qualidade aos trabalhos, as obras de arte.
Além disso, dar o meu máximo me garante ter menos medo de errar, de arriscar. Tem uma frase do Beckett que eu gosto muito e que um amigo muito querido sempre lembra;
“Tente de novo.
Falhe de novo.
Falhe melhor.”
Busco sempre acreditar que carreira, assim como minha vida, é composta de erros melhores. Porque erro significa risco e risco significa experiência. Prefiro ter experiências enquanto escrevo do que não ter. Prefiro sentir a sensação de frio na barriga de estar tentando algo novo, tentando algo que eu ainda não vi tentarem. Prefiro os escritores que erram do que aqueles que acertam de uma forma que eu já previa.
Encarando a escrita assim, o que os outros vão pensar fica distante. É um medo substituído por outro. O de ficar num quase, o de não ter coragem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou uma escritora com uma extrema necessidade de leitores. Leitores constantes, mas poucos. Porque gosto. Gosto de escrever um capítulo e mostrar. Gosto da resposta. Acredito no coletivo. Escrever por si só já é solitário o suficiente.
E sobre a revisão, quantas vezes forem necessárias. Não no sentido da exaustão, mas no sentido do texto alcançar sua potência máxima, que é também a minha, naquele momento. Existe um instante intuitivo em que eu olho para o que está escrito e penso: é isso, esse texto é isso. E ele poderia ficar ou ser melhor, mas então não seria mais esse texto. E então de alguma forma a continuação dessa melhora terá de vir no próximo e no próximo e no próximo.
Para isso não existe medida exata, tem texto que vem numa sentada só, tem alguns – como esse meu próximo livro -, que precisam de quatro, cinco revisões para começarem a ser literatura.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no computador.
À mão só notas, ideias.
Tento ter um caderno para cada livro mas, como disse antes, sou muito desorganizada quanto a isso e os cadernos todos se misturam e entra anotação de bolo até aula de espanhol.
Eu acho bonito isso. Gosto do livro se perdendo em meio à vida.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que, como eu disse antes, o grande conjunto de hábitos é perceber o mundo. Enxergar o outro, a outra. Entender que as pessoas são grandes icebergs, que o inconsciente se manifesta a todo instante, que não tem bom ou mau, tem bom e mau, tudo junto. Que todo acontecimento é uma consequência etc etc. Basicamente, para ser um artista melhor acredito que, consequentemente, nos tornemos seres humanos melhores. Temos de nos tornar. Não existe um bom artista que não enxergue e não lide com a complexidade do outro, da outra.
Busco olhar para o mundo com delicadeza, busco o silêncio, busco a falta de dogmas, de certezas. Acredito que esses são fatores que me dão boas ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Antes eu tinha um jorro, uma necessidade de vida que não dava espaço nem para por ponto nas frases, era só uma sucessão de vírgulas e falta de fôlego rs acho isso bonito também, é uma marca de uma idade e eu sinto muito falta de ver o que meus escritores preferidos produziam nos seus vinte e poucos anos, fico feliz de poder ser esse exemplo – não no sentido da excelência, mas sim no sentido da amostragem mesmo, do erro possível -, para alguém.
Hoje em dia eu busco o fôlego. Quero dar espaço para que as ideias entrem e fiquem um pouco mais de tempo na mente do leitor e na minha também. Hoje em dia o jorro deu lugar para uma busca um pouco mais clara, como sei mais para onde quero ir também posso dar mais espaço ao acaso dentro desse trajeto pré determinado. Hoje em dia tenho uma busca por linguagem. Naquela época a grande busca era me sentir capaz de escrever um livro, de me dizer escritora. E essa busca não é menor e nem terminada. Talvez, até o final da minha carreira, inclusive, essa seja uma das grandes perguntas, dos grandes anseios.
O que de alguma maneira se interliga com a pergunta do que eu diria para mim mesma. Diria que eu consigo. Que escrever um livro é uma travessia para a qual eu tenho a sede necessária. E que a sede é tudo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho seis planetas em libra então projetos que eu ainda não comecei tem aos montes e espero que tenha sempre rs
Quero fazer uma residência de escrita, que seria um desdobramento do curso de escrita criativa que eu já ministro.
Um amigo me contou uma vez de uma escola de escrita na Argentina que a única regra é que você não pode escrever e eu achei isso o máximo, seria mais ou menos por aí.
Tem um livro de poemas sendo gerado muito aos poucos – acho que inclusive essa é a primeira vez que falo isso em público -, antes eu escrevia meus poemas no instagram, mas isso foi me dando uma sensação de necessidade de produção que eu achei esquisita e achei que estava me deixando num lugar de conforto, então decidi parar, e agora os poemas estão todos nas notas do celular e que, quem sabe, não vira livro.
E, por fim, gostaria muito de ler meu próximo livro. De vê-lo pronto, com capa, papel polén rs. Principalmente porque sei que quando isso acontecer em vou ter atravessado algo, chegado em um lugar novo, completamente dessemelhante ao que vejo como destino agora.