Lorena Sodré é escritora, autora de Saudade manda lembrança (2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou professora de história da rede pública aqui no RJ, as minhas manhãs são ocupadas com o magistério. Como as aulas se iniciam às 7h40 da manhã e também tenho que preparar minha filha para escola, a rotina matinal começa bem cedo e bem agitada. Durante alguns intervalos e deslocamentos eu aproveito para responder e mails, responder mensagens na minha página @arte.inverso e programar o trabalho de escrita que preciso fazer na parte da tarde. Uso muito o bloco de notas do celular para anotar coisas que vejo no dia a dia, no metrô, ou de uma conversa com alguém e também aproveito para olhar as novidades no kindle, nas páginas das editoras e dos escritores que sigo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como sou mãe, esposa, professora, além de escritora tudo acontece junto. É a minha necessidade interna que vai me guiando entre essas posições ocupadas. Tem hora que sinto falta de dedicar um tempo especial ao planejamento das aulas, noutra passar um tempo assistindo um filme com a minha filha e tudo isso também alimenta as minhas experiências colocadas no papel. Ter muitos trechos viscerais escritos no bloco de notas para serem desenvolvidos me ajudam a fluir, a partir de um desses trechos eu crio poemas, reflexões, contos ou crônicas. De primeira eu deixo o texto descansar, a hora de voltar é indefinida, tenho muitos textos-semente, alguns florescem e outros não. Apenas na hora da reescrita eu priorizo a estrutura, a gramática e o trabalho com a palavra literária. Uso dicionários, leio literaturas que gosto para me inspirar e poder trabalhar nos meus textos embrionários.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas por conta da minha rotina que se desdobra em outras funções e porque a escrita não é a minha principal fonte de renda. Os períodos de escrita concentrados existem sim, mas através dos gatilhos emocionais que me impele a escrever. A minha experiência de vida está voltada e atenta para resistências das minorias sociais e diante disso os gatilhos para a escrita são diários.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O mais difícil para mim é pescar notas, me sentir provocada. Quando já tenho a escrita inicial e o sentimento que provocou aquela nota, o desenvolvimento do texto se torna uma consequência, escorre fácil e nesse momento abro para a pesquisa, inclusão de conceitos, refrescar as referências, olhar outros textos meus para tentar driblar a repetição de ideias. Volta a tornar-se muito difícil no meu momento de reescrita, cortes e lapidação do texto final.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu procrastino muito, gosto de não ter qualquer obrigação e cuido desse sentimento para que não vire autossabotagem. Tiro força da negligência, vou acumulando pequenas vontades vencidas pela preguiça e explodo numa energia grande de materialização, por isso alterno momentos de produção intensa com dias completamente inúteis ao ofício da escrita. Aprendi que existem as pausas para o meu alimento, coisas diferentes vividas ou sentidas para provocar coisas novas a dizer e isso não pode ser pré-determinado por prazo. Por isso não chamo de trava, no meu caso eu assumi que faz parte do meu processo pessoal. Óbvio que os escritores que se sustentam exclusivamente da escrita devem ter desenvolvido formas mais rápidas para transpor essas travas. Da mesma forma que deve ser mais difícil pensar na crítica. Eu tento usar o privilégio de liberdade da minha escrita para desapegar da busca da aceitação, tento fazer ser bom para mim e torcendo muito para tocar alguém também, mas sem grandes neuras, afinal eu escrevo sobre o que eu acredito e não há como mudar isso por ausência de curtidas. Só não vai ser algo comercial, talvez nem seja tão novidade a ponto de ser reconhecido no pequeno nicho acadêmico. É o meio do caminho. Caminho de quem coloca a escrita na prateleira de conforto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Já teve texto que revisei apenas uma vez e ficou redondo e outros que estão eternamente em análise até que um dia terei coragem de movê-los para a lixeira. É muito intuitivo. Tenho compartilhado menos a minha escrita, já fui mais insegura e precisava de mais conselhos, não que eu tenha superado meus defeitos, mas quando seu volume de escrita e ideias aumenta fica complicado exigir que suas parcerias fiquem lendo tudo o que você escreve, então hoje eu só peço em situações excepcionais, como a revisão crítica de um livro, outras publicações eu procuro ser mais independente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou um pouco avessa à tecnologia, busco o mínimo necessário para atender a minha demanda. Já escrevi mais no papel que hoje, a correria venceu o caderninho. O bloco de notas no meu celular me atende melhor, depois vou para o word do drive para trabalhar. Ali ficam as pastas de textos prontos, pdfs, escritas inacabadas e só.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vem da minha opinião sobre as coisas, quanto mais eu deixar afetar, abrir os sentidos para o mundo mais brotam as reflexões. E a forma que eu acho mais fácil expressar a minha opinião é a escrita, por isso ela é apenas um meio, não o fim. Tento sempre renovar os votos com a minha essência, reavaliar, mudar de opinião e dali seguir comunicando a partir do que acredito. A minha criatividade é estimulada por essa vontade de expressão pessoal no mundo, pelo desejo de me sentir mais viva, materializar meu pensamento, minha essência no papel. Posso ser lida, interpretada, analisada, conectada, rasgada, publicada, o texto personifica a minha parte etérea, porque o corpo não consegue nem pode definir ninguém. Então, quando alguém literalmente me lê e se sente afetado, me dá o retorno dessa afetação, eu posso dizer que eu existo dentro e fora, e que fui reconhecida não pela imagem, mas pela minha essência.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu escrevo diários e poemas desde a adolescência, escrevi um livro aos 16 anos sobre a minha experiência no ensino médio que está engavetado até hoje. A escrita é uma forma de catarse pra mim e isso não mudou, acho que a maturidade, a escrita acadêmica, diploma, a independência financeira e o aprendizado humano do magistério desses dez anos é que mudaram a minha visão sobre o pedestal que a escrita ilustrava pra mim na juventude e até há pouco tempo. Hoje me sinto mais livre para ocupar esse lugar, assumindo meus clichês, com menos autocrítica. Talvez essa demora por eu ser mulher e ter essa carga cultural e de trabalho que dificultam tanto o desenvolvimento da escrita feminina como também a nossa aceitação e a coragem de enveredar por campos espinhosos ainda. Já existiam tantas barreiras para minha sobrevivência como mulher preta, de classe média baixa que fui primeiro pela segurança profissional. Depois da maternidade fiquei mais corajosa e já estava numa posição material, psicológica e espiritual mais confortáveis. Apesar de uma posição conservadora e sem viver o lindo arquétipo da arte passional, acredito na evolução e respeito meu longo e demorado processo, se eu pudesse cruzar o tempo para deixar um recado seria apenas para dizer que eu seguisse o fluxo da vida, aproveitando as boas fases para crescer e as fases difíceis para aprender.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de terminar meu livro de contos, que está muito no início, sair por uma editora respeitada e de grande alcance e tê-los circulando em salas de aula. Justamente para que alunos estejam humanamente mais perto de suas leituras, que se reconheçam nas imagens de quem escreve, de trajetórias reais e próximas, que recebam esses autores em debates na escola, para que a literatura possa mesclar clássicos com a contemporaneidade diversa, sem que esta precise de chancela da academia por conta do registro formal e inovador da língua. Que o pedagógico e a escrita tenham espaço para transcender a lógica da forma, mas que também abram espaço para o contexto social.