Lígia Carvalho Libâneo é psicóloga e poeta, autora de Acontessências.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias de semana minha rotina matinal gira em torno do trabalho como psicóloga escolar. Quando não estou muito organizada acordo só com tempo de me arrumar, tomar café e começar o trabalho. Mas tenho conseguido com certa constância ler um pouco antes de me levantar. Nessas ocasiões minhas escolhas preferidas são contos, poesias ou romance. Nos finais de semana é diferente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No caso da poesia, as ideias podem surgir a qualquer tempo e por isso meu ritual é ter sempre cadernos e folhas espalhados pela casa, pela bolsa, além de grupo de whatsapp comigo mesma. O período da noite pós-trabalho e os finais de semana são meus tempos de maior dedicação à escrita literária, à participação em cursos de escrita e à alimentação do meu instagram de poesias. Meus rituais são a investigação constante da vida, da palavra, dos sons, das imagens e as leituras. Manter-me aberta para a experiência é uma escolha cotidiana.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todos os dias, no trabalho ou fora dele, mas são escritas muito diferentes. Não consigo enxergar muita similaridade entre a minha escrita como psicóloga, pesquisadora e a minha escrita poética. Sobre esta última, posso compartilhar que estou sempre registrando pensamentos, em papeis avulsos, cadernetas, bloco de notas. Minhas poesias surgem de duas formas: espontânea e provocada. Às vezes elas chegam prontas, mas sei que estavam sendo escritas há dias, quando me sensibilizei com uma expressão, ou uma história de um personagem de um romance, ou um relato de uma amiga ou conhecida, ou um som que me fez perceber a proximidade entre duas palavras… Também me coloco desafios de escrita, peço palavras em caixa de perguntas do instagram ou pergunto qual objeto a pessoa considera poético, por exemplo. Geralmente recebo participações interessantes quando faço essas perguntas e vejo como oportunidade de investigação, experimentação e escrita a partir de e para outros lugares. Gosto de chamar esses desafios de: poesias com participação. Outras vezes eu digo: vou escrever sobre uma fotografia ou sobre esta fotografia. Esses últimos casos relatados são o que chamo de poesias provocadas, embora, de certa forma, todas sejam (risos).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu me sinto sempre pesquisando para fazer poesia porque tudo pode virar poema como por exemplo uma palavra no café da manhã, uma digitação errada em um relatório… tudo. Já fiz um poema depois de ouvir em uma reunião de trabalho a palavra aventar. A palavra me pareceu tão diferente naquele contexto. Anotei e depois pesquisei seus múltiplos significados no dicionário. Mas o processo de algo vivido se transmutar em poesia, no meu caso, é muito diverso. Às vezes nasce pronto e eu fico me perguntando de onde veio, outras vezes faço tentativas e mais tentativas e mesmo assim o poema não acontece. Mas a atenção ao cotidiano é minha principal pesquisa para a escrita de poesias. Eu também estou me descobrindo uma escritora que se organiza pela imagem ou, ainda, que se expressa pela imagem. Tem um poema no meu livro Acontessências, publicado pela Editora AVÁ, que surgiu de um objeto que eu criei: coloquei dentro da abertura de uma concha um tecido estampado de partitura musical. Depois imaginei uma alavanca lateral como aquela de caixinha de música e escrevi: “salguei as gotas do ar/ dando corda na lembrança/ as palavras fizeram planar/ partituras de minha andança”. Às vezes fico experimentando esses aplicativos de imagem, fazendo composições. Para mim, tudo isso é escrever poesias, porque as poesias, no meu caso, surgem dessas desorganizações da realidade, seguidas de novas associações.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Diante de situações como essas que você relata como travas na escrita, procrastinação, o que geralmente faço é uma autoanálise. Pergunto-me de onde vem esse medo e essa ansiedade, por exemplo. Eu acho que funciono diferente quando entendo que algo é um exercício e quando entendo que é uma publicação, que parece ser mais definitiva. Quando me coloco desafios de escrita, eu escrevo e divulgo mesmo não achando que aquela é a melhor versão. Já fiz cursos de escrita em que o prazo não me permitiu a entrega de algo que eu considerava muito satisfatório, mas entreguei, porque acho que só temos condições de analisar algo que está escrito. Então, mesmo com o medo do julgamento, eu prefiro fazer e ser criticada pelo feito que não fazer, que não ter um produto a partir do qual me olhar, olhar para minha escrita e meu processo. Agora, quando se trata de uma publicação de livro, capítulo, artigo científico, eu só considero pronto quando eu gostei, quando acho que é a melhor versão dentro do prazo que tenho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No caso das poesias, raramente mostro para alguém antes de publicar no @euuconto. No começo da página, eu mostrava mais. Pelo propósito atual da página de constituir-se como compromisso e como estímulo à escrita, quase tudo que escrevo para lá, eu posto, divulgo. Quando foi o tempo de selecionar poemas da página ou da “gaveta” para o livro Acontessências, eu refiz poemas, revi palavras, revi sentidos, ampliei alguns poemas, pontuei-os de acordo com o sentido que eu gostaria. O livro também passou por revisão de texto da editora e eu ouvi algumas pessoas sobre os poemas que gostavam mais e por que gostavam.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As poesias surgem em qualquer lugar, acompanham o tempo das ideias. Quando vem um verso eu pego o que estiver ao alcance das mãos. Já gravei áudio de whatsapp, por exemplo, para não perder a ideia. Tenho cadernos e mais cadernos onde escrevo os versos que acontecem. Mas às vezes preciso escrever livremente no computador até encontrar o sentido do que quero dizer. Escrever para procurar o sentido, faço isso. Também têm os casos de exercícios com as imagens. As imagens tanto podem surgir numa caderneta quanto em um aplicativo de imagens do computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
O primeiro deles é a leitura. Leio poesia, conto, romance, crônica, ensaio, texto acadêmico. Minha poesia vem muito de uma observação do cotidiano, de uma experiência com o sentido ou sonoridade das palavras. Eu também empresto histórias e nelas coloco meus sentimentos, percepções, sensações. A poesia me permite ficar coletando e compondo com fragmentos de experiências. Minha página no instagram se tornou um cenário em que acumulo exercícios de criação ao mesmo tempo em que faço dali poesia na interação. Eu fico experimentando. Escrevo a partir de fotografias, de pinturas, de imagens, colagens (minhas ou de outros), escrevo a partir de outras poesias, escrevo a partir de palavras… Enfim, faço exercícios para não parar de escrever. Essas são as escritas provocadas. No caso das escritas espontâneas, aquelas que parecem nascer prontas, destaco a disponibilidade, o olhar e a escuta atentos, o espalhar das cadernetas onde faço os registros e a coragem de riscar o papel.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu percebo que quando eu era criança e adolescente eu tinha uma preocupação com a rima, embora escrevesse também poemas sem rima. Escrevia temas intensos, de vivências pessoais, e relato de experiências. Era até mais corajosa quando me apresentava poeta. Ali eu aprendi a escrever como uma forma de expressão de mim e também como possibilidade de encontro com o outro e de acolhimento. Atualmente percebo uma preocupação ainda com a forma, principalmente com a palavra, mas também uma preocupação com a apresentação da poesia, no seu encontro com o papel ou a imagem ou o som, e algumas tentativas de expandir o conceito de poesia como texto. Eu também convoco a poesia, estimulando-me a partir de cursos de escrita, leituras, exercícios de escrita, etc. Antes a escrita era uma necessidade de expressão. Hoje, eu sinto que é outra coisa, mas não sei ainda que nome tem (risos). Quanto a segunda pergunta, se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos e dizer algo a mim mesma, eu só diria: continue e obrigada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que eu gostaria de fazer é escrever um livro em que se encontram a poesia, outras experiências estéticas e minha área de formação e atuação profissional. Deixo aqui registrada a intenção para que eu mesma me cobre no futuro (risos). Sobre o livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, eu não sei responder, gosto de ser surpreendida pela leitura.