Leonardo Aldrovandi é escritor e compositor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia sempre pensando no café da manhã porque, antes dele, não consigo fazer muita coisa. Sou uma pessoa muito ligada em comida, o resultado você pode ver facilmente nas minhas fotos. Qualquer mau humor costuma ir embora assim que como alguma coisa. E o ânimo para escrever vem muito, no meu caso, da relação com o alimento, seja ele da espécie que for. Dou um exemplo: o autor que me fez começar a escrever ensaios foi Michel Serres. Não fosse a leitura dos livros dele como uma espécie de dieta psicofisiológica, e não como autor oficial de filosofia, autoridade ou referência acadêmica, eu não produziria ensaios. Sentir a leitura como alimento, para mim, é considerá-la um processo digestivo agudo e de longa duração, e está muito longe de tratá-la como esse meio de formação do que os latinos chamavam de cancellarius, aquilo que se tornou o chancelier dos franceses, uma espécie de porteiro entre o juiz da corte e a população, o intermediário da autoridade, uma figura que pode descrever um pouco a conduta e a prática de muitos acadêmicos até hoje, e que, sem um certo cuidado, pode levar ao simples cancelamento da atividade criativa, seja prática ou teórica, em muitas pessoas. A prática da chancelaria. Divagando agora, para exagerar ainda mais nas digressões, podemos sentir algo deste sentido jurídico ainda presente em palavras nossas como “portaria”, por exemplo. Então, pra mim, a leitura e a escrita não tem por objetivo a chancela, ou seja, me deixar passar, entrar ou fazer parte, mas sim ser alimento para produção de outros possíveis alimentos, como numa cadeia alimentar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de manhã, por me sentir descansado e mais concentrado. Existe uma calma matinal, uma escuta interna, que eu não sinto na parte da tarde. Não sei se é o costume com a diferença na posição do sol em relação à janela, um feeling de serenidade ou simplesmente o efeito do café após o descanso. A escrita me aparece como uma espécie de necessidade psicofisiológica, assim como a de compor/imaginar música, que também costuma aparecer mais de manhã. Já a de ver televisão, dedilhar o piano, ler, estas outras coisas boas, aparecem em geral mais tarde, durante o dia ou à noite. O trabalho intelectual e artístico noturno é muito raro no meu caso. Por isto, prefiro ver tevê ou dar aulas à noite, por exemplo. Ao contrário de muitos artistas, eu adoro assistir TV, especialmente mesas redondas de futebol, que me relaxam bastante e talvez me iludam na conexão com a minha classe média.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados, não existe rotina diária, embora exista muita continuidade e disciplina em cada atividade, sendo elas diárias. Elas se dão em ciclos de atividade que dependem de projetos, sejam de livros ou de obras artísticas específicas. Isto, no meu caso, depende também dos assuntos, pois escrevo música, poesia, romance, ensaios e textos teóricos. Nunca tenho meta diária alguma, apenas uma prática constante que me faz terminar certas coisas aqui e ali.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo ao mesmo tempo em que leio muitas coisas. As leituras se cruzam e me oferecem imagens. A partir das imagens vou tecendo textos e obras ao mesmo tempo. Geralmente existe alguma ideia inicial que se transforma depois. A ideia costuma ser apenas um estopim. Depois costuma se queimar e virar outra coisa. Em geral, passar da primeira página é um grande passo, pois a partir dali você já tem “alguma coisa”… creio que é mais fácil moldar uma massa do que iniciar a primeira frase, não? Quando não tenho ideia alguma de início, simplesmente anoto coisas aleatoriamente a partir de algo dado e admirado, e então vou transformando o que foi anotado em caderno antes. A pesquisa é vital no meu caso. Ela move o que eu escrevo e é ela que desfaz muitas dificuldades. Mas para o texto ganhar vida própria, ela precisa ser esquecida também. Acredito que a pesquisa é um recurso, não um fundamento de um projeto criativo. No entanto, acredito que no caso de um projeto teórico, mesmo quando ele mesmo é um tanto criativo, a pesquisa tem um papel mais fundamental, evidentemente. Há livros super projetados, até matematicamente falando, em que sigo um plano claro, como meu livro de poemas Da lua não vejo minha casa, que imita estrutura medievais, outros que seguem o lema “caminhando e cantando”, ou que são um apanhado de coisas, não tendo um plano específico ou rigoroso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que não se evita ansiedade, medo, fases depressivas, mas tudo isso vai e vem. Acho que qualquer pessoa minimamente interessante vai passar por essas coisas sempre. Muito importante como estímulo é falar do papel das pessoas nos processos de produção, já que o trabalho de escrita costuma ser mais solitário. Isso ajuda a sair de si mesmo e espantar alguns fantasmas. Pois muitos trabalhos se nutrem de motivações externas. Por exemplo, meu livro de teoria Música e Mímese, que será publicado em 2019, pela Perspectiva, foi muito incentivado pelo grande editor e amigo Jacó Guinsburg. Sem as palavras de incentivo e as conversas com ele, no auge da sua sabedoria, eu não teria escrito e terminado o livro, apesar de ter feito pesquisa sobre o assunto desde muito antes, assunto de estudo por anos. O incentivo de um editor ou de um amigo pode ser fundamental às vezes, como no caso do editor e amigo Vanderlei Mendonça, ao ler o meu livro de poesia Da lua não vejo minha casa. A Luana Chnaiderman, minha companheira, escritora, sempre é uma leitora fundamental da minha literatura. Esse diálogo é vital para ambos. Já até publicamos juntos um livro com pseudônimos. No caso da composição musical, sempre envio meus trabalhos para amigos mais próximos, para sentir o que podem dizer a respeito. A escuta e leitura de cada um é sempre surpreendente e pode nos alimentar muito. Tenho convicção de que ouvir palavras de amigos e conhecidos, desde que não tenham visões autoritárias ou julgamentos de chanceler, nos ajuda a atenuar esses sentimentos ruins e inevitáveis, mesmo que sejam críticas. O diálogo nos faz sair um pouco desse templo tão cultuado pelo escritor ou artista do “Eu Criador”. Por outro lado, depois de receber alguns “nãos” de editores e em concursos do próprio meio acadêmico, não tenho tanto medo ou vergonha de apresentar projetos e ser rejeitado, como já tive antes. Vejo que muitos meios de julgar são tendenciosos ou até mafiosos, seja por princípios escusos, apadrinhamentos, limitações estéticas, teóricas ou mercadológicas. É comum simplesmente não receber resposta de uma editora, por exemplo. Creio que pode haver sim um desdém, ou no mínimo, uma displicência, na postura de alguns editores e acadêmicos em relação a certos envios ou tipos de trabalhos e trajetórias. Não falo de todos, evidentemente. Há boas práticas em vários lugares. Mas, quando comecei a receber algumas negativas, cheguei a pensar em adaptar alguns trabalhos às necessidades do “gosto” ou “do mercado”. Por exemplo: escrever romances do tipo “realismo-família”, como os que estão bem na moda hoje em dia. Depois decidi que deveria enfatizar ainda mais o lado talvez pouco palatável ou mais carregado no trabalho com a linguagem dos meus projetos e esquecer esse tipo de apelo mais ligeiro, ou do enredo romanesco mais tradicional, familiar ou gracioso mais em voga. O importante mesmo é seguir o seu caminho de forma independente e procurar publicar as coisas da forma que for. Acredito que levar alguns “nãos” pode até servir de incentivo para a produção mudar e para uma revisão de obras que podem se tornar até mais independentes. Algum reconhecimento todos precisam, e isso é importante, mas ser reconhecido continuamente pode suavizar demais as produções e emperrar autores na imagem de si mesmos. Em oficinas que dei e em alguns eventos, conheci uma série de escritores que só não o são de fato simplesmente porque não põem o que fazem no mundo, não publicam. Outros já o são, mas passam pelas dificuldades de visibilidade e distribuição das publicações alternativas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
As revisões são incontáveis e infinitas. Se não tivesse que entregar um trabalho, não haveria fim. No meu caso, chega a ser uma obsessão e sempre envio a pelo menos duas pessoas antes de querer publicar qualquer coisa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente escrevo tudo ao computador, mas quando comecei a escrever poesia, era tudo à mão. Agora, mesmo poesia, faço diretamente na tela do computador. Não tenho o costume de anotar coisas na rua, como alguns amigos poetas, mas anoto muita coisa nos livros que leio. Música é um pouco diferente, os primeiros esboços são sempre feitos meio que à mão. É uma relação estética diferente. Parece que a imagem sonora mais bruta, inicial, pede um tapa inicial feito à mão. Mas isso só no primeiro momento. Logo passo o esboço ao computador, pois minha caligrafia é terrível…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que as ideias vêm das leituras que fazemos e cruzamos entre si. Além disto, vêm das conversas com pessoas e amigos, cursos, e hoje, o que assistimos e lemos por aí. Sabe, desenvolvo uma teoria mimética baseada na ideia da assimilação: um processo que ocorre entre sujeitos que podem se dar tanto em obras, por exemplo, e receptores. Neste processo, vão operar sensações, afetos e representações entre ambos sujeitos. É através deste processo mimético que eu consigo pensar em como as ideias aparecem, subprodutos desse processo. Nada nasce do nada. Sobre hábitos, não os cultivo para me manter criativo, mas tenho alguns hábitos de vida cotidiana diretamente ligados à produção: escrever, ler, plantar, cozinhar, fazer caminhadas, dar aulas, muitos dos quais sem horário muito fixo ou regrado. Um hábito importante da minha prática são as contínuas estadias no sítio no sul de Minas, lugar que me abre a cabeça e me faz relativizar muito as coisas, os valores da cidade, das redes sociais, da academia, as angústias de falta de visibilidade, de poder, de trabalho etc. Ali, a produção intelectual e artística rende bastante.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que o que muda com o tempo é a forma como você encara a produção. Ao menos para mim, não se trata mais daquela crença na expressão do meu eu profundo. Muito pelo contrário, é um trabalho como qualquer outro. É como ser sapateiro e desenhar sapatos, você precisa de pesquisa, técnica e estética. Eu diria a mim mesmo, ainda adolescente, o seguinte: você não é especial por sentir e fazer o que faz, mas manda brasa e continue fazendo!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um próximo livro de teoria chamado Mimese na Canção Pop e revisar e reescrever meu romance Voos, Penas e Bicos novamente. Também gostaria de terminar um ciclo de canções pop que comecei a fazer com meu amigo cantor Wander B. e algumas composições instrumentais para intérpretes amigos. Um livro que gostaria de ler (ou fazer!) seria sobre A riqueza das expressões verbais no interior de Minas, com gravações in loco.