Leocádia Regalo é professora e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Normalmente acordo tarde. Não sou madrugadora. A não ser que tenha compromissos marcados ou que ande angustiada com algum problema – neste caso, desperto cedo, prefiro sair da cama e ocupar-me com actividades que me distraiam um pouco da preocupação: caminhar, ler, meditar, ouvir música, fazer artesanato e muitas vezes orar, lendo textos bíblicos.
Acordar, para mim, é iniciar um novo dia, em princípio bem preenchido. Por isso, o pequeno-almoço é uma refeição que muito me agrada, porque me traz energia com os alimentos que preparo devagar e que depois saboreio com calma, normalmente sozinha e em silêncio, sentindo profundamente o aroma do café. Este é um momento que comecei a cultivar depois da aposentação e que me dá um bem-estar imenso, preparando-me para um dia de trabalho, em que a escrita sempre entra, por inerência da minha profissão (como professora de Português continuo a praticar o meu magistério com jovens que me pedem ajuda, sobretudo na escrita) e porque escrevo texto livre, ensaio, poesia e faço tradução literária e também não literária.
Quanto a rotina de escrita, não a tenho. Para mim, a escrita como criação é uma vocação, e o uso da escrita em situações outras advém das necessidades que se me deparam. Portanto nunca encarei a escrita como profissão, não gostaria de depender da escrita para sobreviver. Isto significa que uma rotina não se coaduna com a minha predisposição criativa, que é variável e inesperada, por vezes. É claro que me disciplino, se tenho de cumprir prazos para entregar um ensaio ou uma tradução, por exemplo, mas isso não corresponde a uma rotina. Ou seja, a escrita absorve-me mas nunca me escraviza. Porque eu não deixo…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem um ritual para a escrita?
Normalmente gosto mais de escrever ao fim da tarde e pela noite dentro. Isto significa que, nesse momento, me recolho no meu escritório, onde tenho tudo à mão – uma variada biblioteca, dicionários, prontuários, gramáticas, computador – e me concentro na escrita. Não sou capaz de trabalhar na escrita fora de casa; a não ser anotar rapidamente alguma ideia que me surja ou fazer alguma pesquisa numa biblioteca pública. Em contrapartida, às vezes leio no café, na esplanada, à beira-mar, e sabe-me bem. Essas leituras acabam por reverter em tudo o que escrevo, porque elas alargam o meu conhecimento do mundo.
Se quisermos designar tudo isto por um ritual, devo dizer que, ao escrever poesia, me isolo completamente. O poema é sempre escrito pela noite dentro, embora a sua gestação ocorra durante dias e dias, até chegar à folha em branco quase pronto. E para a poesia, necessito de um tempo interior que nunca se coaduna com rotinas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita?
Escrevo em períodos concentrados, em função dos compromissos ou dos projectos que abraço. Não sou capaz de destinar uma hora do dia para me obrigar a escrever um pouco, como se tivesse de praticar a escrita como se faz exercício físico para manter o peso. Até porque não creio que, depois de se dominar os mecanismos de escrita, seja preciso escrever para não se perder a mestria. Quem escreve bem sabe sempre escrever. Quem escreve mal continua a escrever mal, mesmo escrevendo todos os dias. Para mim, a escrita é uma necessidade: para expressar a minha concepção existencial – se escrevo poesia – ou para manifestar a minha opinião sobre um determinado assunto – se elaboro um comentário, um ensaio – ou até para criar uma nova versão de um poema ou texto, quando traduzo.
Se tenho uma meta de escrita? Sim, tenho: a qualidade… Por isso sou incapaz de me enquadrar em esquemas editoriais de entregar para publicação um livro todos os anos. Não concebo a escrita como uma empreitada que responde às exigências do marketing. Sou totalmente independente e livre dessas pressões. Escrevo o que quero, como quero e quando quero. Publico, portanto, quando entendo que o devo fazer.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende muito do que escrevo. Se tiver de escrever um ensaio, existe todo um trabalho de reflexão que é suportado em pesquisa e na organização de um esquema conceptual que vai servir de alicerce a toda a exposição e argumentação. Há que planificar primeiramente. Só depois construir o edifício, com os materiais adequados, que é o texto. E quando falo de materiais adequados, refiro-me às exigências formais que dão consistência à substância do que escrevo. Tem de haver um equilíbrio perfeito entre a ideia que se defende e a modalidade de expressão que se usa. A dificuldade reside precisamente nesse ponto. Por isso a escrita é tarefa árdua e morosa, para mim, embora me dê prazer quando termino o texto e sinto que ele corresponde ao que eu pretendia manifestar. Assim, o difícil não é começar. Construir e sentir a solidez do edifício é que dá trabalho e é o grande desafio da escrita.
Mas, se se tratar de poesia, então o processo é totalmente distinto. Aí, vamos falar de epifania, de iluminação, de transporte, que precisa ser consubstanciado naquele momento em texto poético, mesmo que careça posteriormente de trabalho oficinal, lapidação, constante aperfeiçoamento que o vai transformar em arte.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projectos longos?
Neste ponto, devo dizer que me confronto, muitas vezes, com ansiedade e insegurança. Acabo de publicar um livro de poesia em que, durante dez meses, escrevi com o poeta brasileiro Álvaro Alves de Faria. Trata-se de uma obra que tem algo de inédito na sua construção: o Álvaro enviava-me, por e-mail, um poema e eu pegava no último verso do poema dele que passava a ser o incipit do meu poema; por sua vez, ele continuava a escrever nesta cadeia, com o mesmo procedimento, e assim escrevemos quarenta poemas. É evidente que este desafio, que se concretizou no livro A Duas Vozes, causou-me apreensão em muitos momentos, o tal medo de não corresponder às expectativas. E, na poesia, é preciso um tempo interior que, quantas vezes?!, não se compadece com a fuga das horas e dos dias. Então, ficava com aquela preocupação de ver o tempo passar e de não ter surgido o poema que me agradasse para continuar esta escrita dual; isto gera insegurança. No entanto, houve sempre uma cumplicidade entre nós que acabou por apagar todas as marcas indesejáveis da procrastinação. E ficámos realizados com o resultado deste projecto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tenho uma grande preocupação com a correcção linguística e dedico imenso tempo a “jardinar” a escrita. Até ficar a meu gosto, o texto passa sempre por um apurado trabalho oficinal. Há palavras que substituo, que retiro, que repito, sabendo sempre o efeito sugerido por essas alterações. A propriedade vocabular ou a evocação metafórica jogam nos dois tabuleiros: o da exigência e o da criatividade. Costumo, por vezes, guardar um poema por alguns dias e, quando volto a ele, embora a ideia permaneça na sua essência, dou-lhe asas para se afoitar na expressão. A escrita progride constantemente. É uma actividade morosa, solitária, por vezes quase clandestina, que me exige um ambiente de recolhimento e de concentração. Levo muito tempo sem conseguir dizer às outras pessoas que estou a escrever um novo livro. Quando o faço, já tenho o trabalho muito adiantado, já tenho a certeza que vou pô-lo cá fora.
Na escrita literária, normalmente, escolho alguém que também seja escritor para começar a mostrar um ou outro poema. É sempre uma pessoa da minha inteira confiança, com quem me sinto à vontade para trocar ideias, porque sei que, de forma construtiva, vai fazer uma leitura crítica do que escrevo. Estou sempre aberta a sugestões, porque sei que elas podem melhorar residualmente o que escrevo. Nesse momento, até a revisão formal entra em linha de conta. Como detesto gralhas, sinto que outros olhos que leiam o meu texto as podem detectar no seu disfarce. E isso acontece mesmo, porque lemos o que pensamos e não o que ficou escrito…
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha relação com a tecnologia é boa. Nunca me afastei dela e, ao longo dos anos, sempre fui tirando partido dos seus recursos. No entanto, o que escrevo directamente no computador é aquilo que funciona para mim como escrita automática, funcional, do dia-a-dia, por exemplo, estou a responder directamente no computador às perguntas desta entrevista.
Se se tratar de escrita literária ou de ensaio, escrevo sempre à mão. Preciso ver nascer as frases, seguir cuidadosamente o seu crescimento, observar a mancha gráfica manuscrita, com correcções, acrescentos, desvios… numerando a sequência das adendas, cortando as palavras desnecessárias, eliminando as redundâncias indesejadas. Este tipo de rascunho sempre foi, para mim, gerador de uma escrita que admite variantes até à decisão final. O computador não me permite escrever assim; a folha em branco é um desafio muito maior do que a verticalidade luminosa do ecrã. É evidente que, na fase final, o meu texto chega ao computador, mas vai totalmente concebido, urdido, aperfeiçoado formalmente, para ser editado em definitivo.
De onde vêm as suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para ser criativa?
As minhas ideias vêm da vida. É decisivamente importante ter vivido – e muito – para se poder escrever. E viver passa por sentir, experienciar, absorver, confrontar-se com a realidade e com os outros, sofrer, celebrar, explorar, doar-se, abrir-se ao mundo na procura incessante de um sentido.
Sempre vi na viagem uma possibilidade imensa de angariar ideias para a escrita, pois o conhecimento de outras paragens traz-me sempre a surpresa , positiva ou negativa, da descoberta de outras geografias e de outras gentes. A música funciona também como um poderoso indutor de actividade criativa. Tal como a pintura, a dança, o cinema, a Arte na sua diversidade. A leitura é imprescindível para mim, desde a grande literatura à informação pura e dura dos textos eruditos e/ou científicos, sem descurar a boa crónica ou o artigo de opinião, os bons catálogos de arte, as revistas quer impressas quer digitais. Neste ponto, sou cada vez mais selectiva e só leio o que me agrada mesmo, o que não quer dizer que entre pelo facilitismo – gosto de me confrontar com o exercício de leitura e releitura de um texto e expandi-lo nos sentidos que ele me oferece. São estes textos os que mais me fazem pensar e tirar conclusões.
Há, no entanto, um hábito que cultivo e resulta em grande acréscimo para a criatividade: a prática do silêncio, a escuta interior, a necessidade de fazer descer todas as partículas em suspensão que toldam a água da memória até que a evocação surja na transparência do que há para revelar… É uma atitude que me ocorre quando caminho, à beira-mar, por exemplo, ou quando sozinha entro na noite, no meu recolhimento. Sempre longe do alarido da televisão ou da intromissão de redes sociais. Às vezes com música de fundo, normalmente clássica ou jazz, a fazer contraponto ao pensamento. Em plena comunhão com a minha solidão, sabendo-me privilegiada por me poder concentrar desta maneira. Os anos trouxeram-me o gosto de saborear o silêncio.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar á escrita de seus primeiros textos?
Penso que houve mudanças, na minha escrita, sobretudo nos anos iniciais. Há uma aprendizagem e uma progressão inevitável, à medida que vamos dominando sobretudo as tipologias textuais. Isso ocorreu na minha juventude e comecei a sentir que a escrita era para mim algo que se coadunava com a minha forma de existir. Daí a produção de textos livres, de fragmentos diarísticos, de preces, de cartas, de reflexões, de breves ensaios sobre literatura, de versos que iam povoando papéis e cadernos avulsos e que ficaram inéditos. Comecei a publicar poesia tarde, aos 47 anos, num momento em que já dominava substancialmente a escrita. Talvez por isso nunca senti que tivesse publicado algum poema que mais tarde enjeitaria. Ainda hoje, quando volto aos meus primeiros livros, sinto-me perfeitamente em paz com o que escrevi e revejo-me no que manifestei. Mesmo do ponto de vista formal, não faria grandes alterações. Penso que se deve esta atitude ao facto de ser uma escritora bissexta, de, em vinte anos, ter publicado seis livros de poesia, paulatinamente, o que me permite amadurecer a escrita em cada obra, antes de a entregar ao leitor.
Que projecto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sinto-me disponível para abraçar projectos com que me identifique, mas fico à espera que eles surjam, não tendo em vista nenhum concretamente. Penso voltar à poesia para infância, uma área fascinante em que me estreei com sucesso com Lia no país da poesia, um livro que alia a poesia à pintura, com reprodução de telas da pintora Maria Guia Pimpão, na intenção de despertar e motivar a criança para a Arte.
Quanto ao livro que gostaria de ler, posso dizer que ele existe, pois tenho a íntima noção de que não tenho vida suficiente para ler o que me falta ler… As boas livrarias continuam a ser, para mim, templos do conhecimento, da descoberta e da viagem.