Lenio Luiz Streck é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS e professor permanente da UNESA.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não. De rotineiro apenas o café moído na hora e os jornais e atualização dos e-mails. Meu café é escolhido com muito cuidado. Os melhores grãos, indicados por especialista. Como leciono na Colômbia também, de lá me abasteço com os melhores. Mas já descobri bons grãos brasileiros. Levo o café a sério. A rubiácea deve ser degustada como merece. Grãos cheirosos, o barulho do moedor, a água escorrendo aos poucos e, bingo. O melhor café, com pão fresquinho, mel, nata e fatias de salaminho ou presunto. Por vezes, ovos fritos. O café da manhã e o jantar são os momentos que mais curto. O jantar, porque precedido de vinho, primeiro uma taça de branco e, depois, um tinto encorpado. Gosto do vinho forte, com corpo, daqueles que se deve “tomar com garfo e faca”. Charutos também são inspiradores. Fumo um a dois charutos por semana, sempre ao lado do laptop.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo em qualquer momento. Muitas horas por dia. Poucos acreditarão no que estou dizendo, mas é vero. Escrevo sem disciplina. Em partes. Paro, continuo e assim vai. Na verdade, é uma compulsão. Passo o dia fazendo isso. Interrompo quando saio, quando vou fazer exercícios e nas viagens, embora escreva nos aeroportos e nos voos. E, é claro, não escrevo quando assisto Walking Dead e outras séries favoritas. E quando leio meus livros, principalmente de literatura. Aconselho aos meus alunos: quando você estiver meio brocoxô, leia Shakespeare. Leia Henrique VI. Medida por Medida. Ou Cervantes. Sério. Freud leu toda essa gente. Lacan os leu. Existe o belo, sim. Por isso há respostas corretas em direito. Chico Buarque é melhor que Chitãozinho e Xororó. Não é uma questão de gosto. É possível demonstrar isso que estou dizendo. Por isso Dworkin disse que Shakespeare era melhor que Molieri. Sim, gosto se discute. Música se discute. Literatura também. E textos jurídicos também. Não sou relativista e nem cético. Não se pode ter qualquer opinião. Há opiniões melhores que outras. Assim como há textos bons e textos ruins. Se nós não conseguirmos dizer que um texto é melhor do que outro ou que uma decisão jurídica é errada e a outra é certa, é porque fracassamos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse, escrevo todos os dias. Não passo nem um dia sem escrever. Levo o laptop comigo. Não consigo é escrever no celular. Fico impressionado com quem escreve com dois polegares. Parece-me meio primitivo. Polegar foi feito para segurar coisas. Nunca pensei que a humanidade fosse utilizar esse dedo para algo que ele não foi forjado. Não, não tenho meta. São tantos textos e demandas que é impossível fazer metas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É tudo ao mesmo tempo. Começo sempre com a tela em branco. Sei que o texto vai sair. Por exemplo, uma coluna semanal no Conjur. No sábado, inicio. Amadureço no domingo, concluo na segunda e na terça reviso na Universidade. Sou desorganizado em termos de guardar anotações e para encontrar livros nas minhas bibliotecas de casa e de minha casa na montanha (a Dacha). Na Dacha é onde mais gosto de escrever. Lá sempre é fresquinho e, mesmo no verão, há nevoeiro, que dá o maior clima.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho tido travas nos últimos anos. Já as tive. Minha premissa: o texto vai ter de sair. O que faço é revisar, por vezes, mais de dez vezes o mesmo texto. E ainda passo para a revisão de meus assistentes. Neste momento tenho seis projetos de livros em andamento.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Exato. Faço sempre revisões. Nunca um texto meu vai para publicação sem várias revisões. Tenho guardas várias versões de textos anteriores ao definitivo. Não os apago.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente já não escrevo à mão. Já fiz muito isso. Escrevo nas páginas dos livros que estou lendo. Em palestras faço anotações em papéis, que depois perco. É inexorável. Com relação à tecnologia, sou um jurássico com um laptop na mão. Uso-o como se fosse uma máquina de escrever sofisticada. Fico impressionado com quem consegue escrever em um Mac. Tenho ojeriza disso. Teria que fazer um cursinho para aprender e acho isso uma perda de tempo. Isso é como aquecimento dos bancos do meu automóvel, que só me dou conta que existem quando a Doroty, minha cachorrinha, liga os botões pisando sem querer no painel. E meu traseiro fica quente. Outra coisa: pesquiso pouco na internet. Quando tenho dificuldades, terceirizo para minha equipe, que é composta de dez pessoas. Mas tudo passa pela minha mão. Para não esquecer: acho que a humanidade está andando para trás por causa dos hábitos. Explico: as pessoas já não escrevem textos. Comunicam-se por sinais. Emojis. Ou gravam mensagens. Por que não telefonam? Porque não querem ter a angústia de ter de encarar o outro. Aliás, nas Viagens de gulliver está descrito o ato de descobrimento dos emojis. Um cientista da Lapucia propôs que as frases fossem substituidas por monossílabos ou onomatopeias. Bingo. Em 1726 Jonathan Swift, escritos de Gulliver, já sacara essa questão de que linguagem é mundo. Menos linguagem, menos mundo. Escreva menos, leia menos e ficarás com menos mundo. Wittgenstein sabia demais disso. Machado de Assis também. Sou fã de Machado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Muitas delas vêm da madrugada. Acordo quase sempre às quatro e meia. Não porque eu quero. Simplesmente acordo. Fico revirando na cama. Pensando. Por vezes, anoto as ideias. Outras, memorizo e de manhã passo a esboçar o texto ou as inserções em pareceres, livros ou artigos que foram objeto de minha insônia. Mas durmo de novo meia ou um hora depois. O acordar sempre à mesma hora é um problema, porque corta o sono ao meio. Por vezes, tomo meio Stillnox, que é um indutor de sono e que tem nome de banda de heavy metal. Muitas ideias surgem do debate com minha equipe do Dasein (Núcleo de estudos hermenêuticos). Tem um aluno que tem a tarefa de anotar tudo. Depois ele me passa um resumo. E dali vemos o que utilizar em palestras e artigos. Há livros como o meu recente Dicionário de Hermenêutica que levou mais de três anos para ser concluído.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Muita coisa. Como diz Tiger Woods, quanto mais treino, melhor jogo. Ler muito e escrever bastante faz com que a cada dia a escrita flua melhor. Os textos simplesmente exsurgem. Começo a escrever e vão saindo. Agradeço à literatura. O programa Direito e Literatura (TV Justiça e TV Unisinos) que ancoro há uma década me proporcionou esse mundo maravilhoso da literatura. Ler muitos livros é como o treino do Tiger. Quanto ao passado e ao que já foi escrito por mim, é claro que escreveria tudo de modo diferente. Como diz Heidegger, o tempo é o nome do ser. O tempo é Ser e Ser é Tempo. Mas a gente só pode falar sobre o que fizemos depois que fizemos, como dizia o poeta Manoel de barros, um fenomenólogo da cepa. Só posso falar acerca de meus erros ortográficos e de estilo de trinta anos atrás por causa da distância temporal, que, na hermenêutica, é um aliado e não um inimigo. Kronos (tempo): ele nos domina. Forja.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah, essa é fácil. Meu primeiro romance, que até já tem nome e roteiro. Está no forno há uns quinze anos. Um drama judiciário, envolvendo juízes, promotores, servidores. O personagem que conta a história é um advogado, que é meu alter ego. O romance se passa antes da informática. Antes dos telefones celulares. Um pouquinho antes. Um ex-escrivão é encontrado morto em um motel. E ali tudo começa. É um romance com notas de rodapé!