Leila Santos é artista interdisciplinar.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu não tenho uma rotina específica, a verdade é que odeio rotinas, tem dias que acordo um pouco mais tarde, tomo um café e vou planejando o que realizar durante o dia, mas como mãe nem tudo sai como planejado. Tem dias que acordo já com a agenda preparada são os dias que dou aula como professora voluntária do Projeto Arte Sim! As aulas são no período da tarde e pela manhã reviso o planejamento de aula e sigo o baile do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma pessoa noturna, sinto que produzo com mais intensidade durante a noite, com o silêncio das ruas, o momento ideal para ouvir a minha voz interior. A minha escrita muitas das vezes vem como um expurgo, com a necessidade de esvaziar o meu orí (cabeça) sendo assim há momentos em que não importa a hora do dia, eu preciso escrever, então escrevo! Meu ritual de escrita e para tudo, é tomar uma xícara de café bem quentinho e forte, coloco uma música ambiente para concentração e foco, fico um tempo ouvindo e sentindo as vibrações binaurais que a canção provoca e busco inspiração quando não tenho nenhuma história já esquematizada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Queria muito escrever diariamente, mas as demandas diárias limitam muito a minha escrita, às vezes preciso me forçar a tentar terminar algum escrito. Existe um período que estou mais concentrada e determinada pela escrita, e escrevo bastante. Aproveito bem esses momentos de determinação. Não me considero escritora, que sobrevive de sua escrita, logo eu não coloco a escrita como prioridade. Comecei a me empenhar mais para escrita o ano passado, aonde concorri pela primeira vez em um festival na área de literatura e reconheci a necessidade de exercitar esse outro lado que tenho, o de contar histórias. Este ano de 2022 coloquei como meta ler mais livros, e escrever mais.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando me descobri uma mulher negra, passei por momentos dolorosos com essa descoberta, o que me libertou foi a escrita; escrever as minhas dores e a minha ancestralidade perdida, assim escrevi mais sobre a minha família (meus ancestrais), como um diário, queria registrar tudo que a minha memória ainda permitia acessar. Registrava as histórias que meu pai contava quase diariamente sobre sua infância/adolescência, escrevia sobre o meu avô, por ser uma referência em termo de ancestralidade. Com o tempo pesquisando sobre ancestralidade, passei também a escrever para que outras pessoas pretas tivessem acesso à informação. Como o poema da Capulana, que diz assim:
“Há de se inventar uma capulana imensa
Para salvaguardar todas as crianças pretas,
do genocídio diário, da dor e da fome.
Com o calor morno, e o ninar das cadeiras
De nossas mamas África, dos becos e vielas,
das favelas do Brasil.”
A Capulana é um tecido enorme e colorido usado pela africanas para diversas utilidades, além de carregar seus filhos e baldes, muitas delas recebem uma Capulana no dia do seu casamento e passam por gerações.
Um pouco de esperança análoga, a representação da imagem que vemos das africanas carregando seus filhos nas costas, com as mães negras brasileiras. Acaba sendo um poema didático, pois quem não conhece a Capulana, ou perguntará o que é, ou pesquisa sobre.
Pesquisando sobre as icnografias da escrevidão me deparo com as fotografias das amas de leite, e escrevo o poema:
o ventre fecundo pariu
corpos negros, marcados de sangue
da minha ama de leite
feito bezerro desmamado
O cão nos separou, e agora o que serei sem leite?
Segundo as pesquisas iconografias, existia um mito que o leite materno das mulheres escravizadas era forte, estas mulheres eram trazidas para a casa grande para alimentar os filhos dos seus senhores e muitas delas tinham seus filhos arrancados de seus seios, proibidas de alimenta-los.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido muito mal com a procrastinação, mas quando acontece, vou buscando referências para o que pretendo escrever, seja de escritores ou filmes, muitas vezes assisto aos filmes, pois sou muito visual, dali observo o comportamento dos personagens e o enredo. Tenho sérios problemas com projetos longos, tenho vários textos não finalizados, esperando em algum momento eu voltar ao mesmo sentimento com que comecei. No fim, ler e reler faz com que eu mude várias coisas e o texto não finaliza. É um porre! Pois, tenho que lidar com os bloqueios da escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso quantas vezes forem necessárias, muitas vezes altero algo, e quando me sinto bloqueada o esqueço, e retorno quando me sinto inspirada para terminar. Certos escritos costumo compartilhar nas minhas redes sociais, assim recebo o comentário dos meus amigos. Que por alguma razão curtem o que eu escrevo!
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sempre tive vários cadernos, sempre escrevia neles e até prefiro, mas depois teria que passar tudo para o digital… ultimamente uso bastante o celular e o ‘drive’ como bloco de notas pela praticidade, embora ainda cultive o hábito dos cadernos rabiscados.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A minha escrita foi reanimada através do coletivo pé de poeta-GTOBA, um grupo de teatro da/o Oprimida/o de Lauro de freitas BA, onde trabalhamos bastante a escrita coletiva, escrevendo cartas, poesias usadas nas montagens teatrais. Eu escrevia diários na adolescência, mas não acreditava na minha escrita, e o contato com os jovens do coletivo fez com que eu acreditasse que eu poderia ser uma poetisa. Considero-me uma pessoa bem intuitiva, aprendi que a intuição é a voz de meus ancestrais, e eu as ouço, quando por algum motivo essas vozes estão bloqueadas, eu recorro às pesquisas, a observação das pessoas ao meu redor, o movimento da natureza e do meu eu. Escrever sobre ancestralidade é também escrever sobre mim, o que é bem difícil. Sabemos que o processo de colonização surgiu com o apagamento, a minha descendência ainda é um mistério, apesar de hoje em dia já temos o teste de ‘DNA’ da ancestralidade, mas o que me incomoda é não ter essa informação no meio familiar. Através dessas (‘nuances’) misteriosas, vou buscando conhecer minha história, minhas raízes. A minha ancestralidade é de onde tiro a minha criatividade, pois o meu povo é o ser mais criativo que já existiu.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu escrevia diários, e muitas coisas sobre amor-romântico, hoje em dia comparo as minhas escritas de antigamente com as atuais e observo que o tempo me transformou em uma pessoa dura, forte, e com muito mais referências. Sinto que o que eu escrevia antes era um escrito falso, maquiado, e o que escrevo hoje, embora muito triste e de palavras duras, são as cicatrizes que o tempo não apagou! Escrevo com muito mais intensidade e didaticamente mais relevância.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero dar continuidade aos projetos do movimento literário feminino que fundei em Santana de Parnaíba (@coletivoeleko_), o clube de leitura compartilhada que administro juntamente com as manas do Coletivo Sabenças.Desejo para este ano reunir mais mulheres escritoras para produção de escritas coletivas, algo que aprendi com o GTO BA(coletivo Pé de Poeta). Além das produções, pretendo junto a essas mulheres levar nossos escritos aos espaços públicos e privados. Ofertar oficinas de escritas e rodas de leituras nas escolas. Tenho pensado carinhosamente também materializar meus escritos, meu primeiro livro. Este seria o livro que não existe e que eu gostaria de ler.