Lau Siqueira é poeta.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não organizo a semana. Me equilibro na selva que é o cotidiano. O tempo vai girando em torno dos afetos e de alguns poucos projetos. Cada qual no seu tempo. Não pago mais o preço da pressa. A pandemia embaralhou tudo. As perdas foram imensas. O Brasil está entubado pelo fascismo. A vida virou de ponta cabeça, mas ainda estamos aqui. Estou com um livro de poemas quase pronto e um livro de crônicas na fase da seleção de textos. Também um livro para as primeiras leituras em parceria com minha filha, a ilustradora Mariana Siqueira. Um projeto pelo qual tenho muito carinho, mas cujo prazo foi prorrogado por questões nossas. Também preparo um livro sobre minhas vivências na gestão pública. Um compartilhamento de ideias, experiências, possibilidades e articulações. Enfim, “a dor e a delícia” de ser o que é. Esses são meus “vários projetos”. Estou avançando, escrevendo, selecionando textos, pesquisando, reordenando tudo. É isso! Ao mesmo tempo faço uma crônica semanal para a revista Crônicas Cariocas, algumas resenhas e textos sobre arte para a revista Mallarmargens. Alguns prefácios Brasil afora, algumas leituras pessoais, poucos estudos sobre literatura e ponto. Aqui e ali algo se impõe como prioridade. Acho que a arte requer disciplina. Eu sou disciplinado, mas rebelde. Afinal, o poeta vive do inexato, do improvável. Embora todas essas coisas se misturem, às vezes. Finalmente é preciso ser dito: ninguém doma o acaso.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Deixo fluir tudo a vida inteira. Só começo algum planejamento quando já tenho uma produção que me permita fazer escolhas. É tudo uma aventura e, como dizia décio Pignatari, “uma aventura planejada”. Os livros de poesia me exigem pouco. No máximo o suadouro continuado de escrever poemas. A rigor, como dizia Drummond, nunca escrevi um livro. Escrevo poemas. Publicá-los é uma questão de tempo e oportunidade. Será quase a mesma coisa com o livro de crônicas que virá a seguir. Não vou escrever um livro de crônicas e sim reunir e organizar as que já escrevi, revisar, reformular provavelmente. O tempo necessário para isso eu não sei nem preciso saber. Parece, mas não é nada fácil. Nem para começar e muito menos para terminar tudo isso. Um “novo projeto” às vezes fica no purgatório da memória por anos, décadas. O primeiro passo é sempre aquele momento de perder o medo do ridículo ou, pior: da insignificância. Pretendo escrever para teatro. Provavelmente um monólogo. Só que não posso chamar isso de projeto por enquanto.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Penso que a vida da gente é inventar e reinventar rotinas. Ninguém vive sem uma. Por mais surpreendente e espetacular que possa ser sua vida. Imagine o que é a rotina de um motociclista do Globo da Morte. Minha rotina é naturalmente anárquica. Preciso de silêncio sim, mas para ler. Esta é a prioridade zero. Ler é sempre o primeiro passo. Ler os livros e o mundo. Escrever é um desafio gigante. Cada parágrafo ou verso. A forma de dizer e o quê dizer. A fuga dos modismos, das irradiações midiáticas, dos engajamentos emocionais. Todavia escrever não é um ato isolado. Escrever é também ouvir, ler, sentir, desistir, recomeçar, rasgar, deletar, reinventar-se. Eu gosto de ver a escrita como o fruto de muitas inquietações. É um ato solitário, mas coletivo. (tomara que me entendam). Tem sempre uma multidão dentro de quem escreve. Tem sempre um infinito dentro de um haicai. Na hora que me sento para escrever pode cair o mundo. Se rolar um heave metal eu escrevo. Se Lia cantar uma ciranda, também.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Eu moro no litoral nordestino. Há pouco mais de dois quilômetros de uma das mais belas praias urbanas do Brasil. A procrastinação é um desperdício. Nem gosto da palavra e acho que me define pouco. Uso esse tempo para a contemplação pura e simples. Não acho que o tempo da contemplação é um tempo perdido. Procrastinação para mim é isso: o espaço e o tempo de observar, ouvir, sentir. Não somos máquinas, já dizia Carlitos. Tenhamos calma. Ezra Pound levou quarenta anos para escrever Os Cantos. A gente precisa desacelerar essa cadeia produtiva da pressa. Às vezes o que a gente mais precisa enquanto criadores que somos é exatamente o tempo de observar. Precisamos aprender com o ruído dos minutos passando, a densidade dos segundos que vão virando cinza, gastando-se e levando décadas da nossa vida junto. Eu posso até travar, mas não tenho freio.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Uma pergunta difícil de responder. “Não sei” seria a resposta mais exata. Já fiquei exausto após escrever um terceto. Lembro bem: “viver é delicado/ argumento de samba/ sentimento de fado”. Parece brincadeira, mas tecê-lo foi mais pesado que o ar. Não sei considerar qual texto me deu mais trabalho. Também não sei dizer qual mais me orgulho de ter feito. Vira tudo mano. Tudo parceiro. O que eu sinto não é uma coisa nem outra. Mas me encanto quando alguém, por algum motivo, se ocupa de um texto meu. Ser lido é um prazer raro. Revela que não somos assim tão especiais. Somos iguais e a melhor escrita é a que o leitor ou leitora descobre e você nem percebeu.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Não escolho temas para meus livros e menos inda para meus poemas. Acho que a poesia e a vida possuem uma relação muito direta. Você coloca o pé na rua e dá de cara com o poema. A literatura é aquela criatura que vai na esquina comprar cigarros e nunca mais retorna. Viver é a forma mais plena de exercitar a linguagem. Nada mais vivo em um país que o seu idioma. Até mesmo num país como o Brasil que tem um idioma oficial e diversos idiomas silenciados. Estamos sentados sobre um imenso silêncio. Para mim, o tema vai transbordando na aventura que é escrever. Minha poesia caminha comigo, diz de mim e dos meus passos. Quando escrevo não tenho um leitor ideal em mente. Escrever e expurgar, expulsar anjos e demônios. É como jogar garrafas ao mar. Vivo cercado de incertezas exatamente por viver arisco, sem querer me entregar ao comodismo de cada certeza. A certeza nos paralisa. Não creio em modelos, também, portanto a figura do leitor ideal não existe pra mim.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Geralmente publico meus “rascunhos nas redes sociais”. Simples assim. Acho que tudo é processo no ato de escrever. Não existe texto pronto. Portanto, nem se trata de uma vontade, mas de um impulso. Quer exposição maior? Mas não estou preocupado com os clicks que possa gerar. Tenho textos com muitas curtidas que jamais publicarei em livro. A voz do autor deve ser soberana e muito crítica, na verdade a mais crítica. Mas, na pré-produção de um livro, pouquíssimas pessoas leem meus originais antes da publicação. Além de mim, minha editora, o revisor e no máximo um prefaciador ou prefaciadora. Se tiver prefaciador, pois acho esses textos de orelha, prefácio, posfácio etc., absolutamente dispensáveis. Para mim um bom livro de poemas começa com uma boa epígrafe e um bom café.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
O momento exato, não. Mas escrever já era naquele tempo – eu menino – fruto direto das minhas leituras. Foi lendo um livro de Sergio Antônio Raupp que disparou em mim o gatilho da escrita. No livro, o protagonista escrevia sobre tudo o tempo todo, compulsivamente. Parece que gostei da brincadeira, pois comecei imitando esse personagem. Tinha uns 10 ou 11 anos, na época. Não sei o que gostaria de ter ouvido. O que eu sei é que sempre fui seletivo no que eu ouço. Afinal, é nossa a escolha do que fazer com a nossa vida e a poesia é a nossa vida. Eu sempre reajo com muito cuidado. Já fui cordial com críticas até maldosas e duro com elogios fáceis. E lamento que a crítica esteja tão acanhada atualmente, exatamente por culpa dos escritores que adoram resenhas, a foto estampada nas mídias, mas não suportam a leveza pesada de uma bem fundamentada crítica. Ah, digo mais: quem expressa apenas o gosto pessoal não faz crítica. Um bom crítico não deve ler apenas os autores que admira.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Nunca me preocupei em ter um estilo. Schopenhauer dizia que “o estilo é a fisionomia do espírito” e eu me sinto múltiplo. Acho que aos poucos, cada pessoa que escreve vai aproximando de si mesmo essa conjugação ética que é escrever. Isso tudo vai formatando naturalmente um estilo, uma grife. Não posso dizer que algum autor me influenciou mais. Nasci e cresci poeticamente a partir do que me fascinava nas vanguardas do final do século XIX e início do século XX. Observava mais o tempo histórico que os nomes. Já me interessei por coisas que nunca pratiquei. Pelo menos não diretamente. O dadaísmo, por exemplo. Na Poesia Concreta cometi horrores. Cada época, cada movimento, cada autor ou autora, me influencia, pois abro as portas para isso. Aliás, isso não me angustia minimamente. Eu já chutei o balde faz tempo.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Acho que o Brasil está vivendo um grande momento na literatura. Principalmente na prosa. Bons romances estão sendo lançados. Surgem autores e autoras a todo momento, mas ainda acho importante ler Augusto dos Anjos, Maiakovski e toda a tradição russa. Drummond, Geir Campos, Maria Valéria, Conceição Evaristo, Torquato Neto, Orides Fontella, Zila Mamede. São muitos autores e autoras que acho imprescindíveis. Toda grande obra é recomendável. Geralmente fujo das indicações explícitas ou implícitas do mercado literário. O mercado tem se comportado muito aquém da produção contemporânea. Atendendo mais o interesse da transnacionalização das grandes editoras que propriamente a boa literatura que está cravada em toda a comunidade lusófona. Mas repito: a literatura contemporânea brasileira vive o melhor momento das últimas décadas. Tem de tudo para todos os gostos. Recomendo que se leia literatura contemporânea. Procure os catálogos das pequenas editoras, pois tem muita preciosidade por aí.