Karine Bassi é escritora, autora de ‘‘Entulho de Rosas’’.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como eu vou começar o dia depende muito de como eu termino a noite. E na maioria das vezes, por mais pesada que seja a vida, eu sempre caio no sono embalada por um enorme sentimento de gratidão.
A correria dos dias engole tanto a gente, que você só quer dormir até mais tarde e não ter tantos e-mails para responder. De todo modo, meus dias já possuem um protocolo a ser seguido – que no fundo, eu nunca sigo mesmo. Eu tenho a faculdade que me toma a parte das manhãs e o trabalho na escola que me consome durante a tarde. Eu trabalho em uma escola da rede pública como bolsista num projeto que abraça a valoração e resgate da cultura periférica, envolvendo a literatura marginal, dança e teatro do oprimido, além do resgate de jogos de rua. No mais, durante a noite eu busco fazer os contatos e a multiplicação das ideias a fim de encontrar projetos que possam ser desenvolvidos cooperativamente. Entre o vão e a plataforma eu vou escrevendo, editando, produzindo. A rotina é uma das coisas mais chatas e limitantes que conheço, acho que por isso evito tudo o que tende a se repetir.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sem dúvidas, depois das 18h. Sou habitualmente noturna.
Não tem como ter um ritual de preparação para a escrita quando você tem menos de duas horas livres no seu dia a dia. Creio que esse é um dos maiores desafios para autores da quebrada. Aqui a gente sangra todos os dias nos corres diários de sobrevivência, que falta tempo disponível para sentar, pesquisar e produzir um romance cheio de referências e rebuscamentos literários. É por isso que a gente escreve no caminho pra casa, pro trabalho, pra escola. A gente vai se valendo dos espaços entre uma sobrevivência e outra e produzindo com base nas nossas referências mais próximas: na tia que vende bala no portão da escola, no dono da banca de revistas, nas mães da periferia entre tantos outros personagens comuns do nosso cotidiano que raramente são notados. Talvez isso até possa ser considerado um rito, ou talvez seja só o nosso lampejo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias um pouco. Mas não forço a escrita. Se o que produzir não sair de dentro de você com verdade, então não deve ser visto e nem conhecido pelos outros, é só mais uma mercadoria (quando eu falo isso não digo sobre a escrita falseada, não digo sobre as estórias e grandes ficções).
Nunca pensei nessa coisa de meta, eu realmente não me esforço para escrever é uma condição comum da minha alma que entrega às minhas mãos alguns pensamentos exorcisados. E ela os moldam até que tomem corpo e forma. Eu não saberia fazer diferente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Lampejos! Fecho os olhos e me surge um lampejo, observo as pessoas em seu cotidiano e me surge um lampejo, compartilho escrevivências com os meus e me surge um lampejo, a partir daí eu vou me entregando sem medo nenhum pras palavras. O engraçado é que o processo dessa escrita vai surgindo de acordo com a temática. A maioria dos meus escritos marginais surgiram da luta social que eu travo todos os dias contra o sistema. Muitos dos lampejos vem quando eu estou com meus alunos. O mais demorado e que carece muito mais de mim, são os contos, as estórias. Porque a vida real é isso, não há o que você mudar. É injusto demais desmerecer vivência alheia, é injusto mudar o final pra deixar mais alegre se na verdade a coisa é fodidamente triste. Agora as estórias não. Eu tenho um livro chamado “Entulho de Rosas” que é dividido em capitulos, cada um é um retrato de uma forma diferente de escritas. Os contos, por exemplo, foram escritos num momento boêmio da minha vida em que eu havia me mudado de estado. Eu ia para o bar, me sentava em frente ao balcão e me deliciava com as histórias 1u3 ouvia. Enfim, tudo o que escrevo (ainda as histórias) são sempre inspirações na vida dos outros (às vezes na minha), não há uma pesquisa aprofundada, só o meu conhecimento empírico e a nescessidade de explorar as palavras que me vestem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu respeito pra caramba esse momento. Não tenho ansiedade porque não tenho pressa em produzir e nem a nescessidade de produzir por produzir. Eu só deixo as coisas acontecerem. Nunca me preocupei com as expectativas dos outros sobre meu trabalho porque ele é o que é e pronto, não há uma forma diferente de ser. Por exemplo, estou trabalhando em um dos projetos mais longos, é um romance brasileiro, periférico e marginal. Estou nele desde setembro de 2018 e não fiz nenhuma pesquisa – porque ainda que pra muitos isso seja essêncial, pra mim é desnecessário quando se fala daquilo que você tem proprierdade -, é questão de lugar de fala e tal, e além de não ter feito nenhuma pesquisa eu estou procrastinando agarrada com o relógio porque um dia só tem 24h e eu não tenho tido tempo algum, já que não posso me dar ao luxo (de muitos) de me isolar pra fazer render. A gente da quebrada já aprendeu a se adaptar a isso de escrever quando dá, e por isso temos menos material circulando… não é por não produzir, é por falta de oportunidade e tempo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu não reviso meus textos. A maioria deles são apresentados ao mundo como veio. Não que já tenham nascido prontos, é um processo de oração, mas quando eu deixo para terminar depois ou vou mudando muito, fico agoniada porque sinto que estou descontextualizada e que já não posso fazer muita coisa por eles. Leio para alguns amigos antes, apresento em saraus. A publicação quando não é a primeira, é sempre a ultima coisa que eu faço.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou habituada à tecnologia. Muito pelos trabalhos acadêmicos que faço, mas também por ser uma ferramente que eu conheci muito cedo. Meu primeiro diário foi um blog e não um caderno/agenda como o da maioria. Depois de me identificar enquanto escritora, passei a dividir. Parte dos textos iam pras redes sociais (tipos os poemas curtos, haicais e poesias), sem contar nos que eu produzia direto lá quando dava aquela condição. Já as crônicas eram quase todas escritas em papel, num caderno, porque eram histórias que eu subscrevia de pessoas comum e que faziam muito mais sentido pra mim se materializada no papel. Hoje em dia eu não tenho mais essa divisão, escrevo onde as condições apontam.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Costumo dizer que eu escrevo quadros. É, eu escrevo uma fotografia, um quadro parnasiano, um espelho. As ideias vem da vivência dessa gente que é “gente da gente”, sabe? Escrevo sobre meu pai e minha mãe que me inspiram diariamente, escrevo sobre minhas dificuldades e as dificuldades dos meus amigos, escrevo depois de um dia cansativo voltando do centro pra margem nos coletivos lotados, em pé, em que eu leio (expontaneamente) conversas alheias em whatsapp desconhecidos ou quando ouço algumas músicas como a de Tom Waits e Nina Simone. As ideias vem e martelam na minha cabeça, às vezes me atropelam, outras vezes me carregam pra dentro do quadro, da fotografia, do espelho. E eu fico lá, até que quando acabo, volto à realidade, a minha vida habitual; deixo os personagens afetados ou salvos para sempre presos num papel. Lá vão eles. Permanecem assim; não podem ser outros. Já estão inseridos no seu próprio espaço. Agora, sempre que saio de uma história eu não consigo deixar de pensar nessas vidas, apanhar a ousadia de decidir vidas alheias é um bucado complicado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Amadureci, amplimei meu vocabulário, compreendi outros mundos. Quando mais nova, escrevia muito sobre mim e sobre os meus sentimentos. Coisa de adolecente apaixonada sem espectativa de planos e ou projetos. Desconhecia sobre a história, e sobretudo, sobre a minha história. Demorei muito a me entender enquanto mulher negra e periférica, demorei a me compreender e denominar escritora e tudo isso refletia bastante na minha forma de brincar e dar vida às palavras.
Eu diria: Karine, acreditar em si mesma não é um ato de fé, é um dizer: “mãos à obra” . É olhar-se em todos os espelhos, de arregaçar as mangas da blusa, engolir saliva, repor o desânimo, amedrontar o medo, celebrar a liberdade, chorar a solidão e acreditar! Acreditar na volta pelas esquinas, no poema certeiro, no aperto de mão, na textura da carícia. Acreditar no provável e o improvável. Acreditar em si mesma é ter à mão, ter perto. Impedir o despejo, a invasão, o desmantelamento. É saber-se. E que te saibam.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Queria ter uma gráfica, conseguir doações de materiais e publicar todas e todos os escritores que não possuem condições alguma de ter seu trabalho divulgado. E não porque não escrevem, mas porque já nasceram à margem em um mundo onde o mercado editorial (ainda que de editoras independentes) é injusto com o trabalho destas e destes, que muitas vezes, pra ter o seu livro publicado impresso, ganham 2,00 reais a cada exemplar vendido. Isso é desonestidade com a criação do outro. É roubo.
Eu gostaria de ler um livro da Dalva, eu realmente acho que todos precisam conhecer as crônicas de facebook dela e o quanto a sensibilidade humilde dela, me agrada.