Kaio Phelipe é escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa em função do meu emprego, que não tem a ver com literatura. Trabalho em um escritório a trinta e um quilômetros de casa, totalizando duas horas de engarrafamento. Geralmente, uso essas horas para ouvir música ou podcast. Já escrevi muito dentro do ônibus e do trem, mas hoje em dia o cansaço vence o encanto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho nenhum ritual de preparação para a escrita, no entanto costumo escrever mais e melhor durante a noite ou a madrugada. Inclusive, tenho buscado mudar isso e arriscar outros horários, como depois do almoço e aos finais de semana, em ocasiões mais lentas. O resultado é bem diferente, tudo interfere ao passo que escrevo. Há, claro, as poesias que me tomam de assalto a qualquer hora e são muito bem-vindas, mas são exceções, e os textos que nascem sem a menor inspiração ou propósito, por um jogo de palavras que julgo interessantes, e ficam bastante tempo na gaveta. Quando termino uma história, consigo trabalhar em seu embelezamento a qualquer hora do dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Estou sempre atento ao que pode virar texto e pensando em possibilidades de narrativas e combinações de palavras, mas não tenho o hábito de escrever todos os dias. Quando tentei colocar a escrita como exercício diário, vi que repetia muito o vocabulário e, cada vez mais, tenho que cumprir obrigações e sou mais fiel e rigoroso com as minhas leituras do que com a escrita. Quando decido escrever, depois de vencer a procrastinação e a preguiça, ainda há os dias que não consigo ir além de uma ou duas frases.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrever já foi mais fácil. Já estive mais à vontade ao encarar a tela do computador em branco. Sinto que já coloquei para fora as minhas narrativas inadiáveis e os assuntos com os quais tenho mais facilidade. Hoje preciso assumir o que não sei e ser mais atencioso com as pesquisas, porém também gosto bastante dessa parte. Enquanto estou atrás de material, vou buscando e testando a voz que desejo para o texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sou muito bom com disciplina, mas quando inicio um trabalho não deixo pela metade e, ainda que eu deixe para última hora, sempre crio prazos para tentar não procrastinar tanto. Quando me proponho a projetos mais longos, reorganizo minha rotina e incluo práticas que me auxiliam. Faço caminhadas à noite, por exemplo, e minha cabeça vai à mil, consigo pensar muito dessa forma. Meu trabalho mais longo foi uma novela, Para o homem descansando ao meu lado, lançada em 2020. Foi custoso manter a coerência ao decorrer da narrativa e só consegui terminar à base da insistência. Tenho planos para a escrita de um romance, meu próximo projeto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Em meu primeiro livro, Como cuidar de um girassol, nada foi revisado e não mostrei a ninguém até ser publicado. Ninguém nos meus círculos próximos cultivava a leitura e eu ficava bastante envergonhado quando falava que ia lançar um livro. Era uma trava que só existia em minha cabeça, já que quando comecei a contar para minha família, meus amigos e colegas de trabalho, todos abraçaram a ideia e fizeram a coisa toda acontecer. Lancei um livro cheio de erros ortográficos, sem nenhuma técnica e não sabia nada sobre o procedimento de edição. Porém recebi retornos muito positivos sobre o trabalho finalizado. Certamente, o mais importante da literatura não é a técnica. Só entendi a responsabilidade que é fazer um livro e colocá-lo no mundo agora, em minha terceira publicação. Por consequência, meu trabalho é muito maior e faço incontáveis revisões, pesquisas e descartes. A literatura me trouxe muitas amizades e aprendi a mostrar o que escrevo para outras pessoas, com quem me sinto confortável e confiante, caso eu precise receber uma crítica negativa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nunca escrevi à mão. Meus dois primeiros livros foram escritos inteiramente no bloco de notas do celular. Descobri que isso é possível assistindo a entrevistas do Jessé Andarilho, que é um escritor que me inspira muito. Eu passava muito tempo dentro do ônibus, trabalhando e, depois, estudando bem longe de casa e dividia um notebook com minhas irmãs e meus pais. Na época, minhas irmãs estavam na correria do fim de graduação, então precisavam bem mais dele que eu. Quando eu precisava passar os escritos para o notebook, era uma batalha. Ele era bem velho, travava bastante e só funcionava conectado na tomada, por conta da bateria. Caso alguém esbarrasse, a luz caísse ou acabasse, desligava. Perdi muitos textos assim. Me tornei alguém muito mais paciente com o desgaste desse processo. Mas escrever no celular também tem seus riscos. Uma vez fui assaltado e perdi boa parte do texto do meu segundo livro. Reescrevi, mas sinto que a melhor versão era a que estava no bloco de notas. Minha escrita melhorou muito quando deu para comprar um computador novo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tem uma obra da artista Silvia Lermo com um título que gosto muito, que é “Sin paisaje no existo”. Por muito tempo, encontrei inspiração na rua, no urbano ou tentando fugir do estresse que esse cenário envolve. Meu bairro me inspirou muitas poesias, aqui é um território de histórias grandiosas e eu adoro levar os assuntos do cotidiano para um lugar mais sensível. Quando a pandemia e a quarentena começaram, tive que tentar outros métodos. Meu próximo livro, Não existe pecado no lugar de onde eu vim, que sairá em breve pela editora O Sexo da Palavra, é sobre o que encontrei dentro de casa, uma paisagem imutável em um tempo de caos mundial. Acabei gostando muito do desafio de buscar novas inspirações. Mas, com certeza, a base do que me mantém querendo criar é ler cada vez mais o que eu gosto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Não romantizo mais ficar escrevendo dentro dos meios de transporte e prezo pelo conforto para me manter criando. Eu tinha o costume de usar muitas referências e agora procuro desenvolver um texto menos poluído. Apesar de ainda gostar de escrever sobre situações limites que flertam com o indizível e com o incômodo, meus filtros já foram menores. Também penso em fazer meus livros circularem mais e em quem vai ler e, para isso, preciso eu mesmo ficar confortável com o que publico. Criei o hábito da revisão, como nunca poderia ter sido diferente, e só dou o texto por concluído quando ele está a caminho da gráfica. Se pudesse voltar ao tempo dos meus primeiros escritos, só diria para eu olhar mais para meu próprio trabalho. Foi muito bom descobrir que posso escrever e aproveitei muito o início. Mesmo com as falhas, sou bem orgulhoso dos meus contos e das minhas poesias mais antigas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho ideias para muitos projetos. O próximo será um romance. Narrativas longas exigem mais concentração e dedicação, então pretendo começar em minhas próximas férias do emprego. Por enquanto, ando fazendo algumas pesquisas e já tenho uma boa quantidade de informação. Há muitos livros que eu gostaria de ler e ainda não existem. No ano passado, li Enverga, Mas Não Quebra, do Luiz Morando, sobre a vida da Cintura Fina, e Ricardo e Vânia, do Chico Felitti, são livros que contam trajetórias muito importantes para a comunidade LGBTQIAP+ no Brasil. Sou apaixonado por descobrir histórias de quem veio antes e me interessa muito preservar esses nomes. Alguns anos atrás, fui voluntário de uma ONG imprescindível para o avanço do combate e tratamento do hiv/aids e contra o preconceito sorológico, o Grupo Pela Vidda RJ, fundado pelo saudoso Herbert Daniel, em 1989. Tenho um desejo muito grande de documentar essa história através de um livro.