Kah Dantas é cearense, professora de inglês, mestre em literatura e autora de “Boca de Cachorro Louco” e “Orgasmo Santo”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Pelo café da manhã, com certeza (rs). Adoro prepará-lo, criar pratos bonitos, cheirosos e depois comê-lo com gosto. Enquanto o faço, gosto também de ouvir covers acústicos de canções famosas de todo tipo. E depois, sentada à mesa para comer, fico observando o movimento da luz do sol pela janela e os meus gatos brincando pelo apartamento. Esses começos de dias são sempre animadores; fico inspirada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite, absolutamente. Sou uma pessoa muito noturna, que se concentra melhor e produz mais durante as horas escuras. Não há nada de sistemático ou obrigatório no modo como escolho passar os momentos que antecedem à atividade escrita. Normalmente eu leio os livros da vez, mas muito mais para deleite do que como exercício criativo. Outras vezes, apenas sento diante das folhas, do caderno. O que sempre faço, agora que me pego pensando nisso, é espalhar minhas canetas coloridas sobre a mesa. Gosto de tê-las ali se oferecendo, como se estivessem ansiosas para compartilhar essa paixão comigo. Umas lindezas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ah, quem dera! (rs). Escrevo quando posso, quando a cabeça está boa para isso. Sou professora, é como pago as contas e minha profissão pode ser muito difícil e desgastante e, por isso mesmo, muitas vezes chego em casa cansada demais para qualquer outra coisa que não seja um bom banho quente, uma boa comidinha e estar deitada com meus gatos. Então escrevo muito mais nos finais de semana, mas quase sempre de maneira espontânea, dum desejo de me meter com os papeis, colorir os cadernos. Assim nascem principalmente as crônicas, os contos. Recentemente foi que tive o prazer e o desafio de trabalhar numa novela que exigiu certo planejamento e horas agendadas de trabalho, cumpridas a duras penas (rs). Agora estou no processo de revisão e tenho feito isso mais descompromissada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meus dois primeiros livros são duma natureza mais irrefletida, sabe? O Boca de Cachorro Louco é como um diário publicado, um conjunto de textos de não-ficção sobre um relacionamento abusivo que eu vivi e que nunca se pretenderam literários, mas que, felizmente, abriram as portas desse cenário para mim. Já o Orgasmo Santo envolveu, sim, um pouco mais de atenção ao texto, à linguagem, ao estilo, embora esses contos tenham, igualmente, nascido de rompantes do corpo, das experiências. Neste terceiro, minha primeira narrativa longa de ficção, ainda inédito, é que houve intensa pesquisa, trabalho e retrabalho. Nesse caso, eu tomava notas e fazia alguns fichamentos, já direcionados aos capítulos onde essas informações seriam inseridas. No meio dos processos de leitura, escrita e revisões, eu as transplantava no livro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu fico bastante ansiosa com as travas, mas compreendo que há muitas coisas que estão além do meu controle e da minha capacidade. Então eu tento relaxar, ler, assistir a filmes, séries, ouvir bastante música e, principalmente, observar a vida acontecendo ao meu redor, seja ternamente, seja com violência. Muito do que eu escrevo vem disso: de andar com o olhar atento, às vezes para o lado de dentro mesmo.
Sobre as expectativas, essa ansiedade… desde que eu comecei a estudar escrita criativa, melhorei bastante. Submeto meus textos ao olhar cuidadoso e profissional dos colegas de turma e do próprio professor, escuto, tomo notas, dialogo. Tenho aprendido muito. Assim, vou me tornando mais íntima da minha própria escrita e do que eu desejo para ela, afastando muitos medos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Olha, o Boca de Cachorro Louco não foi revisado para além das normas da língua, porque imaginei que isso significaria adentrar o território da ficção, coisa que eu não desejava para esse livro. O Orgasmo Santo foi revisado uma vez por mim e depois por editores e revisor da editora responsável por sua publicação, também apenas no que diz respeito à gramática. Já este novo livro, chamado Inhamuns, uma novela ainda inédita… eita, esse já perdi foi as contas de quantas revisões foram feitas (rs), em vários formatos, especialmente os relacionados à composição narrativa. Inclusive, já tenho submetido à apreciação alheia, pois percebi que cheguei ao momento de contar com olhares atentos que não o meu, já muitíssimo cansado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto bastante de escrever à mão, avemaria. Adoro o contato com as folhas dos cadernos e o cheiro da tinta das canetas coloridas, de ponta muito fina. Só depois é que transfiro meus rabiscos e garranchos para o Word. Ah! Às vezes, quando não tenho papel e caneta ao alcance das mãos, ou quando já estou deitada e me ocorre escrever algo, uso o bloco de notas do celular. É um grande parceiro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sei que é clichê, mas os dramas pessoais costumam ser excelentes e profundos redemoinhos para o exercício da criatividade que, partindo deles, acaba saltando para outros territórios, trazendo novas ideias, sugerindo novos caminhos. Foi assim com meus dois primeiros livros. O terceiro e ainda inédito livro, no entanto, nascido a partir de um conto que, apesar de ter sido motivado por uma experiência pessoal, foi um rico exercício de ficção, envolveu outros artifícios da imaginação, muito diferentes daqueles utilizados nas duas primeiras obras, porque contou com a elaboração de várias perguntas, alheias a mim, que levaram ao inchamento e parto da narrativa maior.
Sobre os hábitos para a manutenção da criatividade, acho que é imprescindível consumir, beber, devorar arte. Livros, filmes, música, conversas, trocas… isso não pode parar. São necessidades básicas, vitais para a produção do lado de cá.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu já gostava de escrever quando era criança. Na infância e na adolescência, eu escrevia principalmente para entreter as amigas leitoras e para dar voz a sonhos e desejos que eu imaginava muito distantes ou impossíveis de concretizar. Era como uma brincadeira, um passatempo, tudo muito apaixonado, é verdade, mas não encarado como algo a ser publicado, a ser literário. Com o tempo, depois da publicação do Boca de Cachorro Louco e, agora, do Orgasmo Santo, a escrita ganhou outros contornos, mais sérios, mais densos: eles dão forma ao desejo de ser escritora, de fazer isso profissionalmente. Se eu pudesse aconselhar a Kah adolescente, dona de blogs divertidos para animar as colegas de escola, eu diria: leve sua escrita a sério, Kah. Há um lugar para a sua paixão no futuro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever um romance, algum dia. Há algumas ideias, alguns projetos que estou maturando, mas sem nada substancial escrito, ainda.
Um livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe? Talvez um livro sobre a vida das mulheres que me criaram, mãe e vó. Elas têm histórias incríveis para contar.